'Estamos grávidos! E agora?': é este o nome do livro lançado pela enfermeira Carmen Ferreira, conhecida como a 'enfermeira dos bebés', pelo trabalho que tem vindo a desenvolver nesta área.
O livro promete ser um manual que abrange os assuntos mais importantes para os pais, desde a gravidez até aos primeiros meses de vida do bebé.
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Carmen, num momento que se revelou de grande descontração.
Como é que surgiu a ideia de escrever o livro?
Era uma necessidade que tinha porque as pessoas perguntavam sítios fidedignos para recorrer e estava tudo muito disperso. Como dou cursos de preparação para o parto também precisava de apontamentos meus escritos, um género de manual que tivesse tudo.
Quando é que descobriu que esta era a sua vocação?
Acho que foi desde de pequenina. Quando me inscrevi na licenciatura já sabia qual seria a minha especialidade. Já tinha tudo planeado, nunca pensei num plano B para a minha vida.
E lembra-se dos primeiros desafios de quando começou a exercer?
Era nova na equipa e tive um pouco de choque com a prática que encontrei. Foi assim uma fase de rebeldia em que mostrava que havia novas formas de fazer as coisas.
É possível imaginar que a Carmen se depare com muitas ‘modas’ na sua área, certo?
Em 10 anos já vi muitas perspetivas. Por exemplo, nas regras do sono, que têm mudado tanto. O conhecimento nesta área é produzido com muito fluxo, muito rapidamente e temos de nos atualizar à velocidade da luz, quase.
E o ‘Dr. Google’ dificulta o seu trabalho?
Não ajuda. Acho que por haver tanta informação as pessoas acabaram por ficar confundidas. Isso veio a aumentar a necessidade de a sistematizar e orientar os casais.
Dúvidas? Na gravidez está muito relacionado com o trabalho de parto. É um tema forte que para algumas mulheres acarreta muitos medos
E quais são as grandes dúvidas dos pais?
Na gravidez está muito relacionado com o trabalho de parto. É um tema forte que para algumas mulheres acarreta muitos medos. Há pessoas que me procuram até na conceção para conseguirem desmistificar e avançar para uma gravidez. É engraçado como as histórias que ouvimos na família nos condicionam. Depois temos também o processo da amamentação e os cuidados com o bebé. Claro que há sempre casais que têm especificidades que temos de adequar um pouco, por exemplo, em relação aos segundos filhos e à nova rotina.
Considera que há uma tendência dos pais procurarem aquilo que é mais ligado à natureza?
Acho que sim, estamos a regressar um pouco a essa tendência de naturalismo e especificamente nesta área da maternidade, porque são processos que não estão associados à doença, são processos fisiológicos e as pessoas pretendem vivê-los sem grandes intervenções médicas.
Qual a posição da Carmen em relação aos partos feitos em casa?
Percebo a parte do conforto da grávida e do casal estar em casa e a sua importância para um trabalho de parto fisiológico, porque é um ambiente onde sentimos mais conforto e intimidade. A questão é que não conseguimos atuar tão prontamente no caso de haver alguma ocorrência. Na maioria das gravidezes à partida é tudo linear, à partida… porque quando as coisas correm mal não é só para um lado, é para os dois e temos duas vidas em risco.
Penso que deveria haver um intermédio que seria humanizar as nossas salas de parto Neste sentido, penso que deveria haver um intermédio que seria humanizar as nossas salas de parto para os casais se sentirem mais em casa e darmos essa autonomia às grávidas com a vigilância associada. Foi isso que também aumentou as nossas taxas de sucesso na obstetrícia, também há vantagens nisto. Temos é de repensar algumas práticas para humanizar o processo. Aqui encontro-me neste meio termo.
O facto de haver relatos de experiências negativas com partos hospitalares aumenta o medo das grávidas?
Sim e sabe que hoje em dia há um fenómeno que é falado que é a violência obstétrica. As pessoas cada vez mais têm noção de que algumas práticas não são normais e não querem ser alvo delas. Por isso é que considero que temos muito a melhorar nas nossas maternidades e percebo essa opção das pessoas, porque há situações muito traumatizantes que impedem a mulher de ter o próprio filho.
A maioria das mulheres ainda tem muito medo da dor, ainda encara o parto como um sofrimento (...). Não o encaram como um momento de poder delas ou até mesmo de satisfaçãoEntão quais são os maiores medos no que a isto diz respeito?
Tenho mulheres que chegam e vêm com uma ideia de querer ter uma cesariana, porque não sabem a fisiologia de um trabalho de parto. Depois há senhoras que querem muito o parto vaginal, portanto há de tudo. A maioria das mulheres ainda tem muito medo da dor, ainda encara o parto como um sofrimento e não um momento de transição com características específicas. Não o encaram como um momento de poder delas ou até mesmo de satisfação.
Qual o mito que tem de desmistificar todas as semanas?
Há vários, por exemplo, qual o alimento que tenho de comer para produzir mais leite. É como as dietas, as pessoas estão sempre à espera de alguma coisa milagrosa e não é bem assim, o que é preciso é mais trabalho e estimulação da mama. Outro é: que alimentos devo evitar durante a amamentação, por exemplo. Também há muitos mitos relacionados com as cólicas dos bebés.
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A maioria das mulheres não conhece o seu corpo.Há ainda outros que têm a ver com o corpo da mulher. A maioria das mulheres não conhece o seu corpo e tem a ver com as perdas de sangue vaginais: o que é que período, o que é spotting, uma hemorragia de privação... as pessoas não sabem diferenciar. Tenho também muitas mulheres que acham que é normal perder urina a seguir aos partos e não é, é comum, mas não é normal.
Os casais estão a ter cada vez mais dificuldade em vivenciar a sexualidade E ainda há tabus quanto ao sexo durante a gravidez?
Está cada vez pior a nível de mentalidade masculina e nesse sentido até já fiz um post [no Instagram] de um foguetão a dizer aos homens: o vosso pénis não é um foguetão, portanto não chega à cabeça do bebé. Não tenham medo porque há benefícios da atividade sexual na gravidez, até para desencadear o trabalho de parto mais espontâneo. Não tem de ser um 'bicho de sete cabeças'. Os casais estão a ter mais dificuldade em vivenciar a sexualidade, ou pelo menos comunicam mais essa dificuldade.
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E esse receio é mais da parte do pai portanto...
Eu sinto isso. Há muito mais receio e limites na cabeça dos homens do que propriamente das mulheres que chegam muito mais esclarecidas nesta questão.
Falando em pais... estão mais presentes ao longo de todas as fases?
Penso que os homens estão a mudar muito e a sentir que cada vez mais o seu papel é ativo. Talvez ainda estejam um pouco perdidos, sem saber onde se enquadram. É importante orientá-los e explicar-lhes o que vai acontecer e qual é a função deles. São fundamentais num trabalho de parto, na gravidez, no processo de amamentação, etc. Nós é que muitas vezes, como profissionais, nos esquecemos deles e não os incluímos como parte integrante deste processo.
Há muitas falhas de bom senso. As pessoas perdem a noção, sobretudo com recém-nascidosQuais as coisas que devem ser evitadas dizer sobretudo a uma grávida ou aos pais?
Há muitas falhas de bom senso. As pessoas perdem a noção, sobretudo com recém-nascidos. Evitar comparações é fundamental e não esquecer que aquela mulher está grávida, mas não deixou de ser quem era. É uma pessoa, claro que o bebé importante, mas a mulher também existe. [Devemos também] Não julgar algumas opções. Tenho grávidas que ainda não fizeram a mala às 33 semanas e tenho outras que fizeram às 20. Há muito julgamento e isto leva a processos de culpa nas mulheres.
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O pós-parto tem os desafios do recém-nascido e das hormonas aos saltos. A mulher está mais sentida e há comentários que podem destruir um pouco essa auto-estima. Podem pôr em causa o processo de amamentação e a relação do casal. As pessoas têm de ter noção de como se comportar.
Estão tão pouco habituadas a estar com bebés, que acham que são adultos e fazem coisas completamente inacreditáveis Há algumas que querem acordar um recém-nascido para ver a cor dos olhos, mexem nas mãos, dão beijinhos, coisas que não são de muito bom tom fazer. Estão tão pouco habituadas a estar com bebés, que acham que são adultos e fazem coisas completamente inacreditáveis. Lembro-me de mães me dizerem que, por exemplo, nos jantares de Natal, com bebés pequeninos lhes queriam dar comida. Estamos a falar de bebés que só bebiam leite. É um pouco complicado gerir isto numa família, quando são por exemplo as sogras ou os avós...
Quais as regras de ouro nesse caso?
Não dar beijos a recém-nascidos, não tocar nas mãos ou pelo menos higienizá-las. Quem está doente não vai visitar. No livro há um destacável para as pessoas terem mais noção do que se espera delas.
É preciso perceber que o corpo demorou 40 semanas a engravidar e tem de ter no mínimo 40 semanas para a recuperação acontecer E ainda existe uma grande pressão para a mulher recuperar o corpo que tinha antes da gravidez?
Muita. Por elas, pela sociedade, por todos...
E o que é que diz a essas mães?
É preciso perceber que o corpo demorou 40 semanas a engravidar e tem de ter no mínimo 40 semanas para a recuperação acontecer. Tal implica muito trabalho e uma dedicação ao corpo. É fundamental não só pela parte estética, mas também pela física, porque é necessário para uma próxima gravidez, para o seu bem-estar, para uma saúde pélvica.
A amamentação é também uma experiência diferente para todas as mulheres, certo?
É de facto mais fácil para umas do que para outras, dependendo da experiência que têm. Há pequenos pormenores, como por exemplo, saber ver a boa pega, a posição do bebé a mamar, dos lábios, da boca. Há senhoras que são muito mal orientadas nas maternidades e isso pode confundir os bebés e fazer com que o processo não seja tão fácil. Há vários fatores externos em causa e uma pressão enorme que existe para os bebés recuperarem peso. Só que em dois, no máximo três dias, isso é quase impossível. Temos objetivos irreais, porque não conseguimos seguir aquela família do início ao fim, tal como lhe disse.
Se tivesse a oportunidade de falar com o Ministério da Saúde, o que é que diria?
O que gostava era que houvesse o seguimento destes casais por um profissional de referência na gravidez, parto e pós-parto. Temos uma vigilância muito boa a nível de consultas e exames, mas depois falhamos muito no pós-parto. Acho que deveria haver uma equipa desde o início da gravidez até aos primeiros meses, porque já é uma pessoa de confiança. Se eu apanhar hoje um enfermeiro e amanhã outro, há aqui algumas coisas que se perdem. Tem de haver uma continuidade de cuidados.
Temos de pensar em incluir o pai como uma pessoa no internamento Temos de pensar em incluir o pai como uma pessoa no internamento. A maioria das maternidades nem inclui a permanência do pai no pós-parto, ou seja, o pai ainda nem sequer conhece muito bem o seu bebé. Nos privados isto não acontece, mas nos públicos sim. Temos de pensar em incluir o pai como uma pessoa no internamento.
Sem dúvida temos [também] de falar nos rácios da maternidade e do negócio à volta dos partos que se cria entre público e privado. Tem de se repensar essa questão com mais seriedade para termos ganhos em saúde e experiências positivas, porque interessa a todos nós termos mais cidadãos. Ainda há trabalho a fazer.