Que tipo de alimentação se deve seguir quando o cancro já está instalado? Esta é uma das dúvidas mais frequentes em doentes oncológicos e foi a pensar neles que a CUF e o Pingo Doce se juntaram para lançar, esta quinta-feira, 2 de fevereiro, o livro 'Receitas e Conselhos de Saúde para Doentes Oncológicos', que surge no âmbito do programa 'A Saúde alimenta-se'.
Os vários tratamentos a que os doentes são submetidos têm um enorme impacto a nível físico e psicológico. Mas, como explica Telmo Barroso, nutricionista no Hospital CUF Descobertas - CUF Oncologia, uma boa alimentação durante o tratamento pode ajudar os doentes a ultrapassar efeitos adversos, como náuseas, vómitos, obstipação ou diarreia. "Costumo dizer aos meus doentes que a nutrição não é o tratamento para o cancro, mas é através dela que este pode ser mais eficaz", realça o médico, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.
'Receitas e Conselhos de Saúde para Doentes Oncológicos'© CUF/Pingo Doce
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Qual a importância da alimentação num doente oncológico? O que mostra a evidência científica?
Em 1937, o médico argentino Pedro Escudero criou as leis da alimentação. Oitenta e seis anos depois esses quatro enunciados ainda são considerados a base de uma alimentação saudável. São eles quantidade, qualidade, equilíbrio e adequação, que de uma forma simples expressam as orientações para uma dieta que garante crescimento, manutenção e desenvolvimento saudáveis. Nos doentes com cancro a importância de assegurar um aporte de nutrientes com os mesmos pressupostos de que falava possibilita que o tratamento seja mais eficaz, que seja feito nos timings desejados e com a intensidade pretendida. Aliás, costumo dizer aos meus doentes que a nutrição não é o tratamento para o cancro, mas é através dela que este pode ser mais eficaz, tendo em conta os vários domínios - quimioterapia, cirurgia, radioterapia ou imunoterapia.
Como deve ser a alimentação durante o tratamento?
Não existe uma norma para a 'alimentação ideal', pois cada doente tem diagnósticos diferentes que podem ser acompanhados por alterações fisiológicas importantes e que, em conjunto com doenças já existentes, nos fazem mudar a intervenção, que depende da avaliação nutricional no momento do diagnóstico e nas restantes etapas da doença, sempre em articulação com o plano de tratamento. Mas estão sempre presentes os pressupostos anteriores das leis da alimentação.
O tratamento é, muitas vezes, sinónimo de efeitos secundários, que podem expressar-se por sintomas com impacto nutricional
Isso quer dizer que para cada tratamento devem ser aplicadas diferentes estratégias alimentares?
Para cada tratamento, diferentes estratégias. Isso é uma verdade da prática clínica nutricional. Contemplamos sempre aspetos importantes individuais, como o tipo de diagnóstico, órgão ou sistemas metabólicos alterados, complicações das intervenções (quimioterapia, radioterapia, cirurgia, imunoterapia) e duração de tratamento. Estes fatores são, por si só, disruptores e causadores de vários diagnósticos nutricionais que necessitam de ser otimizados e, como acontece muitas vezes, com prioridades diferentes. Por exemplo, um doente diagnosticado com tumor do esófago com perda de peso significativa no último mês >10% (grave) em que o tratamento inicial é cirúrgico, a necessidade de dar nutrientes por via oral ou endovenosa é urgente e, só por si, um fator de melhoria do prognóstico. Chama-se a este processo pré habilitação cirúrgica e é reconhecida como uma boa prática clínica. Outro exemplo: um doente a fazer medicação, que no decurso do tratamento apresenta diarreia. Aqui a modificação da alimentação e o tipo de nutrientes fornecidos é extremamente importante para aumentar a eficácia da absorção. Nesta situação, aquilo que consideramos saudável consumir, como legumes, pode ser condicionado ou evitado.
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Um doente com cancro tem necessidades nutricionais aumentadas. Como tal, os suplementos alimentares, de venda livre em ervanárias, por exemplo, são realmente aconselháveis para estas pessoas?
A utilização de suplementos chamados dietéticos indicados nesses espaços requer sempre uma avaliação por parte da equipa da área da oncologia/hemato-oncologia e farmácia. A farmacocinética dos medicamentos utilizados no tratamento do cancro pode interagir com substâncias nutracêuticas presentes nestes suplementos dietéticos que à partida serão dados para 'ajudar no tratamento' mas que na maioria, do ponto de vista científico, carecem de evidência clínica quanto a simples factos, como a dose ou duração. Para além disso, existe evidência que alguns princípios ativos presentes nesses suplementos podem potenciar o tratamento levando a efeitos toxicológicos que podem ter repercussões em órgãos e sistemas, ou inibidores, limitando a eficácia. Por isso, o doente deve falar sempre com a equipa que o segue e não ter receio de tirar as dúvidas.
Naturalmente, o medo e a angústia em relação ao futuro contribuem para a perda de apetite e náuseas nestes doentes. Como amenizar estes sintomas e, sobretudo, prevenir o risco de malnutrição?
O tratamento é, muitas vezes, sinónimo de efeitos secundários, que podem expressar-se por sintomas com impacto nutricional. A perda de apetite e as náuseas, entre outros sintomas que exploramos no livro 'Receitas e Conselhos de Saúde para Doentes Oncológicos' (disponível, a partir de sexta-feira, em mais de 280 lojas Pingo Doce de Portugal Continental), têm um impacto na ingestão, digestão e absorção de nutrientes e, consequentemente, no risco de malnutrição. As estratégias passam por avaliar esses sintomas e enquadrá-los no tratamento, assim como entender quais os fatores na dieta que podem aumentar ou diminuir os mesmo. Os cheiros da comida, por exemplo, provocam vómitos. Então, o objetivo será preparar refeições alternativas com menos cheiro, mantendo aporte de nutrientes.
A literacia nutricional melhorou muito na última década. Em geral, a população está bem informada. Mas será que se esforça para ajustar a sua alimentação?
Quando uma pessoa é diagnosticada com cancro procura mais informação para esclarecer dúvidas e descobrir formas de aliviar e gerir os sintomas. Como olha para esta situação? Há perigo?
O diagnóstico inicial é realmente um ponto de viragem onde os doentes e familiares procuram saber mais sobre o cancro. Procuram ativamente informação. Esta atividade e resiliência são ótimos para a gestão da doença, mas importa valorizar o esclarecimento de dúvidas sempre junto da equipa clínica - o oncologista, nutricionista, enfermeiros e farmacêuticos. Toda a ajuda é importante, mas se existem ideias que podem ajudar, também existem outras que podem trazer complicações. Recordo-me de um doente oncológico que tinha uma dor de garganta e um amigo aconselhou-o a mastigar gengibre cru várias vezes ao dia. Acabou por sofrer um processo inflamatório ainda mais grave.
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Como estamos em termos de conhecimento em nutrição?
A literacia nutricional melhorou muito na última década. Em geral, a população está bem informada. Mas será que se esforça para ajustar a sua alimentação? É aqui que considero que existe necessidade de investir, colocando em prática algumas medidas simples. Tentar manter um peso saudável com percentagem de massa gorda adequada para a altura e idade é um conhecimento que grande parte das pessoas tem. No entanto, é como se costuma dizer: Depois da casa roubada trancas à porta'. Ou seja, só depois do problema, seja ele metabólico ou oncológico, é que se tende a aplicar alguns dos conhecimentos ditos saudáveis.
Como é que Portugal se compara a outros países, sobretudo europeus?
Portugal está lado a lado com outros países europeus, até porque a informação veiculada, quer em órgãos de comunicação social como pelo Ministério da Saúde e Ordem dos Nutricionistas, tem sido muita. A publicação deste livro é mais um exemplo de literacia promovida por entidades portuguesas. Assistimos aqui a uma combinação do conhecimento científico de profissionais de saúde da CUF à experiência na área alimentar de especialistas em nutrição do Pingo Doce.
Como é a relação entre os médicos, os nutricionistas e estes doentes em Portugal?
A relação é inclusiva. Somos uma equipa. Todos discutimos e colocamos o conhecimento que temos na potenciação do tratamento de cada um dos doentes.
Quais as principais dúvidas dos doentes com que se foi cruzando ao longo dos anos?
Os doentes querem estar capacitados para ultrapassar com sucesso o tratamento. Procuram saber o que faz mal e o que faz bem. Mas é necessário aprofundar estes temas, explicar o que é uma alimentação saudável, dar alternativas aos seus hábitos e quase sempre integrar a família e cuidadores neste processo.
Como lida com doentes que, porventura, não queiram mudar as suas práticas alimentares?
É importante gerir as expetativas e entender as convicções do doente. Procurar informá-lo de aspectos importantes que podem decorrer das práticas alimentares, mostrar abertura para a realização de ajustes à alimentação durante o processo de tratamento. Deixar claro que nas diferentes fases da doença estarão acompanhados e de que juntos podemos avaliar e discutir estratégias.
A que se deve a dificuldade em alterar comportamentos? São recomendados alimentos mais caros, difíceis de encontrar nos supermercados tradicionais ou mais complicados de cozinhar?
Penso que não é o preço, nem a dificuldade de aquisição de alimentos, pois com pouco se pode fazer muito. Os produtos de época são os mais saudáveis e tendencialmente mais baratos, por existirem em maiores quantidades. Julgo que é mesmo falta de tentar mudar a maneira como todos os dias se fazem as mesmas coisas. Outras vezes prende-se à dificuldade de desbloquear ideias simples e práticas para ajudar na confeção e preparação de alimentos que são baratos e ótimas alternativas nutricionais, mas pouco exploradas.
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