Isaías Gomes tem 30 anos, é completamente surdo de um ouvido e só vê do olho esquerdo, mas nem é a 100%. Sequelas de uma meningite com que lutou aos três anos, em Cabo Verde e que lhe ficaram para o resto da vida. Em fevereiro estreou-se numa competição internacional, no Dubai World Para Athletics Grand Prix 2025, e trouxe a medalha de prata para Portugal. Mas não se quer ficar por aqui. "É só o início", garante.
Aos 17 anos veio para Portugal atrás de um transplante que lhe permitisse recuperar a visão. Fez três, mas não correram como esperava.
"Como cheguei cá com a visão muito degradada, devido ao tempo em que fiquei lá à espera para conseguir ter o visto e conseguir vir para cá, quando cheguei a única solução era mesmo o transplante. Já era totalmente dependente para andar na rua. Ia à escola só mesmo para ouvir, porque já não conseguia escrever. Pensei que ia ficar bom, mas a doença já estava muito avançada e houve rejeição da córnea. Em 2014 voltei a fazer novo transplante no olho esquerdo, mas não ficou a 100%", recorda Isaías ao Desporto ao Minuto.
Depois da operação, a mãe regressou a Cabo Verde para cuidar dos 14 irmãos de Isaías, que ficou cá, na Casa Pia. E foi aí, com o desporto escolar, que nasceu o gosto pelo atletismo.
"Comecei a participar nas provas e, mesmo sem treinar, comecei a destacar-me nos regionais. Na primeira vez fiquei em terceiro, no segundo ano já ganhei a prova e a partir daí comecei a interessar-me mais pelo atletismo", lembra o atleta.
Quando a escolaridade obrigatória terminou quis continuar os estudos, mas não tinha condições financeiras e foi pai. Teve de procurar trabalho, mas as limitações físicas foram um obstáculo.
"Ia a entrevistas e quando percebiam que tinha baixa visão diziam: 'Depois chamamos-te' e enviavam um e-mail a dizer que a vaga já tinha sido ocupada. Na área da restauração também não dava para mim porque não conseguia servir às mesas, era um risco. Até que na Junta de Freguesia de Belém me indicaram a Fundação LIGA. Fiz lá uma formação na lavandaria durante três meses", conta.
Parceira do El Corte Inglés, a Fundação LIGA reencaminhou Isaías para a área de diversidade e inclusão da empresa. Em 2018, o atleta começou a trabalhar na secção de bebidas do supermercado, que respeitou não só as limitações físicas do cabo-verdiano como lhe deu todas as condições para que pudesse continuar a dedicar-se ao atletismo.
Hoje já está efetivo no El Corte Inglés e é tutor de várias outras pessoas com deficiência que chegam para trabalhar no supermercado.
"Ainda há dias um rapaz que esteve aqui, o David, mandou-me mensagem porque ficámos muito amigos. Ele ainda está a estudar, está na universidade. Mandou-me mensagem a dizer que queria voltar a trabalhar aqui, mas só se fosse para trabalhar comigo", revelou Isaías Gomes.
Do lado do El Corte Inglés também não podiam estar mais satisfeitos com a prestação de Isaías, dentro e fora da pista de atletismo.
"As vitórias que ele consegue alcançar enquanto atleta são sentidas como se fossem nossas também, pois enquanto entidade empregadora inclusiva, proporcionamos todas as condições para que ele consiga fazer os seus treinos, ajustando, por exemplo, horários ou patrocinando equipamento. As suas conquistas no atletismo são, acima de tudo, um grande orgulho para a empresa e uma grande prova de resiliência da sua parte", confessou Paula Lobinho, responsável da área de diversidade e inclusão do El Corte Inglés.
Treinos bidiários de manhã e à hora de almoço. "Até me chamavam de maluco"
A participação no Dubai World Para Athletics Grand Prix 2025, em fevereiro, foi a estreia de Isaías Gomes em provas internacionais, mas também uma das poucas vezes em que competiu direta e exclusivamente com atletas da categoria T12, que partilham das mesmas limitações físicas.
Até agora, o atleta participava em provas para atletas sem limitações, competindo com adversários com a audição e visão a 100%. Mas essas diferenças raramente se notam nos tempos finais obtidos pelo cabo-verdiano. Na Corrida São Silvestre de Lisboa, em 2023, ficou em 2.º lugar e depois da prova ainda foi trabalhar para ajudar a equipa na confusão das compras do último dia do ano.
"Nem acreditava muito que ia ficar em 2.º porque estavam lá atletas muito bons e e eu tinha estado a trabalhar no dia anterior", admitiu o atleta.
© Federação Portuguesa de Atletismo
A oportunidade de se inscrever no Comité Paralímpico de Portugal surgiu no ano passado, quando participou num corta-mato em Guimarães.
"Vieram falar comigo, disseram que era um risco fazer aquela prova. No corta-mato temos muitos obstáculos, buracos. Há partes do chão que têm relva e têm buracos, então eu tinha essa dificuldade. O presidente do Comité Paralímpico conseguiu o meu contacto, através do mister que tem estado sempre em cima do meu caso, o Carlos Freitas", afirmou.
Isaías prepara-se para as provas com treinos bidiários que começam de manhã, às 9h30, no Estádio Nacional, no Jamor.
"Dá tempo para treinar, descansar e vir para cá", garante Isaías, durante uma pausa do turno de trabalho no supermercado.
O segundo treino acontece à hora de almoço.
"As pessoas ficam sempre admiradas porque venho trabalhar já com o treino feito, depois saio e vou treinar outra vez. Até me chamavam de maluco, que não fariam isso por nada. Fui muito bem recebido lá em baixo, encaixaram-me muito bem", ressalvou o atleta.
A ultrapassagem no momento certo
Isaías Gomes chegou ao Dubai em fevereiro, cinco dias antes da prova, doente. Uma forte gripe 'atirou-o' para uma cama e impediu-o de fazer qualquer treino de preparação antes da provas do mundial.
"Estava preocupado porque desde que cheguei lá passei cinco dias doente e não podia tomar medicamentos. A cada dia que passa ficam muito restritas as coisas que podemos usar para não acusarem doping. Então foi um misto de sensações muito estranhas. Treinei muito para chegar lá e fazer uma boa prestação, mas cheguei lá e fiquei doente", recorda o cabo-verdiano.
No dia da prova percebeu que ia competir contra os 'poderosos' atletas do Quénia e os nervos aumentaram.
"São famosos e assustei-me logo. Eram quatro, fiquei com os cabelos em pé. Levei muita 'porrada' porque eles não aceitam perder. Notei isso sempre que apertava durante a corrida. Fiquei sempre para trás, só passei por eles na última volta. Sempre que tentava aproximar-me, eles fechavam-me, faziam-me sempre correr mais para fora. Não sei se combinaram", disse.
Nos últimos segundos da prova, mesmo na reta final, Isaías ouviu, através do único ouvido funcional que tem, que um dos adversários quenianos estava com a respiração muito ofegante e percebeu que essa era a oportunidade para o 'sprint' final que lhe iria garantir o primeiro lugar (pode ver o vídeo no topo do texto).
"Não há muito tempo para gerir. Se queremos fazer uma boa marca temos de partir fortes e terminar fortes. É um misto de velocidade e resistência. Se não tivermos ponta final não vamos lá", explica Isaías.
Apesar de ter ficado em primeiro lugar na prova, Isaías Gomes não trouxe o ouro porque, para as contas finais, contaram os resultados de todas as categorias: T11, T12 e T13.
"Juntando o T11, T12 e T13 na mesma classificação, e como o T11 bateu o recorde do mundo da categoria dele, automaticamente juntou mais pontos e passou para primeiro. Na hora da cerimónia protocolar, quando disseram isso, foi um banho de água fria", desabafa o atleta.
Próximos objetivos? Mundiais de atletismo na Índia e Jogos Paralímpicos em Los Angeles
Depois da medalha de prata que trouxe do Dubai, Isaías Gomes tem dois objetivos: trazer mais uma medalha dos Mundiais de Atletismo na Índia, em setembro deste ano, e qualificar-se para os Jogos Paralímpicos de Los Angeles em 2028, de onde quer trazer também uma medalha ao peito.
"No próximo ano, se houver oportunidade, quero também ir lá de novo porque aquela medalha de ouro ficou-me presa na garganta. Que esta seja a primeira de muitas", deseja o cabo-verdiano.
Por enquanto, ainda está a desfrutar desta conquista. Foi recebido em ambiente de festa por todos os colegas de trabalho e o El Corte Inglés, além de lhe ter dado os parabéns, garantiu-lhe patrocínio durante um ano.
Isaías Gomes homenageado pela chefia no El Corte Inglés© Notícias ao Minuto
"Foi das melhores coisas que esta medalha já me proporcionou porque me vem facilitar outras coisas relacionadas com o equipamento", acrescenta.
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