Gostava muito de estar num circo como palhaço e um dia assim o fará. Gosta de fazer os outros rir e desde sempre quis seguir o mundo da representação. João Ricardo é ator e nunca mudaria de profissão.
Criado pela avó, nem sempre teve uma vida fácil. Recentemente, foi-lhe diagnosticado um tumor maligno no cérebro e teve de ser operado de urgência. Esteve uma semana sem se lembrar de nada e passou quase quinze dias no hospital.
Neste momento, faz tratamentos de radioterapia e quimioterapia todos os dias.
Em entrevista exclusiva ao Fama ao Minuto, o ator confessou ser um homem de fé - acredita em Jesus, não em Deus - e acha que foi um milagre ter passado por tudo isto sem ter sentido o “mínimo de dor” e continuar bem.
Desde sempre foi mais reservado no que toca à sua vida pessoal. Afinal, quem é o João Ricardo?
Sou uma pessoa normalíssima. Feliz, essencialmente isso. Estou bem com a vida. Tudo o que me possa acontecer, passa. Tem coisas boas e más. Tenho este privilégio de ser mais conhecido, mais mediático do que outras pessoas. Não me torna mais feliz, torna-me um ser normal.
Teve uma infância feliz?
Não era a infância que eu queria, mas foi a infância que me fez tornar a pessoa que sou hoje. Humilde umas vezes, vaidoso e cruel outras.
Foi criado pela sua avó Joana. Ela desempenhou bem o papel de mãe e avó?
Sim, fez bem o papel de mãe. Também acho que nunca pôde ser mãe do seu filho porque o meu pai também viveu longe. Ela era criada interna e o meu pai foi criado nessa altura por amas. Se calhar ela viu no neto o filho que não pôde educar.
Quais são as melhores memórias que tem dela?
As memórias que me ficam é que o meu pai dava-me alguns castigos e eu ia para a cama sem jantar. Ela levava-me sempre, durante a noite, alguma coisa para eu comer. Era uma velhota divertida. É nela que me revejo em algumas coisas. Foi a mulher que mais me deu mimo na minha vida. Quando falo da minha avó há sempre um nó na garganta. Tenho saudades dela.
Conviveu com a sua mãe, apesar de ter sido por pouco tempo?
Muito poucas vezes. Estive mais com a minha mãe no período final da vida dela. Acho que ficaram muitas coisas por dizer, mas foram as circunstâncias da vida, do divórcio aos quatro anos e de um menino que naquela idade ficou sem mãe.
Se a encontrasse hoje, o que lhe dizia?
Porque é que não nos encontrámos mais cedo. Amo-te de outra maneira. Mas não a recrimino por nada. Durante um certo tempo acho que ela devia ter prestado mais atenção, mas são as circunstâncias da vida. Tenho muito orgulho na minha mãe, mas a minha avó foi o meu abrigo.
Como e quando descobriu que queria ser ator?
O meu pai uma vez levou-me ao cinema Odeon porque ele trabalhava na rua das Portas de Santo Antão [na Baixa de Lisboa], e era ali que existia o grupo de amigos dele. Ele era do Benfica e ali era a sede do Benfica. Havia o Coliseu dos Recreios, ele era amigo do dono daquela altura que era o Ricardo Covões, e havia ali uma série de cinemas. No Odeon passava um filme nessa altura que era ‘O Destino Marca a Hora’, com o António de Matos. Vi aquele filme, nessa altura devia ter nove anos, não era para a minha idade mas como o meu pai conhecia toda a gente, eu podia ir. Cheguei a casa, fechei o meu pai no quarto e disse: ‘Eu quero ser ator'. Ser ator, ou ser palhaço.
Foi difícil chegar até aqui?
Eu tenho uma estrela que me protege e, exceto um período na minha vida, tudo tem sido fácil. Não tenho razão de queixa. São a SP e a SIC que me protegem também. Mas há colegas meus que sim, que vivem com mais dificuldade.
Nunca pensou em desistir?
Nunca. Também não saberia fazer outra coisa. Gostaria de ter sido cozinheiro também, bailarino ou de estar num circo como palhaço.
Hoje escolhia outra profissão?
Não. Ator para sempre.
Das personagens que fez até aqui qual acha que foi a mais acarinhada pelo público?
Acho que foram todas. Passei sempre ao lado do facto de as pessoas não me conhecerem. Com isto que aconteceu, sinto que as pessoas vêm ter comigo e, afinal, tenho mais peso do que tinha e as pessoas reconhecem-me pelo trabalho.
Há alguma personagem com que se tenha identificado mais?
Não. Gosto de todas. No princípio nunca gosto. Depois, o processo vai por outro caminho e eu gosto e sinto o feedback do público.
Os atores mais velhos não são reconhecidos pela geração de uma classe mais nova que se acha mais vedetaÉ difícil ser ator em Portugal?
Para alguns colegas meus sim, é difícil. E depois há uma geração mais nova que não respeita os mais velhos. Os atores mais velhos não são reconhecidos pela geração de uma classe mais nova que se acha mais vedeta.
Acha que os atores mais antigos só são reconhecidos quando morrem?
Está um bocado assim. Por exemplo, não morreu, felizmente, o Ruy de Carvalho. É uma classe que passa por ele que o respeita porque tem de respeitar, mas é o senhor Ruy de Carvalho e a dona Eunice que deram muito. Se uma geração como a minha, que hoje tem benefícios e está bem, é graças a essa classe que lutou . Alguns passaram fome, mas se calhar também foram mais felizes do que alguns de nós.
O que retira destes anos de profissão?
Uma enorme felicidade. Sou muito feliz.
Quem é a pessoa que mais ama?
O Rodrigo [filho] é a pessoa que eu mais amo na minha vida. Dizer a palavra ‘amo-te’ não digo. O Rodrigo é a única pessoa a quem eu consigo dizer amo-te.
O que significa para si ser pai?
É o ato mais importante da minha vida. Pelo menos tentar, com todos os erros que eu possa cometer como pai, que ele seja mais feliz e ser melhor do que eu fui. Algumas pessoas chamam-me à atenção por eu mimar demais o meu filho, essencialmente com prendas. Mas se calhar é dar aquilo que eu não tive na minha infância. Às vezes sinto que posso estar a errar, de facto, mas não consigo [fazer de outra forma] e depois com tudo o que aconteceu ainda é pior.
O que é que mudou com a vinda do Rodrigo?
Tornou-me mais inquieto, mais indisciplinado em algumas coisas, mais feliz.
Qual é o exemplo que lhe quer passar?
De honestidade. Essencialmente que ele respeite as pessoas.
Gostava que ele seguisse a profissão do pai?
Nunca pensei nisso, mas ele diz às vezes que gostava de ser ator, outras que gostava de ser palhaço e agora anda numa de querer ser artista do Cirque Du Soleil. O meu filho terá opção de escolha e terá as pernas para andar a partir dos 14/15 anos. Eu fui mais cedo, foi o destino, ele não terá de ter o mesmo destino nem a mesma crueldade que o pai teve. Quero que ele seja feliz e eu estarei aqui. A partir de uma determinada idade já não quero estar, de todo, mas é a parede onde ele se pode encostar.
Do que se recorda do dia em que foi para o hospital?
Pensava que estava a almoçar. Estava com a Joana, com a filha da Joana e com o meu filho e foi ao jantar. A partir dessa altura eu apaguei, segundo me dizem, e foi a Joana que me levou para o hospital.
Quando acordei pensava que estava na mesma sexta-feira [que tinha sido operado] e tinha a enfermeira aos gritos a mandar-me para a cama e eu sem saber nada. Aí percebi que estava no hospital. Um dia depois o médico esteve 25 minutos a falar comigo, a fazer exercícios, disse-me o que é que eu tinha.
Sei que tenho um cancro que é maligno e que está na cabeça. E eu divirto-me com issoJá tinha tido sintomas anormais antes de ter ido para o hospital?
Acho que não. Podia andar um bocadinho cansado, mas assim sintomas não tinha. Às vezes tinha o humor [alterado] e não tinha paciência. Mas não me lembro de nada e por isso é que digo, porque acredito e sou cristão, que foi um milagre. Foi dito às pessoas que eu podia ficar todo paralisado de um lado e havia a hipótese de ter de andar de cadeira de rodas. Uma coisa que ficou durante uns tempos é que eu tenho de estar acompanhado. As pessoas que dizem um milagre, porque é que eu estou bem. Quando as pessoas o dizem eu brinco com isto que tenho porque nunca me apercebi de nada. Sei que tenho um cancro que é maligno e que está na cabeça. E divirto-me com isso.
Como é que reagiu quando soube que tinha cancro?
Normal, porque eu não me apercebi de nada. Sei que vou todos os dias ao tratamento e que vou dormir 25 minutos.
Estou ao lado de muitas pessoas que eu sinto que estão à beira da morte. Dá-me uma tristeza profunda e é difícil estar na oncologia e ver as pessoas que passam por nós.
Sinto que não tenho nada e que sou feliz. Tenho um penteado mais engraçado, um risco ao meio.
Qual é a sua interação com as pessoas que estão à sua volta quando está no tratamento?
Eu afetuosamente apaixono-me por pessoas. Gosto de pessoas. Há algumas ali que eu não tenho sequer a coragem de dirigir a palavra porque estão numa situação quase de pré-morte. Há um velhote que eu chamo 'o Bolinhas' e dá-me alegria vê-lo. Acho que anda ali há 18 anos. Depois há uma funcionária do [hospital] Santa Maria a que dou um beijinho todos os dias assim que lá chego. Sinto que sem querer há ali um certo grau familiar entre as pessoas que se encontram ali todos os dias.
Hoje, se entrasse lúcido para o hospital e me dissessem que eu tinha de fazer uma intervenção cirúrgica à cabeça durante sete horas, eu diria que não.
Acha que não tinha força para lutar se tivesse tido a noção do que estava a acontecer?
Só tinha percebendo que tinha o Rodrigo na minha vida e que ainda lhe fazia falta. Se não, diria que não.
Ser intervencionado durante sete horas à cabeça… eu reajo muito mal à dor. Tudo bem que estava anestesiado, mas há uma fantasia dentro da minha cabeça que é: ‘E se eu acordasse a meio?’. Evidente que não acordava, mas era o medo de ter esta intervenção.
É um homem de fé?
Tenho fé. Acredito absolutamente em Cristo, em Deus não. Vou à igreja todos os dias. Não sou beato. Tenho esta necessidade de afirmar que acredito em Jesus e pessoas que estão deste lado dizem que é um milagre. Fico sempre na dúvida, mas vou acreditando. Pessoas da equipa médica não estavam à espera que o resultado fosse tão grande.
Já disse várias vezes que se sente um homem protegido. Acha que o Gonçalo Diniz é uma das pessoas 'enviadas' para o proteger?
Nunca pus essa questão se seria enviado. Agora, que foi um amigo de cabeceira que esteve ali para me fazer rir, foi. Há esta mera coincidência, quando foi ele eu também estava ali. Acho que ele sofreu um pouco mais do que eu porque tinha de estar oito horas seguidas a fazer tratamento e eu faço 20 minutos. O Gonçalo é o amigo que nós precisamos para nos rir, mas é um cúmplice.
Como é que conheceu o Gonçalo?
Contracenámos numa novela e daí nasceu a ideia de fazermos uma peça os dois juntos. A partir de aí a amizade foi crescendo. Depois, para mal dele, foi a altura de ele ir para o hospital comcancro. Estive muito com ele nessa altura e agora foi a vez de ele estar ao meu lado. Para ser honesto, acho que ele me retribuiu mais a mim do que eu lhe dei a ele. Também estamos de maneiras distintas.
É um homem de fé também. Acredito piamente nisto e ele acredita também.
Se tivesse de deixar uma mensagem às pessoas que estão a sofrer com o cancro, o que dizia?
Da experiência que eu tive, e acho que nunca poderei dizer isto às pessoas se não elas levam a mal, mas dizia 'divirtam-se, se falta tão pouco'. Eu acho que nunca vou morrer, mas dizia às pessoas 'divirtam-se'. Mas isto é muito cruel para as pessoas que estão no hospital, que chegam todos os dias na ambulância e que vemos que não vão durar muito tempo.
Quando eu estive internado a televisão estava dois metros acima da cabeça e eu via pessoas a olhar para o chão, outras a olhar para cima. O que é que resta da vida destas pessoas? Eu penso só nesta situação que é: Se eu soubesse para o que ia, isso seria terrível para mim. E nunca ter dado por nada, foi o melhor, é o melhor.
Já começou a trabalhar?
Sim, e vou entrar num projeto que começa em janeiro ou fevereiro.
Sente-se mais cansado?
Não, mas a andar mais do que andava. Mais divertido, mais calmo, mais alucinado em algumas coisas, com mais vontade de rir, de fazer mais parvoíces e de ter ideias de fazer projetos e coisas. Normalíssimo.
Falta-me ver o meu filho crescer e dizer que eu fui um grande pai. Falta-me atravessar o estreito de Gibraltar a nado. Falta-me ser palhaçoNa rua, acha que as pessoas o sentem mais próximo e vêm ter mais consigo?
Algumas pessoas sem querer eu evito. Outras pessoas esqueceram o lado do ator e dizem: ‘Eu pedi muito por si e rezei muito por si. Gosto muito de si e já temos saudades suas’. Mas como achei sempre que passava despercebido porque entrei poucas vezes em revistas, achava que as pessoas não me conheciam. Sou uma pessoa normalíssima e é assim que eu quero ser. Mas agora sinto que há um feedback de muitas pessoas.
Falta completar alguma coisa na sua vida para ser completamente feliz?
Falta-me ver o meu filho crescer e dizer que eu fui um grande pai. Falta-me atravessar o estreito de Gibraltar a nado. Falta-me ser palhaço.
Tinha algum objetivo de vida?
Até agora todos os objetivos estão cumpridos. Há sempre uma coisa que eu acho que podia ser melhor ou podia ter corrido melhor.
De hoje em diante, vai mudar alguma coisa na sua maneira de ser ou vai continuar tudo igual?
Vou fazer tal e qual o que fiz até hoje, só moderado na comida. De resto tal e qual ou ainda pior.
Sente que a vida foi justa consigo?
Foi benevolente comigo. Acho que fiz muitas asneiras. Sou um pecador nato, por isso é que digo que foi benevolente. Acho que a vida gosta de mim.
Considera-se um homem cheio de sorte?
Tenho muita sorte.
Olhando para trás nestes 52 anos de vida, mudava alguma coisa?
Não tenho o poder mágico e divino de ressuscitar algumas pessoas. Por isso, se pudesse voltar atrás ou tivesse esse poder, ressuscitava a minha avó e a minha mãe para lhes dizer muitas coisas. Mas faria tal e qual o que fiz até hoje.
Qua é o melhor filme que retrata a sua vida?
‘O Destino Marca a Hora’ porque foi pelo qual eu fui ator.
Tem medo da morte?
Eu não vou morrer. Direi isso sempre a toda a gente e venho a dizer. Eu não morro.