"Falta de consciência". Cancro oral faz soar alarmes: O que deve saber

Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, o médico dentista Luís Monteiro, diretor da unidade de investigação em patologia oral e reabilitação oral do Instituto Universitário de Ciências da Saúde, em Gandra, explica como os dentistas podem fazer a diferença no diagnóstico do cancro oral.

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Ana Rita Rebelo
08/02/2023 09:15 ‧ 08/02/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

Dados de 2019 da Ordem dos Médicos Dentistas indicam que “há 90% de hipótese de sobrevivência no caso de diagnóstico precoce". Todos contam na luta contra o cancro, mas o dentista "é um elemento chave", admite o médico dentista Luís Monteiro, diretor da unidade de investigação em patologia oral e reabilitação oral do Instituto Universitário de Ciências da Saúde, em Gandra. 

Em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, o especialista em cirurgia oral afirma que "Portugal tem sido um dos países com maior expressão de cancro oral nas últimas décadas", sublinhando que "mais de 70% dos casos são diagnosticados em estádios avançados e, por isso, também apresentam uma baixa taxa de sobrevivência (abaixo dos 40%)". E é aqui que a atuação do dentista, "quer seja primária ou secundária com diagnóstico precoce, constitui uma mais-valia significativa na prevenção e abordagem desta doença".

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Em 2014, a Direção-Geral da Saúde alertou, pela primeira vez, para a necessidade de um rastreio de cancro oral de dois em dois para pessoas de risco. Quem são essas pessoas? 

O tabaco continua a ser um hábito de risco prevalente e constitui um dos principais fatores de risco para cancro oral. A inalação do fumo do tabaco adquirido em 'segunda ou terceira mão', genericamente designado de fumo passivo, é também um forte risco para cancro oral. Muitas vezes não nos apercebemos que ainda uma elevada percentagem da população, incluindo crianças, estão expostas ao fumo passivo em suas casas ou automóveis. Conseguimos perceber agora o porquê de alguns doentes que afirmavam não serem fumadores mostrarem em estudos biológicos características de alterações moleculares típicas de fumadores. Como tal, poderemos dizer que estes indivíduos que constituem potenciais pessoas de risco. O álcool é outro problema, nomeadamente o consumo excessivo em determinados períodos semanais. Quando usado sinergicamente com o tabaco podem constituir um risco para cancro oral 35 vezes superior em comparação com pessoas sem estes hábitos.

A presença de infeção pelo vírus do papiloma humano (HPV) também constitui um risco para cancro oral, nomeadamente para cancro da orofaringe. Felizmente, temos vacina e já está a ser administrada por rotina nacionalmente. A exposição sol excessiva constitui igualmente um risco para o cancro do lábio. Também pessoas com alterações potencialmente malignas da cavidade oral (anteriormente designadas por lesões pré-malignas) apresentam um risco para o desenvolvimento de cancro oral. Além disso, a existência de fatores orais crónicos irritantes ou traumáticos (como próteses ou dentes fraturados/ou com bordos irritantes) ou de infecções crónicas orais tem sido também descrita muitas vezes como constituindo fatores de risco para cancro oral.

Adicionalmente, sendo uma doença mais diagnosticada depois dos 45 anos, podemos também inferir que indivíduos mais idosos poderão ter um risco acrescido. No entanto, é de ressalvar que esta é uma doença diagnosticada cada vez mais em idades jovens e que o predomínio do género masculino, verificado classicamente, é menor, com o aparecimento de muitos casos também no género feminino.  

Quando comparamos com outros países europeus, os casos de cancro oral em Portugal continuam a aumentar tanto na mulher como no homem, à exceção do cancro do lábio

Tendo em conta que muitos destes fatores de risco são controláveis, é possível prevenir a doença.

Sim. Existe uma elevada margem para a prevenção deste tipo de cancro.

De que forma?

Evitar o consumo de qualquer tipo de tabaco ou promover a cessação tabágica, assim como evitar a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas são medidas que, embora clássicas, são extremamente atuais e importantes na nossa população. Não devemos esquecer o consumo passivo de tabaco, seja por inalação do fumo de outros fumadores ou pelo fumo que permanece nos locais. Este fenómeno, muitas vezes ignorado ou que passa despercebido, constitui também um risco importante para cancro oral. A relação de vírus (como do HPV) na etiologia de alguns tipos de cancro da boca (nomeadamente na orofaringe) e a existência de uma vacina anti-HPV, que já faz parte do nosso plano de vacinação nacional, constitui uma janela de prevenção importante para este tipo de cancro e que poderá ser útil também para a população anteriormente não abrangida por este plano. A correção de fatores orais crónicos irritantes ou traumáticos e de infeções crónicas orais, associadas muitas vezes à falta de higiene oral, são também medidas de prevenção úteis neste tipo de doença. No caso do cancro do lábio, devemos prevenir a exposição solar, principalmente atendendo aos períodos mais críticos de maior radiação ultra violeta e usando protetor solar adequado. A promoção de estilos de vida saudável, com adoção de uma alimentação saudável, nomeadamente uma dieta equilibrada e ricas em frutas e vegetais, assim como a promoção de exercício físico e combate ao sedentarismo, embora sejam medidas de âmbito geral, também contribuem para a prevenção do cancro oral.

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Por outro lado, além das várias possibilidades de prevenção primária, são importantes medidas de diagnóstico precoce da doença. Aqui a observação regular da cavidade oral pelos profissionais de saúde oral é fundamental para o rastreio oportunista de qualquer sinal que possa representar uma suspeita de uma lesão maligna ou a deteção de alterações potencialmente malignas orais. Assim, a promoção de saúde oral, com visitas regulares aos profissionais de saúde oral como os médicos dentistas, permite não só a correção de fatores de risco, como a transmissão de conhecimento, informação sobre os principais riscos para cancro oral e medidas de prevenção úteis.

Ainda assim, a incidência do cancro oral no país tem vindo a aumentar. O que mostram os dados?

Portugal tem sido um dos países com maior expressão de cancro oral nas últimas décadas. Segundo as estimativas da Organização Mundial da Saúde (Dados IARC/Globocan 2020) estima-se que em todo o continente europeu, em 2020, tenham sido diagnosticados 65.279 novos casos de cancro da cavidade oral (cavidade oral e lábio) e que tenham morrido 24.575 pessoas devido a este tipo de cancro. Infelizmente, Portugal tem estado na frente especialmente na incidência deste cancro. É o primeiro país do sul da Europa com maior incidência desta doença. Estima-se que em Portugal tenham ocorrido 1.103 novos casos desta doença, 804 em homens e 299 em mulheres. Mais de 70% dos casos são diagnosticados em estádios avançados e, por isso, também apresentam uma baixa taxa de sobrevivência (abaixo dos 40%). Adicionalmente e incrivelmente, quando comparamos com outros países europeus, os casos de cancro oral em Portugal continuam a aumentar tanto na mulher como no homem, à exceção do cancro do lábio. Espera-se que as ações iniciadas nos últimos anos, com programas de rastreios, nomeadamente o PIPCO, e o aumento da informação e formação significativa sobre a doença nos últimos anos, possam ajudar a alterar esta realidade num futuro próximo.

Existe uma falta de consciência para o cancro oral e ainda mais para as suas manifestações, nomeadamente para os sinais e sintomas da doença

Qual o papel dos médicos dentistas no diagnóstico? 

O médico dentista é um elemento chave na prevenção e diagnóstico precoce do cancro oral. É provavelmente o profissional de saúde que mais vezes observa a cavidade oral da nossa população, permitindo um rastreio oportunista em todos os doentes que vemos. Pode detectar fatores de risco, como, por exemplo, hábitos pessoais como consumo de tabaco ou álcool e detectar algumas alterações orais potencialmente malignas, cujo diagnóstico atempado poderá evitar a evolução para cancro oral ou, pelo menos, permitir o seu diagnóstico numa fase mais precoce. Assim, o médico dentista é um dos elementos fundamentais no diagnóstico da doença. A sua participação, quer seja primária ou secundária com diagnóstico precoce, constitui uma mais-valia significativa na prevenção e abordagem desta doença. É claro que o cancro oral deve ser abordado por uma equipa multidisciplinar e cuja colaboração com as restantes especialidades é um pilar essencial para um tratamento bem sustentado e eficiente. 

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Há muitos tumores que se desenvolvem lenta e silenciosamente durante anos, sem que manifestem quaisquer sintomas ou sinais de alerta. No caso do cancro oral, também é assim? 

Grande parte destes tumores começa por se apresentar inicialmente com uma área branca/avermelhada irregular que persiste na mucosa e que progressivamente ganha um aspeto mais vegetante/tumoral ou então ulcerado (com uma ferida persistente no meio de uma massa tumoral endurecida). Muitas vezes, as fases iniciais são indolores e, portanto, o doente, principalmente se não estiver ciente destas manifestações, acaba por não detetar ou ignorar a lesão. O crescimento progressivo e agressivo do tumor vai condicionando as várias funções orais, como a alimentação e fonação, acabando por originar dor e hemorragias, o que leva o doente a procurar ajuda. O grande problema é que muitas vezes nestas fases o tumor já se encontra em estádios avançados e, portanto, com mau prognóstico. Mais uma justificação para a promoção de diagnóstico precoce e de informação à população e de cuidados de saúde oral generalizados.

Considera que a população está bem informada sobre a doença?

Existe uma falta de consciência para o cancro oral e ainda mais para as suas manifestações, nomeadamente para os sinais e sintomas da doença, bem como medidas preventivas. Esta falta de conhecimento tende a ser maior na população com mais dificuldade de acesso a informação e dificuldades económicas/sociais. Isto reforça a necessidade de promoção de informação e de medidas de prevenção a nível nacional para esta doença.

Deve dar-se oportunidade a toda a população de poder aceder, cada vez mais de uma forma regular e eficaz, a consultas de medicina dentária

Este tipo de cancro está associado a elevadas taxas de mortalidade, que se devem em grande parte ao seu diagnóstico tardio. Como tal, qual a importância do diagnóstico precoce e quem deve fazê-lo?

O cancro oral, nomeadamente no nosso país, está associado a taxas de mortalidade superiores a 50%. Estudos realizados em Portugal nas últimas décadas mostram que mais de 70% dos casos são diagnosticados em estádios avançados (III e IV) e que, provavelmente, por isso mesmo apresentam baixas taxas de sobrevivência. Por exemplo, se na generalidade a taxa de sobrevivência de doentes com cancro oral se situa nos 45% aos cinco anos de seguimento, esta taxa poderá ser mesmo inferior a 20% nos estádios mais avançados. Desta forma, quanto mais tarde o tumor for detectado, provavelmente mais avançado será o seu estádio no momento do diagnóstico e pior prognóstico terá. Desta forma, parece muito clara a importância da detecção precoce do cancro oral e este poderá ser um dos maiores objetivos no combate a esta doença.

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Todos podemos intervir nesta deteção precoce da doença, em vários níveis de atuação, a começar pelo próprio doente, estando informado sobre os sinais/sintomas da doença e fazendo visitas regulares aos profissionais de saúde, permitindo a detecção oportunista de alterações suspeitas numa consulta de rotina. Por outro lado, todos os profissionais de saúde que de alguma forma possam contribuir para a sinalização de um doente de risco ou orientação de um utente com uma possível manifestação de uma lesão suspeita de malignidade, são elementos importantes nesta rede interdisciplinar de diagnóstico precoce. Os profissionais de saúde oral, nomeadamente os médicos dentistas, que poderão de uma forma mais direta e concreta realizar o diagnóstico, com a realização de biópsias (quando indicado), constituem elementos decisivos nesta promoção da saúde oral. Cada um de nós, nos vários níveis de atuação social e profissional, poderemos ajudar a promover um diagnóstico precoce desta doença de uma forma mais eficaz e generalizada. No entanto, sendo o médico dentista um dos profissionais com maior oportunidade de observação da cavidade oral e profissionais em que os utentes depositam uma especial confiança nos problemas que acometem a boca, acaba por ser um elemento chave, e que provavelmente poderá constituir um pilar determinante para a promoção deste diagnóstico precoce de cancro oral.

Como deve atuar o sistema para dar melhor resposta a uma doença que afeta tantas pessoas por ano em Portugal?

Por um lado, promover campanhas de informação de fatores de risco e sinais de alarme da doença a nível nacional e contínuo. As iniciativas de informação promovidas, por exemplo, nos dias mundiais de cancro, são muito úteis, mas poderiam ser prolongadas durante todo o ano. Por outro lado, deve dar-se oportunidade a toda a população de poder aceder, cada vez mais de uma forma regular e eficaz, a consultas de medicina dentária. Também é importante a informação e consciencialização da importância desta doença por todos os profissionais de saúde que poderão sinalizar alguns casos suspeitos e direcionar os mesmos para o seu diagnóstico. Outras medidas incluem o alargamento e dinamização de projetos de rastreios oportunistas, como o inovador PIPCO, por parte dos profissionais de saúde, de forma que sejam integrados de modo significativo no Serviço Nacional de Saúde. A promoção de investigação na biopatologia do cancro oral e das alterações potencialmente malignas também deverá ser aumentada, trazendo mais conhecimento e métodos para o combate a esta doença, podendo até, provavelmente, aliviar a longo prazo muitas das despesas do estado, com a morbilidade e mortalidade relacionadas com o cancro.

O cancro da cavidade oral tem, infelizmente, uma taxa de recidiva elevada e, portanto, pode voltar a aparecer na mesma região anteriormente afetada

Após o diagnóstico, quais as opções terapêuticas? A cirurgia é solução para todos os doentes?

A cirurgia continua a ser a principal opção terapêutica nesta doença, muitas vezes associada à radioterapia e/ou quimioterapia. A seleção destas modalidades está dependente do tipo de cancro, do doente e do estádio em que se encontra. Existem também, hoje, fármacos com uma atividade mais específica para as células tumorais e, por vezes ,mais indicados para certos tipos de cancro como, por exemplo, anticorpos monoclonais ou moléculas inibidoras dirigidas a recetores celulares tumorais ou até contra moléculas intervenientes na supressão imunológica causada por este tipo de tumores. Cada vez mais se percebe que cada tumor tem uma constituição muito própria e, portanto, cada vez mais os tratamentos são planeados e adaptados ao tumor aumentando a eficácia e, por outro lado, com menor existência de efeitos secundários e sequelas para o doente. Dada a agressividade deste tumor, as modalidades de tratamento são muitas vezes agressivas, com a possibilidade de vários efeitos colaterais e sequelas como, por exemplo, a alteração na mobilidade da língua, fonação, paladar, perda de saliva, e efeitos psicológicos significativos. Por isso, cada vez mais as modalidades de tratamento tentam ser mais específicas e dirigidas ao tumor de forma a evitar estas mesmas sequelas.

Há risco de o cancro oral se repetir no mesmo doente?

O cancro da cavidade oral tem, infelizmente, uma taxa de recidiva elevada e, portanto, pode voltar a aparecer na mesma região anteriormente afetada. Por outro lado, como os fatores de risco para o cancro oral acabam por afetar toda a mucosa da boca, da faringe e vias respiratórias, é comum a existência de segundos tumores primários que poderão aparecer noutra área da boca. Poderemos hipoteticamente pensar que a existência de consumo tabágico prolongado durante anos pode levar a que as milhares de células da boca possam ficar alteradas correndo para uma atipia e invasão da mucosa. A célula que chega em primeiro nessa 'corrida' vai originar um cancro primário. Não nos podemos esquecer que muitas das outras células ao lado,  que estão também nessa corrida para a malignidade poderão elas próprias vir um dia a constituir um tumor maligno. Mais uma vez se destaca aqui a importância das consultas regulares ao médico dentista, mesmo depois de um tratamento a um tumor oral.

Quais são as questões mais prementes na investigação do cancro oral?

Dada a elevada incidência de cancro oral no nosso país, uma das questões principais é perceber a epidemiologia da doença com a promoção de projetos que visam o estudo de estratégias para diminuir a incidência de cancro oral e de técnicas de realização de diagnóstico precoce da doença em Portugal. Estudos em novas tecnologias de diagnóstico, como a fluorescência, endoscopia de contacto e tecnologia NBI, podem contribuir para uma melhor caracterização da presença de malignidade ou determinação de margens cirúrgicas de forma a melhorar o sucesso e prognóstico do doente. Também o estudo da etiologia, nomeadamente da compreensão de modelos de desenvolvimento de cancro oral, cuja visão tem mudado recentemente de modelos lineares para mais multifatoriais centrados na integração da genómica dinâmica com o ambiente, são importantes. O estudo de novos biomarcadores de diagnóstico e prognóstico de cancro oral e alterações potencialmente malignas serão igualmente relevantes, no sentido de ajudar a definir estrategicamente a melhor orientação terapêutica para o doente oncológico. Também alguns destes biomarcadores poderão ser alvos terapêuticos de novos fármacos mais específicos.

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