"Cor das bengalas é código". O que precisa de saber para decifrá-lo

Saiba quantas cores de bengalas existem e o que significa cada uma delas, conforme explica a especialista Andreia Neves, psicóloga na Associação Retina Portugal.

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Ana Rita Rebelo
26/01/2023 08:50 ‧ 26/01/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

Há um ditado popular que diz que 'o pior cego é aquele que não quer ver'. E a realidade está à vista. Imagine este cenário. Ouve-se o som de uma bengala a tocar no chão. As normas do politicamente correto determinam que devemos ajudar. Confia cegamente no seu instinto? "Muitas pessoas desconhecem, mas a cor das bengalas é um código", explica Andreia Neves, psicóloga na Associação Retina Portugal (ARP), em entrevista ao Lifestyle ao Minuto

Dados partilhados pela ARP mostram que cerca de 590 mil portugueses tem baixa visão, uma condição diferente de cegueira total e que não pode ser corrigida com o uso de óculos, lentes de contacto, medicação ou cirurgia. Esta patologia pode manifestar-se desde o nascimento ou ser adquirida ao longo da vida, na sequência de acidentes ou traumas oculares.

Para estas pessoas, a bengala verde torna-se, em muitos casos, companhia indispensável. No entanto, antes de existir, "ocorreram situações em que pessoas ofenderam outras com baixa visão que usavam bengala branca, porque ajudaram-nas a entrar num comboio ou num restaurante e depois viram essa mesma pessoa a ler uma revista ou a ementa", destaca Andreia Neves. O que acontece é que, "apesar de poder necessitar de ajuda para ver/identificar/localizar alguma coisa, este utilizador ainda tem algum resíduo visual".

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O que é baixa visão? 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma condição que implica uma acuidade visual inferior a 3/10 (cerca de 30% da visão normal) e/ou um campo de visão igual ou inferior a 10 graus, mesmo com correção com óculos e/ou lentes ou após tratamento clínico (medicamento e/ou cirurgia). Na prática, trata-se de uma visão severamente comprometida, mesmo após correção ou tratamento, que confere um certo grau de incapacidade e de perda de autonomia à pessoa que dela padece. 

É certo que a existência de familiares diretos com um quadro de baixa visão de raiz genética pode aumentar a probabilidade de uma pessoa vir a ter baixa visão, mas, na verdade, ninguém está livre

Que tipos existem?

Alguns especialistas afirmam que existem tantos tipos de baixa visão quanto o número de pessoas que vivem com esta condição. Ainda assim, toda esta pluralidade pode ser organizada em quatro tipos genéricos que podem coexistir na mesma pessoa. Falamos de:

Cegueira central: típica em casos como degenerescência macular da idade (DMI) ou Stargardt, por exemplo;

Cegueira periférica: comum em quem sofre de glaucoma ou retinopatia pigmentar;

Escotomas ou ilhéus de visão: típica em casos de retinopatia diabética ou síndrome de birdshot.

Visão turva: frequente em casos de catarata.

Que categorias existem para determinar a gravidade desta doença? Quais as diferenças?

É importante distinguir a visão clínica da visão funcional. A visão clínica resulta da medição da acuidade e do campo visual em comparação com uma referência de 'visão normal'. Esta medida objetiva feita pelos especialistas (médicos ou ortoptistas) nem sempre reflete o grau de eficiência com que a pessoa com baixa visão utiliza o seu resíduo visual. Na verdade, com um programa de reabilitação adequado é possível desenvolver estratégias para que a pessoa com baixa visão tire melhor partido do seu resíduo visual. Neste ponto, também a seleção e a aprendizagem de utilização dos produtos de apoio mais apropriados podem fazer a diferença na otimização da visão funcional de pessoas com baixa visão. De facto, há casos de pessoas com 5% de visão que são mais autónomas e estão mais adaptadas às tarefas do dia-a-dia do que pessoas com 15 ou 20% de visão. Também a atitude com que se encaram as dificuldades de visão acaba por influenciar a eficiência na utilização dessa visão, ainda que baixa.

Como é diagnosticada esta condição?

A baixa visão é diagnosticada por médicos especialistas de oftalmologia e/ou neuro-oftalmologia. Pode ser o resultado direto de uma doença do sistema ocular e/ou neurológica, ou pode ser mais um sintoma de outras doenças sistémicas, pelo que pode ser necessária a articulação entre médicos especialistas de diversas áreas, não só no diagnóstico, mas também no acompanhamento ou eventual tratamento dessa condição.

Quais os sintomas a que devemos estar atentos?

Podem passar por dificuldades na leitura, em reconhecer rostos, identificar o destino de autocarros ou ler tabuletas ou letreiros, em orientar-se na rua, identificar obstáculos, em ler as legendas na televisão ou em localizar uma sinalética (como um semáforo, por exemplo).

A baixa visão é congénita ou pode surgir mais tarde na vida?

Pode ser congénita e manifestar-se muito cedo na infância, ser congénita e manifestar-se mais tarde na vida ou ser adquirida devido a um largo espectro de situações como doenças sistémicas (como diabetes e, entre outros, um acidente vascular cerebral), stress, demasiado esforço ou hábitos de vida pouco saudáveis ((como o stress, alimentação desequilibrada, falta de descanso e falta de exercício físico) ou por lesão (descolamento de retina e afetação do córtex visual, por exemplo). É certo que a existência de familiares diretos com um quadro de baixa visão de raiz genética pode aumentar a probabilidade de uma pessoa vir a ter baixa visão, mas, na verdade, ninguém está livre de vir a padecer de um quadro de baixa visão.

Perdas pouco expressivas de visão, nomeadamente da visão periférica, podem ser imperceptíveis pela pessoa e, no entanto, constituir um primeiro passo para um quadro potencialmente grave

Quais as causas, sobretudo em Portugal?

Portugal carece de um estudo sério sobre a incidência da baixa visão na sua população. Existem alguns serviços de prestação de cuidados de saúde, tanto públicos como privados, que intervêm na identificação, acompanhamento e reabilitação de pessoas com baixa visão, mas que, infelizmente, não estão articulados, podendo a mesma pessoa ser utente de vários serviços. A ARP  tentou inserir duas questões relacionadas com a baixa visão nos últimos censos de 2021, mas sem sucesso. Os números que temos (entre 500 a 600 mil pessoas com baixa visão em Portugal) não passam de uma estimativa baseada na incidência da baixa visão em outros países europeus, nomeadamente a Alemanha e Inglaterra. Desta forma, não é possível identificar causas específicas da baixa visão no país, simplesmente porque não existem estudos que as fundamentem. Ainda assim, tirando os quadros de baixa visão congénita, as principais causas prendem-se com a idade (DMI), fatores ambientais e hábitos de vida pouco saudáveis e doenças sistémicas como a diabetes, por exemplo. Também o consumo excessivo de drogas, álcool e alguns medicamentos podem 'facilitar' a emergência de quadros de baixa visão.

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Dizia que ninguém está livre de vir a padecer desta condição. No entanto, existem pessoas em maior risco?

De facto, ninguém está livre de vir a adquirir um quadro de baixa visão, pelo que pode ser algo perigoso indicar um ou mais grupos de pessoas como sendo grupos de risco, mas toxicodependentes, diabéticos e pessoas a partir dos 65 anos devem estar mais atentos à sua visão. Ainda assim, todas as pessoas devem consultar o seu oftalmologista anualmente ou, pelo menos, de dois em dois anos. Pessoas com quadros de baixa visão instalados (e dependendo dos quadros) ou com familiares diretos com baixa visão devem consultar o seu médico oftalmologista de seis em seis meses ou, pelo menos, uma vez por ano. A nossa visão pode sofrer flutuações na sua qualidade decorrentes do cansaço, do stress, entre outros. Contudo, perdas pouco expressivas de visão, nomeadamente da visão periférica, podem ser imperceptíveis pela pessoa e, no entanto, constituir um primeiro passo para um quadro potencialmente grave. Um oftalmologista atento pode detetar estas alterações de forma atempada e prevenir a evolução para um quadro de baixa visão.

Que complicações podem surgir?

É uma situação muito variável e depende de variadíssimos fatores. Claro que um dos maiores receios de muitas pessoas com baixa visão é a perda desse resíduo visual, por pouco que seja. Em situações de baixa visão congénita ou precocemente adquirida, que se manifesta na primeira infância, as crianças (muitas vezes, sem a consciência do que é 'ver bem') tendem a adaptar-se mais facilmente à falta de visão, desenvolvendo estratégias que lhes permita ter uma vida o mais 'normal' possível. Cedo na adolescência começam a ter consciência do que veem e do que não veem e, após a revolta típica desta fase da vida, constroem um plano de vida compatível com as suas limitações.

Nos casos em que a baixa visão é adquirida numa fase mais avançada da vida leva à perda da autonomia, resultando muitas vezes no desenvolvimento de patologias do foro psicológico ligados à falta de autoestima, à ansiedade e à depressão. A perda da visão na idade adulta, seja ela abrupta ou progressiva,  conduz muitas vezes à perda de capacidades para executar as suas tarefas laborais, em manter o posto de trabalho e a não ver soluções para a reorientação da carreira, o que acaba por levar a problemas económicos. Também a família sofre com a perda da visão e da autonomia por um dos seus membros, a começar pela incapacidade de perceber sequer o que a pessoa vê e não vê, bem como distinguir o que a pessoa consegue fazer das tarefas em que irá precisar de ajuda e saber como ajudar. As deslocações na rua também podem tornar-se um foco de dificuldades, o que pode resultar ao isolamento e a problemas sociais.

Tratando-se de uma condição que não pode ser corrigida com o uso de óculos, lentes de contacto, medicação ou cirurgia, que estratégias podem ser implementadas para melhorar a vida destas pessoas, no sentido de lhes conferir mais autonomia?

As estratégias variam muito com as características da visão que, por sua vez, variam muito de pessoa para pessoa, mesmo que tenham o mesmo diagnóstico. Estas estratégias podem passar por treinar a sensibilidade das mãos e dos dedos para realizar algumas tarefas, como identificar dinheiro ou cozinhar, aprender técnicas de orientação e mobilidade com ou sem a utilização de bengala para deslocações mais seguras, recorrer a tecnologias de apoio para tarefas de leitura e ainda treinar a audição para utilização de equipamentos pessoais como telemóveis ou computadores, com recurso a leitores de ecrã. O mais importante é que as estratégias sejam adequadas e adaptadas às necessidades específicas de cada pessoa.

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Qual a diferença entre bengala branca e bengala verde?

Muitas pessoas desconhecem, mas a cor das bengalas é um código. Uma bengala branca indica que o seu utilizador é cego. Porém, se um dos segmentos da bengala branca, normalmente, o mais próximo do chão, for vermelho, indica que o seu utilizador além de cego é também surdo. Assim, pretende-se com a bengala verde adicionar mais um elemento a este código, indicando que o seu utilizador tem baixa visão. Ou seja, apesar de poder necessitar de ajuda para ver/identificar/localizar alguma coisa, este utilizador ainda tem algum resíduo visual.

A bengala verde veio prevenir alguns mal-entendidos

Qual a importância da bengala verde para estas pessoas?

É verificável em dois níveis. O efeito mais evidente prende-se com uma maior adesão à utilização à bengala. Muitas pessoas com baixa visão têm dificuldades em identificar obstáculos e em deslocar-se em segurança na rua ou em espaços que lhes são pouco familiares. Aquilo que se foi verificando pelos técnicos da ARP nos processos de reabilitação foi que muitas destas pessoas se recusavam a utilizar uma bengala de orientação e mobilidade (naquele tempo só existiam as bengalas brancas) porque não eram cegas. Muitas destas pessoas sentiam quase como um mau agoiro utilizar uma bengala branca, optando por recorrer a um guarda-chuva ou, mais frequentemente, não usar nada. Por ser específica para a baixa visão, a bengala verde tem mais adesão por parte desta comunidade.

Por outro lado, a bengala verde veio prevenir alguns mal-entendidos. As pessoas com baixa visão têm resíduo visual, pelo que é comum dentro desta comunidade haver pessoas que, embora sintam dificuldades em deslocar-se, ainda conseguem ler. Assim, a sinalização da pessoa com baixa visão pela bengala verde previne a estranheza provocada por alguém que entra num restaurante com uma bengala indicativa de dificuldades de visão e lê a ementa sem dificuldade. Antes de existir a bengala verde, ocorreram situações em que pessoas ofenderam outras com baixa visão que usavam bengala branca, porque ajudaram-nas a entrar num comboio ou num restaurante e depois viram essa mesma pessoa a ler uma revista ou a ementa.  Dar a conhecer a bengala verde é a oportunidade de sensibilizar a população para as dificuldades e as necessidades destas pessoas, bem como alertá-las para os efeitos da baixa visão e a sua prevenção. Foi a pensar nisso que lançámos recentemente o vídeo 'Queremos que nos veja' na nossa página de Facebook. Acreditamos que representa um primeiro passo para aumentar o conhecimento sobre este tema tão importante.

Que mensagem gostaria de deixar a quem padece de baixa visão?

Acima de tudo, que não deixem de viver, não tenham medo e mantenham a esperança. Enquanto pessoa com baixa visão, conheço na pele as dificuldades que estas pessoas passam todos os dias. No entanto, isolarem-se em casa ou deixarem de fazer a sua vida, apesar de mais fácil, não pode ser a solução. É como escolher não viver. Falem com os médicos, procurem centros de reabilitação ou lojas de produtos de apoio e encontrem as próprias estratégias para continuarem a viver, ainda que de maneira diferente.

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