Foi em Alverca do Ribatejo, na companhia da atual companheira, Helena, que João de Carvalho conversou abertamente com o Fama ao Minuto sobre o seu percurso nas artes, sem deixar de lado o caminho que também fez na política que, diz, o "apaixonava".
João de Carvalho "sempre esteve ligado a todas as artes" e é um "amante de ópera". A mãe, Ruth de Carvalho, era bailarina e formada em História Filosófica. O pai, Ruy de Carvalho, continua a carreira na representação aos 95 anos. "Desde os meus quatro anos, andava a brincar nos camarins", recorda.
Já fez vários Shakespeare e, realça, é capaz de interpretar várias personagens. "Gosto de fazer tudo, até teatro musicado", afirma, não deixando, no entanto, de confessar o gosto particular por personagens "com mais intensidade".
Uma vez que teve sempre uma ligação às artes, filho de pais artistas, foi um passo natural o mundo da representação?
Foi um passo natural apesar de eu ter tido uma outra ambição que era a carreira militar. O meu avô era militar.
E nunca exerceu?
Não pude, tive hepatite tipo A e não pude seguir o colégio militar. Era proibido fazer exercício. Depois tudo passou, era uma hepatite de crescimento e acabei, naturalmente, a começar a fazer as primeiras peças na televisão, ainda se fazia teatro em direto. E depois por aí fora.
Ainda estava na escola e fiz filmes e várias coisas. Até que aos 19 ou 20 anos estava na dúvida se seguia História ou Teatro, e acabei por ir parar ao Teatro - apesar de ter também uma grande paixão por História. A minha mãe era formada em História Filosófica, portanto, era perfeitamente natural.
O palco faz-nos viver. No palco tu não tens dores. Se assumires que és o personagem, ele não tem dores. Tens de te entregar mesmo, não é a fazer de conta
Acaba por ser um pouco por influência dos pais aquilo que gostamos ou seguimos?
Há sempre! Cresci e comecei a andar num palco. O cheiro das colas, tintas, era uma coisa familiar para mim. Mas não se nasce com o genes, ou tens, ou não tens. Nem nasces com o talento. Podes gostar muito e não ter vocação. Eu também a descobri muito tarde, mas descobri.
Julgava que aguentava. O meu pai bem me dizia que eu estava a abusar e que o dinheiro não era tudo
Costuma dizer que para viver do teatro tem de se estar apaixonado, tem de se gostar mesmo daquilo que se faz…
Tem, mas não se pode estar tão apaixonado como aconteceu quando eu estava a fazer três peças ao mesmo tempo, que foi por causa disso que tive o esgotamento. Não é possível, e três espetáculos completamente diferentes. Temi o pior, pensei que era um AVC, ou uma encefalite… Felizmente não há nada, apenas preciso de descanso, de moderar e aprender a dizer que não. Agora a paixão mantém-se.
No outro dia a Júlia [Pinheiro] perguntava-me se agora ia parar mesmo. Parar não. Se eu paro morro. Diminuir sim. É o que acontece com o meu pai, se ele parar de fazer morre. O meu pai se estiver em casa dura pouco tempo. O palco faz-nos viver. No palco tu não tens dores. Se assumires que és o personagem, ele não tem dores. Tens de te entregar mesmo, não é a fazer de conta. Notamos logo quando é a fazer de conta e quando não é. E o palco é um tribunal um bocado complicado porque tens o público à frente, o júri está ali logo à frente. Não dá para fingires.
É um turbilhão de emoções, passa do choro, do desespero para o riso, a gargalhada. Não é fácil. Achava que era capaz mas, afinal, não sou o super homem. Julgava que aguentava. O meu pai bem me dizia que eu estava a abusar e que o dinheiro não era tudo.
O seu pai continua a ser muito atento?
Sim, em termos de profissão é. O meu pai é muito dedicado à sua profissão, como eu também sou. Não implica com a vida familiar, que todas as famílias têm os seus problemas. Mas em relação ao teatro, sim. O meu pai, por exemplo, foi ver 'A Noite' e disse logo que gostou muito de todos, mas que não gostava da peça. Disse que nós fazíamos bem, tirando uma pessoa. De resto, gostes ou não gostes, tens de te entregar aos personagens. É que há quem goste e merece que tenhamos respeito. Mesmo que não gostes, tens de ter uma entrega muito grande.
O trabalho não é tudo. De repente, tu partes e substituem-te logo por outro. Não há insubstituíveis
Quando esteve em conversa com Júlia Pinheiro, ao falar deste recente problema de saúde, o esgotamento, disse que tinha tido sinais. Só deu conta deles depois de ter ido parar ao hospital ou desvalorizou-os?
Desvalorizo sempre os sinais. Se não fosse terem pegado em mim e terem-me levado para o hospital, eu não teria ido. Felizmente, levaram-me e assim já sei o que tenho e o que não tenho. Mas esses sinais começaram muito antes. Trocar a roupa, esquecer-me de coisas em casa, calçar um sapato de uma cor e outro de outra… Depois tinha uma conversa, às vezes, um pouco desconexa, um bocadinho maníaco, [também] um pouco com a dieta, reconheço. Não posso comer gorduras…
Mas estava a fazer dieta na altura?
Mantive sempre um pouco a dieta, ou pelo menos tenho mais cuidado. Mas a dieta também influenciou, também me atirou abaixo e desregularizou o colesterol. O mau está bom, agora o bom (que é o HDL) estava mau. As coisas desequilibraram muito. Foi um acumular. As expressões, dificuldade em decorar um texto - que é uma coisa que nunca tive. Fiz a peça, mas sempre a lutar até ao dia em que tive o apagão. E no dia a seguir ao apagão fui trabalhar com um auricular.
E o que mudou agora de imediato na sua vida para conseguir controlar o estado de saúde?
O que muda principalmente é aprender a dizer que não. Quando somos pequenos, os nossos pais contrariam e dizem-nos que temos de dizer sim. E depois tantas vezes ouvi que tinha de dizer que sim que a gente esquece-se de dizer que não. Nós não aguentamos tudo. O trabalho não é tudo. De repente, tu partes e substituem-te logo por outro. Não há insubstituíveis.
Acabou por cair nessa realidade agora com este susto de saúde…?
Sim. E gostaria muito de poder chegar a ser bisavô, como o meu pai. É uma questão de saber começar a dizer que não e não aceitar tudo. Mesmo que às vezes seja difícil porque, normalmente, tu não recusas nada aos teus amigos. E as pessoas com quem tenho trabalhado são meus amigos. Mas vou ter que conter-me. Não é fácil.
E dormir. Tomo comprimidos para regular novamente o meu sono. Andava a dormir, às vezes, duas horas, depois acordava, deitava-me mais meia hora ou uma hora... Isso não é forma de dormir. Agora durmo nove a dez horas. E antes não ligava muito a isso.
Está neste momento a fazer terapia?
Ainda não comecei. Vou começar a fazer terapia porque também tenho de resolver a minha cabeça psicologicamente.
Não podes debitar o texto como um papagaio, tens que senti-lo. É um processo cansativo porque não trabalhamos só as horas dos ensaios
Quando a Maria João Abreu foi para o hospital, conversámos num evento antes de a atriz morrer. Na altura, o João falava com uma certa aflição. Parecia que estava a recordar o passado. Sentiu isso?
Muito! Comecei a ver na Maria João Abreu os mesmos sintomas, os mesmos apagões, o mesmo olhar vazio da minha mulher antes de ter o AVC. E tal e qual como a minha mulher, não fui capaz de ter força para a convencer a pedir uma ressonância magnética.
Mexeu consigo...
Mais uma vez, falhei em convencer a pessoa. A Helena [falecida mulher de João de Carvalho] era muito obstinada, a Maria João também. Era a preocupação da família, dos netos, dos filhos, de tudo. Era uma mulher que estava sempre preocupada com qualquer coisa. Passava o tempo no camarim a resolver problemas. Ela tinha o camarim ao lado do meu, eu ouvia e dizia "mana, para".
Nós temos sempre de saber ouvir os outros. E quando há uma opinião médica de uma coisa – eu por exemplo, se tivesse apenas a opinião dos médicos do Hospital Santa Maria sem ouvir a opinião da minha médica... os médicos não sabiam o que é que eu tinha, estava a fazer exames ao cérebro, só. E mal entrou, não me esqueço, ela disse logo à médica que eu estava a ter um 'burnout' e que não tinha nada no cérebro (tinha uma ressonância magnética em que não tinha nada).
Então, continua a ser seguido?
Sim. [Mas] a verdade é que quando retomei, no primeiro espetáculo ainda trabalhei com o auricular mas no segundo já não. O texto já estava na cabeça.
Pedi desculpa ao Daniel e disse-lhe que agora, durante um tempo, não. Quis dedicar-me ao teatro. Faço televisão e cinema para ganhar dinheiro, porque no teatro já não pagam o que pagavam antes
A profissão de ator acaba por ter este lado desgastante?
As pessoas nem imaginam. Só quem acompanha um pouco e sabe, eu fico alterado. Na estreia são só nervos, penso que não sei se sou capaz até ter o texto metido na cabeça, mas não é só isso. Não podes debitar o texto como um papagaio, tens de senti-lo. É um processo cansativo porque não trabalhamos só as horas dos ensaios, trabalhamos depois em casa. Eu escrevo o texto e depois começo a ler do texto que escrevo.
E depois também tem que ver com as emoções…
Havia uma escola que dizia que os atores tinham de aprender a viver com o personagem que estavam a representar. Isso nos dias de hoje é uma impossibilidade porque hoje desdobram-se entre televisão, teatro. Às vezes calha-te um personagem bom, outras vezes mau… Não tens de interiorizar isso, o que tens de interiorizar é assim que passas as pernas [que são os panos pretos], mudas de pessoa. Não és tu, és o personagem.
E é fácil esse processo, é fácil fazer esse 'clique'?
Não, mas é uma das coisas que temos de aprender. Por isso é que há muitos anos, um grande senhor do teatro brasileiro que era amigo do meu pai, Paulo Autran, disse que são muito poucos os que podem fazer Shakespeare.
Na televisão enganas-te e voltas a repetir, no cinema a mesma coisa, há quem só consiga dizer frase a frase e não é preciso ter muita idade – o meu pai ainda decora tudo. E há quem decore na altura, quem tenha memória visual e depois apaga da memória por completo. Eu não, tenho sempre de estudar.
Agora tem estado mais presente no teatro. É uma escolha sua?
Sim. Já tive oportunidade de ir fazer novela outra vez. Pedi desculpa ao Daniel e disse-lhe que agora durante um tempo não. Quis dedicar-me ao teatro. O teatro é o que amo e tenho a sorte de fazer uma profissão que amo. Faço televisão e cinema para ganhar dinheiro, porque no teatro já não pagam o que pagavam antes.
Hoje em dia um ator já não conseguiria viver só do teatro?
Se não estiver nas melhores condições, não vive ou vive muito mal. As minhas condições são diferentes neste momento. Primeiro porque estou reformado, depois tenho uma pensão pela morte da minha mulher, e tenho uma pensão de Espanha porque fiz lá cinema. Portanto, não me posso queixar disso. Não é um vencimento, uma reforma de um deputado da Assembleia da República, mas também não é mau e aguento, não tenho dívidas. Vivo perfeitamente com isso.
O João continua a ter outras ambições na carreira, gostava de fazer outra série internacional?
Todos nós temos. Já fiz uma série internacional em alemão.
Se te entregares de coração àquilo que estás a fazer sai tudo bem, sempre. E isso foi o grande ensinamento que o meu pai me deu
E voltar a esse ritmo, gostava?
Não sei. Tenho muita dificuldade em sair do meu país e todos os meus colegas que trabalharam fora não gostam, tirando o Joaquim de Almeida. Ganham muito dinheiro, é verdade, ganhas muito mais, mas não gostas.
Também não gosta?
Com os alemães é fácil de trabalhar, com os americanos não. E explico já porquê. Nós portugueses somos latinos, e o Pepe Rapazote quando acabou de fazer a primeira temporada da série 'Narcos', foi ter com a senhora que durante aquele tempo o maquilhou, o preparou, para lhe agradecer e deu-lhe dois beijos. Quando chegou cá fora tinha o produtor a dizer-lhe para nunca mais fazer isso, porque é a primeira coisa que serve para ter uma acusação de assédio sexual. Nós somos sentimentais, não tem que ver com mais nada, tem que ver com o agradecimento. Em Espanha não tenho esse problema porque os espanhóis também são afetivos.
Diz que para estar vivo precisa de fazer teatro. Este foi um dos ensinamentos que o seu pai lhe deu?
Foi! Os ensinamentos que se dá a um ator não são quando ele está cá fora, é quando ele passa para cima do palco. As peças mudam com os atores – têm mais ou menos entrega, mais ou menos jeito.
A interpretação é sempre diferente...?
Quando pegamos num personagem, cada um de nós cria-o, não é só o recriar. Cada um faz à sua maneira. Quem me foi substituir quando tive um 'burnout' fazia de uma forma completamente diferente da minha. E a pessoa que fazia antes de mim também não fazia como eu.
A única forma é sermos verdadeiros. Representar bem ou mal, ter ou não talento, se te entregares de coração àquilo que estás a fazer sai tudo bem, sempre. E isso foi o grande ensinamento que o meu pai me deu.
O meu pai diz que no dia em que ele desaparecer vão finalmente reconhecer o ator que eu sou. Diz que sou de longe melhor do que ele
Com certeza que quando era mais jovem houve muitos outros ensinamentos, mas nesta fase, nesta relação atual com o seu pai em que são ambos adultos, o que mais destaca?
O meu pai diz que no dia em que ele desaparecer vão finalmente reconhecer o ator que eu sou. Diz que sou de longe melhor do que ele e que faço coisas que ele nunca irá conseguir fazer.
Ele diz-lhe isso a si?
A toda a gente que está connosco. "O João é um ator de mão cheia, consegue fazer coisas que eu não faria nunca". Ele próprio me disse quando me meti a fazer a terceira peça: "Mas quem é que se mete a fazer três peças, eu nunca fiz três peças ao mesmo tempo, filho. Como é que é possível?" Claro que não foi [possível]. Mas tentei. O meu pai vai ver um espetáculo meu e quando lhe pergunto o que achou e se estava mal, ele diz "está ótimo, nunca tenho nada a apontar a ti". Para o meu pai, eu represento sempre bem, apesar de às vezes não me sentir tão bem a representar.
Mas o João sente que não é devidamente reconhecido?
Enquanto o meu pai for vivo, não há uma pessoa que não me diga: Gosto muito do seu trabalho, mas o seu paizinho… Até ela [a namorada de João de Carvalho]. Mas estou habituado a isso, lido muito bem com isso. Ser ultrapassado pelo meu pai [risos], tudo bem. Sou o segundo, não tem problema. Não é coisa que me aflija.
Houve uma altura na minha vida em que comecei a duvidar porque os papéis que me davam eram secundários. Houve duas peças que mudaram tudo
Sente que ele também tem essa noção, de que acabam por vê-lo sempre na sombra?
Estive sempre na sombra e tentando sempre não me colar ao meu pai. A pior coisa que fazemos é colar a nossa carreira à de um ator como o meu pai. Não tenho o mesmo tempo de carreira, não tenho a experiência que o meu pai tem. Quando se apoia a nossa carreira na vida de outro… e aconteceu com muitos colegas tirando duas ou três exceções.
A Rita Ribeiro, que é efetivamente uma grande atriz, tinha dois pais atores mas mesmo sendo a Zézinha [Maria José] uma grande atriz, a Rita é melhor do que a mãe, e do que o Curado Ribeiro [pai] também. E o Fernando Mendes também, só não é melhor ator porque habituou-se a brincar um bocado com a barriga. Mas que era muito melhor que o Vítor Mendes [pai], era.
Não se constrói a carreira deixando-nos apoiados e estando na sombra sempre. Havia muita gente que não sabia que eu era filho do Ruy de Carvalho. Agora, nos últimos tempos, perceberam, mas aí já tinha a minha carreira feita.
Sempre esteve muito bem resolvido com essa 'visão', nunca pensou em desistir?
Não. Houve uma altura na minha vida em que comecei a duvidar porque os papéis que me davam eram secundários. Houve duas peças que mudaram tudo. Uma era do António Torrado, uma peça para crianças que se chamava 'Zaca Zaca', e a outra foi 'Passa Por Mim no Rossio'. Foi o meu despertar. Toda a gente percebeu que consigo fazer tudo. Mas isso acontece. Tive essa oportunidade.
Já – não por culpa dele – o meu sobrinho está muito colado ao meu pai e a mim, e não devia ter feito isso porque ele tem talento, tem tudo.
Aqui não são capazes de dar 20 ou 15 euros [para ir ao teatro], mas pagam 60 euros para ir ver um jogo de futebol
Mas sente isso só no teatro ou também na televisão?
Quando posso, passo na televisão, porque prefiro fazer séries e gosto de fazer cinema. O último filme fiz com o Diogo Morgado, que foi o 'Irregular' e adorei fazer. Acho que o filme só peca por uma coisa, não é falado em inglês. Se fosse toda a gente tinha ido ver, porque o filme é extraordinariamente bem feito.
Acha que há esse estigma com os filmes portugueses?
Há! As pessoas não vão ver. O filme era brilhante, tem um final de arrepiar.
E o que falhou para não haver apoio ao cinema português?
Não vou generalizar, mas há uma coisa que acontece muitas vezes. O público vai ao teatro e são-lhe oferecidos os bilhetes. 'Lá vamos ver esta m****'. E depois vão direitinhos pagar fortunas para ver atores a representar pior em Inglaterra ou em Paris. Mas vão todos contentes. Aqui não são capazes de dar 20 ou 15 euros, mas pagam 60 euros para ir ver um jogo de futebol.
Mas também a culpa não é do povo. É de quem governa. Se educarmos um povo a gostar de arte, de Cultura, provavelmente eles não estariam no poleiro
No fundo tem que ver com a Cultura?
Tem! Quantas pessoas vemos nos transportes públicos a ler? Passamos em Paris e no metro encontramos imensa gente a ler. Quantas encontramos cá? Mas também a culpa não é do povo. É de quem governa. Se educarmos um povo a gostar de arte, de Cultura, provavelmente eles não estariam no poleiro porque é mais fácil dominar as massas quando elas não têm Cultura, não sabem pensar por si. Quem sabe pensar por si, julga.
Há uma grande frase do general António Ramalho Eanes que termina assim: "O grande problema dos portugueses é que os pequenos ladrões estão todos na prisão e o grandes governam o país". Somos atores, mas não somos parvos. E lidamos com uma coisa que é o sentimento humano. Isso é sempre igual. O homem pode amar muito, apaixonar-se, mas também ser cruel, terrível, ter um ódio permanente… É uma questão de educar as pessoas.
Gosto muito de política, se ela fosse feita com honestidade e sem quererem sair de lá todos ricos
E não está a haver um caminho nessa direção?
Os jovens estão a ir muito mais ao teatro. O filho da Helena [namorada] raramente deve ter ido ao teatro. Foi ver uma peça dificílima e no final disse que tinha sido uma maravilha de espetáculo. E não começou com uma peça fácil. Começou com uma peça em que as emoções são uma catadupa. Passou a ter sentido crítico. E depois tem as comparações que pode fazer quando vê outras coisas que, às vezes, andam para aí a enganar o público – não vou dizer nomes. Não se engana o público.
O que acontece é que quando se engana o público, a peça a seguir pode ser muito boa mas já não mete lá gente. Mas como hoje há muita gente que nem é profissional a fazer teatro, dizem-se atores mas não são profissionais a fazer teatro… O público sai de lá a perguntar: o que é isto?
Além da arte de representar, o João também já esteve ligado à política - esteve na câmara de Vila Franca de Xira e o candidatou-se à Junta de Freguesia de Benfica. A política também o apaixona?
Apaixonava. Acho que seria capaz de fazer diferente, mas não deixam. A política é um gueto fechado que pertence a um ou outro núcleo, e quem rompe esse pequeno núcleo está tramado e é posto de fora. Por muito que tragas algo de novo e que as pessoas percebam que os políticos não são só ladrões - isso o público não se apercebe -, a seguir levas facadas nas costas. Não sou o único. Levas facadas nas costas e és atraiçoado e nunca é pelos teus adversários, é pelos teus, e dói mais. Gosto muito de política, se ela fosse feita com honestidade e sem quererem sair de lá todos ricos.
[Preferência na] Forma de morrer tenho. Não me quero ir embora [incapacitado fisicamente], preocupar os meus amigos e quem gosta de mim
Então, o caminho pela política fica por aqui?
Tentaram que fosse candidatar-me, e provavelmente se fosse apartidário era capaz de ganhar as eleições. Da primeira vez foi por pouco que não fui ganhar as eleições a Vila Franca – e não esquecer que Vila Franca antigamente era do Partido Comunista. Era só uma questão de tempo.
Quando acontecia qualquer coisa boa as pessoas diziam, 'isto foi o João'. Perguntavam porque é que não ia para a frente. Eu dizia: Faço as coisas, não preciso de mostrar a cara, o presidente gosta de falar, deixa-o falar. Nunca fui ver uma estreia de uma peça aqui, fui sempre aos ensaios e ao ensaio geral. Aí o vereador da Cultura tem de estar, na estreia vai o presidente. Às vezes, estava na parte de trás a assistir ao espetáculo. Prefiro manter-me na retaguarda e as coisas acontecerem. Muitas vezes abdiquei disso. Não é necessário, as pessoas acabam por saber.
Na Júlia, quando estava a falar do esgotamento, dizia que não tinha medo de morrer mas quando chega a hora da verdade, teme-se. Hoje o que pensa sobre a morte?
Continuo a não ter medo de morrer. Primeiro, porque acredito numa coisa passada pela minha mãe, acredito que voltamos quantas vezes for necessário para nos aperfeiçoarmos. Às vezes, basta voltar, nascer e morrer logo a seguir. Viemos cumprir um tempo. Acredito [na encarnação]. Noutra vida serei melhor, nós não caminhamos para trás, caminhamos para a frente. Claro que a mim me falta muito, tenho muitos defeitos. E sei que os tenho! Mas como acredito que numa outra vida poderei ser melhor do que sou nesta, não tenho medo.
[Preferência na] Forma de morrer tenho. Não me quero ir embora [incapacitado fisicamente], preocupar os meus amigos e quem gosta de mim. Quando for, que vá rapidamente. Deite-se e já não acorda.