"É bonito dizer que sou dentista, mas há que profissionalizar o rugby"

'Vencer Contra a Corrente' foi escrito por Tomás Appleton e retrata o inspirador percurso da seleção nacional de rugby até ao Mundial'2023, que terminou com a vitória diante das Ilhas Fiji. O capitão português é o convidado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto, onde se debruça sobre os passos que a modalidade ainda precisa de dar no nosso país.

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Filipe Carmo
05/08/2024 07:53 ‧ 05/08/2024 por Filipe Carmo

Desporto

Tomás Appleton

Muitos dos portugueses que nunca tinham visto um jogo de rugby fizeram-no pela primeira vez, em 2023, por conta da participação d'Os Lobos no Campeonato do Mundo, realizado em França, entre 8 de setembro e 28 de outubro. A seleção nacional ficou no grupo de Geórgia, Austrália, País de Gales e Ilhas Fiji, tendo sido contra esta última equipa que se deu o ponto alto da presença lusa na competição.

 

A 8 de outubro, Portugal conseguiu a primeira vitória no Mundial desta modalidade, derrotando as Ilhas Fiji por 24-23, resultado surpreendente que continua a ser encarado como a 'cereja' no topo de um percurso atribulado mas, também, inesquecível.

É, precisamente, desta forma que o caracteriza Tomás Appleton, o capitão da seleção, que colocou em palavras o que de melhor aconteceu no caminho até França no livro 'Vencer Contra a Corrente', focado precisamente no facto de, contra todas as expetativas, se ter conseguido chegar a esta prova e vencer mesmo o último dos jogos da fase de grupos.

O Desporto ao Minuto falou, precisamente, com Tomás Appleton e tentou perceber, acima de tudo, o que se consegue retirar, quase um ano depois deste feito histórico. O capitão, no entanto, deu-nos a resposta que esperávamos: o objetivo é voltar a surpreender em 2027, altura em que o Mundial volta a ser jogado.

Tínhamos a vontade de chocar o mundo e isso aconteceu

'Vencer Contra a Corrente' fala-nos sobre o caminho da seleção nacional de rugby até ao Mundial e de como um grupo de atletas que têm outras profissões conseguiram competir com seleções profissionais e 100% dedicadas à modalidade. De onde surgiu a necessidade de relatar tudo o que foi vivido por vós em 2023?

No princípio, estava um pouco reticente, porque nunca me imaginei a trabalhar como escritor, o meu foco são outras áreas. A Leya [editora]  desafiou-me e comecei a pensar no que fazia do nosso percurso algo tão especial. Depois, pensei como é que um grupo de homens que, na sua grande maioria, são comuns, trabalhadores normais, conseguiu estes resultados num Mundial e levar a seleção nacional a este nível. Comecei a pensar que tinha a obrigação de contar esta história e de passá-la lá para fora, foi isso que mais me motivou.

Na sua opinião, o que fez com que este Mundial fizesse os portugueses vibrarem desta maneira?

Acho que foi uma combinação de várias fatores. A maioria das pessoas não conhecia o nosso trabalho e o que as apaixonou foi o Mundial em si e as semanas que o antecederam. O que apaixonou as pessoas foi o facto de Portugal não ser favorito para nenhum jogo e ter conseguido bater-se com os melhores, sendo que quem conhece o rugby sabe que é muito difícil uma equipa de um ranking inferior bater-se com uma que esteja acima. Nós não somos profissionais de rugby, jogamos por prazer, e, quando estamos ali, aproveitamos o momento e damos tudo por Portugal. Além disso, qualquer pessoa gosta de um 'underdog' [provável derrotado], e era isso que nós éramos. Ver um 'underdog' a ganhar é cativante para qualquer pessoa.

Como foi perceber que tinham o país todo a apoiar-vos e feliz com o que haviam conseguido?

Quando nos juntámos para preparar o Mundial, em junho, uma das coisas de que falámos é que não éramos a primeira seleção portuguesa a participar num Mundial. Tínhamos a ambição de fazer algo que nos permitisse dar o salto e marcar esta geração, estar um degrau acima. Acho que isso vai estar sempre a acontecer no futuro e, talvez daqui a 50 anos, possamos sonhar em sermos campeões do mundo. É disso que precisamos, de evoluir, e, com este Mundial, quisemos inspirar os miúdos a jogarem rugby. A vitória contra as Fiji foi o culminar de muito trabalho. Estávamos focados em ganhar o primeiro jogo, mas isso não aconteceu. Jogámos bem, mas País de Gales jogou melhor. Tínhamos a vontade de chocar o mundo e isso aconteceu no final. Saímos radiantes e muito satisfeitos do Mundial que fizemos.

O que já conseguem perceber que derivou dessa vossa participação do Mundial? Sentem que passou a existir maior atenção sobre a modalidade e sobre vocês, atletas?

Honestamente, acho que o que é palpável é o mediatismo que passou a existir à volta dos jogadores da seleção nacional. Passámos a ter mais oportunidades, o último jogo contra a África do Sul [em julho passado] não aconteceria se não tivéssemos feito o Mundial que fizemos. Ainda assim, acho que, em termos de frutos, ainda vai demorar alguns anos a perceber o que aconteceu, o rugby em Portugal não vai melhorar logo só porque estivemos no Mundial, é preciso capitalizar o que fizemos. 

O prefácio foi escrito por Bernardo Silva. Qual foi o motivo desta escolha?

Eu conheço-o há muitos anos, desde que ele estava nas escolas do Benfica. O que queria era que ele escrevesse o que significa, para ele, representar a seleção nacional. Representar Portugal é sempre especial e pode ser encarado de forma diferente por cada pessoa. Na nossa seleção, temos vários jogadores nascidos em França que representam Portugal em honra dos avós que emigraram para França há vários anos. No final do dia, estamos a representar os milhões de portugueses, o que queria era a visão do pico da pirâmide do desporto, que é o futebol, e acho que o Bernardo representa isso. É muito difícil chegar mais alto do que ele já chegou. 

Fui crescendo a ver Cristiano Ronaldo e a verdade é que é uma referência enorme para mim

Neste livro, e em várias entrevistas que já deu, também menciona Cristiano Ronaldo como um exemplo no que diz respeito à vontade de vencer, à exigência e ao profissionalismo...

Sim, fui crescendo a vê-lo e a verdade é que é uma referência enorme para mim desde cedo, pela ética de trabalho e por tudo o que conquistou. Tem vindo, ao longo dos anos, a marcar a sua posição constantemente, a bater recordes e a querer fazer sempre mais. Esses são os bons exemplos que se pode tirar da carreira do Cristiano, alguém que fez muito e que teve de se adaptar a muitos ambientes. No final do dia, do que se vão lembrar é dos resultados e do que ele conquistou, nisso ele é o melhor do mundo, sem dúvida.

O Mundial de 2027 terá mais quatro equipas, o que poderá facilitar a qualificação da seleção nacional. Vocês, jogadores, já vão falando sobre esta competição e já a vão preparando de alguma forma?

Claro, o nosso foco já está no Mundial. O rugby funciona muito com ciclos de quatro anos. Sabemos que, desta vez, vamos ter uma qualificação um pouco mais facilitada, mas o nosso foco já está aí. Sabemos que a qualificação se definirá já em fevereiro ou março do próximo ano e o caminho deverá ser mais acessível do que foi para o Mundial de 2023.

Pedia-lhe que mencionasse algumas coisas que, no seu entender, poderiam permitir que o rugby subisse de nível em Portugal. Ser completamente profissional no rugby no nosso país é algo muito futurista?

Sinceramente, não penso que seja algo assim tão longínquo. É muito bonito dizer que sou dentista, que um dos nosso treinadores é veterinário e que temos designers na equipa, as pessoas ficam comovidas com isso, mas, no final do dia, queremos performance, queremos ganhar. É inspirador, mas o caminho vai ter de ser a profissionalização do rugby. O facto de ter outra profissão afeta a minha performance desportiva, porque, em alturas que queria estar a descansar, a recuperar ou a treinar mais, vou estar enfiado num consultório. O caminho terá de ser a profissionalização e acho honestamente que o caminho da profissionalização em Portugal não passa diretamente pelos clubes. Em Portugal, temos os Lusitanos, é uma equipa que joga uma competição europeia, e vejo a profissionalização dos Lusitanos como um passo a dar, é algo que acredito que possa acontecer em breve. O desporto escolar também tem de ser desenvolvido para gerar interesse à volta do rugby e não só à volta do futebol.

Sentem o peso da responsabilidade de, quando participam em grandes competições, servirem como 'montra' da modalidade para os mais jovens?

Sem dúvida, o nosso maior choque foi quando chegámos ao aeroporto depois do Mundial. Os milhares de miúdos que lá estavam para nos receberem fez-nos sentir uma responsabilidade brutal e temos alguma obrigatoriedade de continuar a ter resultados para inspirar estes miúdos, para que os sonhos deles não desapareçam.

Em 2027, a ideia é escrever um segundo livro com um trajeto ainda mais vitorioso?

Espero que sim. O que queremos é dar um salto ainda maior. Vai ser uma equipa completamente diferente, não será, talvez, um processo tão inspirador e tão bonito, porque a caminhada do Mundial de 2023 foi cheia de peripécias. Não será uma coisa tão embelezada, mas quando chegarmos a 2027 queremos passar a uns 'oitavos' ou a uns quartos de final. Temos três anos para trabalhar a para lá chegar e acho que o futuro do rugby português será risonho.

Leia Também: O festejo inusitado de um jogador de rugby francês após o ouro olímpico

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