"Não acreditava que ganhar dinheiro a cantar o fado fosse muito justo"

Estivemos à conversa com a fadista que lançou um novo disco 'Portuguesa'.

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Mariline Direito Rodrigues
03/03/2023 09:20 ‧ 03/03/2023 por Mariline Direito Rodrigues

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Mentiríamos se disséssemos que entrevistámos Carminho. Na verdade, a conversa foi de tal forma descontraída, que associá-la a um conceito mais formal não lhe faz justiça. Hoje é lançado 'Portuguesa', o novo disco da fadista, e foi dele que nos falou. 

Para Carminho, muito mais de que um álbum, 'Portuguesa' é também a procura pela sua identidade, que se vai definindo ao longo dos anos com as experiências dentro e fora da música. 

"O fado é casa", disse-nos. É o seu lar. Aquele que a acolheu de braços abertos quando ainda em criança veio viver para Lisboa e não se identificava com mais nada. Os seus amigos eram os dos pais, com quem se encontrava na casa de fados onde começou a cantar. Foi com eles que cresceu, e não apenas em altura.

'Portuguesa' é o  nome do seu novo álbum. Fale-nos um pouco sobre ele.

'Portuguesa' tem a ver com uma atitude, uma maneira de ouvir a identidade portuguesa, de ler a poesia portuguesa, de explorar esses caminhos. Tem a ver com o processo de procura dessa identidade, porque acho que nunca está completamente formada ou definida. Temos de nos ir conhecendo ao longo da vida para nos aproximarmos dessa definição, que é muito pessoal.

Então, se eu perguntar como é que se definiria enquanto artista ao fim de mais de 10 anos de carreira, ainda não me consegue dar uma resposta?

Sei algumas coisas. Consigo dizer que sou praticante do fado, sou uma artista portuguesa, em língua portuguesa, pelo menos até agora. Sou uma pessoa que tem vontade de explorar um novo caminho, não para o género, mas para mim. O meu objetivo é procurar um novo repertório dentro daquilo que é o género musical que eu canto, que identifico como uma linguagem mãe, umbilical, para onde quero voltar cada vez que saio. É sempre acerca do fado. 

Este disco foi quase a continuação da história [em relação ao álbum anterior 'Maria'], mas já não estive tão presa à descoberta das intuições, que está sempre lá na prática do fado. Foi mais a prática dos fados tradicionais, perceber como é que iria construir o repertório, quais a combinações possíveis - fados antigos com novas letras - descobrir poemas neste processo de pesquisa e ao mesmo tempo perceber que o universo do fado não se rege apenas pelo tradicional, mas pelas marchas populares, canções e pequenas ideias de som...

Falando em fado tradicional. A nova geração de fadistas trouxe uma abordagem mais moderna ao fado. Essa 'modernização' não poderá colocar em causa o fado tradicional que os puristas defendem?

Mantenho sempre atitude experimental porque considero que os fadistas de todas as gerações o fizeram. O [Alfredo] Marceneiro, que é um dos elementos que figuram pela admiração e inspiração que me traz sempre, é referenciado neste disco por isso. Ele compôs fados tradicionais que os fadistas desde a geração da Amália começaram a cantar com essa estrutura tradicional. O que é tradicional é a estrutura, não é a antiguidade. Para mim, aquilo que mais me estimula é conhecer bem o género e, de dentro para fora, procurar brechas para experimentar algumas coisas que eu sinto que sejam pertinentes. 

Se calhar muitas destas grandes mudanças no fado podem acontecer num sentido um pouco inverso, que é de fora para dentro, numa proposta de visão exterior sobre o meio do fado ou no retirar de alguma essência ou cor do fado para ser levada a pop. E esses elementos também resultam em peças interessantes, mas aí não penso que o tratamento esteja a ser à volta do fado e sim de outros estilos musicais.

Agora, o fado não muda porque de repente há uma mudança que o artista opera, o fado muda quando toda a comunidade aglutina e aceita certas mudanças, certas nuances, que não estavam lá anteriormente. É o tempo que vai construindo essa narrativa, assim como os fadistas mais novos. Vai sendo um ciclo geracional. 

Essa dor que algumas pessoas têm porque sentem que já não existe o fado como o conheciam, faz parte 

Ser colocada dentro da 'caixinha' do fado tem muito que se lhe diga. O fado é um mundo maior do que à partida se associa.

Há muita gente a gostar de fado, mas também há um preconceito em certas gerações e meios. Vou dar um exemplo interessante: parece que os fadistas podem tocar com os mesmos músicos, porque são fadistas e estão numa casa de fados. Esta ideia por um lado está correta, porque está ligada ao artesanal, de fazê-lo acontecer na casa de fados noite após noite, mas cada artista tem a sua natureza e identidade. E eu, se calhar, identifico-me mais com uns fadistas do que com outros. Somos fadistas, mas muito diferentes entre nós. Escolhemos coisas diferentes para cantar e para ouvir. Não é por sermos fadistas que estamos todos a fazer a mesma coisa.  E isso é rico. 

E os puristas, como falava há bocado, são necessários também. Mesmo essa dor que algumas pessoas têm porque sentem que já não existe o fado como o conheciam, faz parte. Chega a uma altura em que as pessoas já não querem mudança e isso é natural. Mas elas são importantes para manter as regras no lugar e ir ensinando aos mais novos como é que se fazia antigamente.  

Se os fadistas continuarem a usar o fado como um instrumento para revelarem aquilo que querem dizer, o repertório vai sempre renascer como uma língua viva

Há preconceito do público mais jovem quanto ao fado?

Não é necessariamente o público mais jovem... É uma geração ali mais intermédia que tem mais a ver com as conotações, memórias das gerações dos pais, da relação com o fado enquanto género simplório, um bocadinho pobre ou que trata assuntos muito fatalistas e agressivos. 

No outro dia alguém me perguntava se já não me identificava com este fado da 'desgraçadinha'. E eu respondi: o que achas que o fado 'O Quarto' diz? É uma dor muito grande. É um quarto que está tão vazio que nem cabe lá o ar. O que é que isto sugere? Uma angústia? O fado continua a tratar os assuntos do ser humano e não têm de ser todos angustiantes, têm de ser da natureza do ser humano. 

Se os fadistas continuarem a usar o fado como um instrumento para revelarem aquilo que querem dizer, o repertório vai sempre renascer como uma língua viva, com muitas possibilidades que nunca se esgotam, por isso é que sou tão encantada pelo fado.  

O processo de investigação para a construção de um novo disco deve ser interessante? Teve muito trabalho com 'Portuguesa'?

Tive. Fui buscar poetas como Sophia de Mello Breyner [música 'As Fontes] que estão presentes em todas as bibliotecas. Gosto de ir lá revisitá-los porque os poemas mudam, transformam-se. É como se fosse um choque com um poema que te diz como és, mas já lá estava. Há quase como uma indignação: 'mas quem é esta pessoa que me conhece tão bem'? [ri-se]. Por isso quase me dá a ideia que fui eu que escrevi. 

Nós, portugueses, trazemos no sangue e na história qualquer coisa que nos ultrapassa em relação ao fado. Mesmo não sendo o género com que nos identifiquemos, temos uma forma muito particular, diferente e emocional de ouvir o fado

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Acha que os portugueses reagem ao fado de maneira diferente quando comparados com outros públicos estrangeiros?

São experiências distintas. Fora de Portugal acho que os alemães são muito interessantes, dá-me muito prazer cantar para eles. Quanto à pergunta, não tem a ver com a nacionalidade. Tem mais a ver com a ideia de que nós, portugueses, trazemos no sangue e na história qualquer coisa que nos ultrapassa em relação ao fado. Mesmo não sendo o género com que nos identifiquemos, temos uma forma muito particular, diferente e emocional de ouvir o fado. 

Depois há outras culturas que são muito interessadas e trazem um entusiasmo diferente. Os brasileiros têm esta coisa apaixonada, visceral. O sotaque sugere-lhes palavras diferentes que os atrai para outros caminhos. Então quando canto repertório brasileiro, mas com o sotaque português, há uma reação muito forte à nova versão das palavras. 

Os povos são todos muito distintos e é muito bom ter essa experiência de cantar para pessoas tão diferentes.

Fiquei em choque com a morte do Freddie Mercury e tinha sete anos. Lembro-me de o meu irmão dizer-me que ele tinha morrido e eu chorei a morte dele, porque achei que nunca mais o ia ouvirEstreou-se aos 12 anos no Coliseu dos Recreios. Mas já cantava antes...

Sim, mas era uma coisa muito familiar. Era tão familiar ao ponto da minha mãe [fadista Teresa Siqueira] não ter a certeza que eu soubesse um fado até ao fim ou que tivesse capacidade de chegar a um palco do Coliseu e cantar um fado. 

Comecei a ouvir os discos por mim própria. Lembro-me de ficar em choque com a morte do Freddie Mercury e tinha sete anos. Recordo-me de o meu irmão dizer-me que ele tinha morrido e eu chorei a morte dele, porque achei que nunca mais o ia ouvir. Isso foi engraçado, porque também foi acabei por perceber que o artista não morre, ainda mais com uma obra assim. 

Por isso, quando fui ao Coliseu foi uma estreia. Foi a primeira vez que eu cantei para um público sem ser o meu pai, a minha mãe ou os meus irmãos. 

A ideia foi da Carminho?

Sim. 

Porquê?

Não sei, eu queria. Queria e fui! [ri-se].

Ele disse, 'Oh Teresinha, deixa-a ir, que ela canta melhor do que alguns que recebem cachet!'

Mas já queria ser fadista nessa altura?

Eu sabia que gostava de cantar, não sabia que ia ser fadista. Mas foi preciso ir à casa de fados da minha mãe fazer uma espécie de teste para ver se passava - com o Paquito [guitarrista da casa], que era um dos violistas mais incríveis. Ele disse, 'Oh Teresinha, deixa-a ir, que ela canta melhor do que alguns que recebem cachet!'. Só tinha 12 anos, era uma mascotezinha. 

Quais as melhores memórias que guarda da casa de fados onde cantou durante oito anos, a 'Mesa de Frades'?

São muitas memórias... Noites em que se cruzava de repente o Carlos do Carmo, a Beatriz da Conceição e o Camané. Eram noites de muita experimentação, da prática do fado. Tenho memórias de ficar até ao meio-dia com o Pedro de Castro - os clientes já tinham ido embora -  a ouvir discos [depois de uma noite a cantar]. Experiências que são uma escola.

Houve uma falta de pertença e o fado, de alguma forma, trouxe-me isso, trouxe-me um lugar em que pertencia, que me acolheu

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Falando em escola. Partilhava essa sua paixão pelo fado com os seus colegas?

Ninguém queria saber e até tinha dificuldade em ser convidada para as festas de anos por causa disso. Não era nada cool [fixe] e foi difícil fazer amigos. Houve uma falta de pertença e o fado, de alguma forma, trouxe-me isso, trouxe-me um lugar a que pertencia, que me acolheu. Quando vim do Algarve para Lisboa os meus primeiros amigos tinham 60/70 anos e essa experiência tornou-se muito íntima. O fado é a minha casa. 

E depois deste caminho todo, porque é que se licenciou em Marketing e Publicidade?

Porque me enganei. 

Enganou-se?

Devia era ter tirado Literatura. Não é que me tenha arrependido de ter tirado o curso, porque aprendi imensas coisas. 

Nem acreditava que ganhar dinheiro a cantar o fado fosse muito justo, porque era tão fácil para mimA escolha do curso foi para aplicar na carreira de fadista?

Não, não... Nem acreditava que ganhar dinheiro a cantar o fado fosse muito justo, porque era tão fácil para mim. Não achei que fosse a minha profissão, pensava que precisava de um curso, ficar umas certas horas ao computador. São uns conceitos que a sociedade nos põe, não sei porque é que tinha essas ideias idiotas, mas também era muito jovem.

O meu pai é que me disse: 'não só é um privilégio fazer-se aquilo que se gosta, porque é muito raro, como ao mesmo tempo vai dar trabalho, não penses que é fácil, vai ser difícil e vai custar muito'. Depois havia outra coisa: não queria que maltratassem o fado. Não era vergonha, mas tinha pudor em expô-lo.

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Foi aí que decidiu fazer uma viagem à volta do mundo. 

Nessa viagem encontrei todos os dias pessoas novas e todas elas perguntavam-me primeiro uma coisa: 'Who are you?' ['Quem és tu'?]. Tive tentações para mentir, mas não queria fazê-lo e às tantas comecei a dizer a verdade. 'Mas isso é interessante. Cantas uma música tradicional do teu país?'. Percebi que há imensos países sem música tradicional e isso chocou-me profundamente. Achava que o mundo era todo igual, só mudava a língua. 

Nesse encontro comigo própria em que tinha de descrever quem eu era, comecei a conhecer-me, a ganhar confiança pela reação dos outros e de como me foram apoiando. Quando voltei vinha com mais confiança. Entreguei-me totalmente. 

Tem uma série de concertos marcados. Ainda fica nervosa quando sobe ao palco?

O nervosismo pode prejudicar, mas há sempre uma adrenalina, uma procura para saber quem vai ser o público, quem vai estar lá, como é que vão reagir. É sempre bom.

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