Obesidade é "verdadeira pandemia, particularmente alarmante em Portugal"

As médicas endocrinologistas Ana Filipa Lopes e Carolina Neves, esta última também coordenadora da nova clínica da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal, alertam para a elevada prevalência da doença na população portuguesa. Apelam ainda à comparticipação das terapêuticas para o tratamento da obesidade.

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Ana Rita Rebelo
29/03/2023 08:30 ‧ 29/03/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

A este ritmo, até 2035, mais de metade da população mundial deverá tornar-se obesa ou sofrer de excesso de peso, segundo um relatório da Federação Mundial para a Obesidade. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Portugal é o terceiro país onde a prevalência (28,7%) da obesidade é mais elevada. E para este cenário muito terá pesado o confinamento imposto pela pandemia de Covid-19.

"Os portugueses alteraram os seus hábitos, aumentando o sedentarismo e o consumo de alimentos processados e hipercalóricos", afirma a médica endocrinologista Ana Filipa Lopes, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto. Para a especialista, "a redução de acesso a cuidados de saúde foi preponderante para favorecer o crescimento dos números".

Destacando que "a prevenção da obesidade não é só uma responsabilidade individual, mas essencialmente governamental", afirma que "é essencial apostar na literacia em saúde e em políticas que permitam o acesso a um estilo de vida saudável". Ana Filipa Lopes considera que "a obesidade é consequência de um ambiente obesogénico, em que os alimentos hipercalóricos e processados são os mais baratos, mais publicitados e mais disponíveis".

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Por sua vez, Carolina Neves, médica endocrinologista e coordenadora da nova clínica da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP), admite que "permanece a ideia de que esta é uma doença apenas comportamental, atribuindo-se às pessoas a culpa pela sua situação". "Infelizmente, a iliteracia sobre obesidade é muito prevalente e verifica-se em todos os meios, inclusive, entre profissionais de saúde", sublinha.

O que é exatamente a obesidade? 

Ana Filipa Lopes (AFL): É uma doença crónica e complexa, caracterizada pelo excesso ou acumulação anormal de gordura que causa prejuízo à saúde. Esta complexidade resulta dos múltiplos fatores que estão implicados na sua génese, tais como a genética, as disfunções metabólicas e comportamentais, assim como o próprio desequilíbrio do balanço energético. As causas ambientais também são responsáveis pelo agravamento da obesidade, sobretudo nos últimos anos. A obesidade resulta numa perda de saúde para o próprio devido ao risco de complicações, entre as quais a doença cardiovascular, a diabetes, a associação com vários cancros, a síndrome apneia obstrutiva do sono, a gota, o fígado gordo e, entre outras, as doenças osteoarticulares degenerativas.

O excesso de peso e obesidade são consideradas verdadeiras pandemias em crescimento. Em Portugal, a situação é particularmente alarmante

Como é que é feito o diagnóstico?

AFL: De forma simplificada, o diagnóstico ainda se baseia numa métrica, o Índice de Massa Corporal (IMC). A obesidade é diagnosticada e estratificada de acordo com este parâmetro, que é calculado através de uma fórmula matemática, dividindo o peso pela altura ao quadrado. Se o IMC estiver entre 25 e 29 kg/m2 é considerado excesso de peso, entre 30 e 35 kg/m2 obesidade grau 1, 35-40 kg/m2 obesidade grau 2 e >40 kg/m2 obesidade mórbida. Além do diagnóstico, é igualmente importante a avaliação clínica das pessoas com excesso de peso ou obesidade para despiste de complicações associadas e fatores de risco cardiovasculares. Mas é importante lembrar que o IMC não deve ser o único indicador, porque nem sempre é fiável. Há indivíduos com IMC normal que apresentam excesso de gordura visceral, que causa doença, enquanto outros têm um IMC elevado por aumento da massa muscular e não de gordura. 

Carolina Neves (CN): Outro parâmetro antropométrico importante é o perímetro da cintura, que permite identificar pessoas com adiposidade centrípeta, mesmo se o IMC estiver dentro dos valores normais. O perímetro da cintura igual ou acima de 80 centímetros (cm) e 94 cm, nas mulheres e homens, respetivamente, está associado a gordura visceral em excesso e aumento do risco cardiovascular. 

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Qual a prevalência da doença no mundo e, mais concretamente, em Portugal?

AFL: O excesso de peso e obesidade são consideradas verdadeiras pandemias em crescimento. Em Portugal, a situação é particularmente alarmante, porque atinge 67.6% dos portugueses adultos, com custos diretos relacionados com a obesidade e as suas complicações de cerca de 1,2 mil milhões de euros por ano, representando 0,6% do PIB nacional e 6% dos gastos em saúde.

O confinamento imposto pela pandemia de Covid-19 contribuiu para estes números alarmantes? 

AFL: Muito provavelmente veio agravar estes números. Sabe-se que os portugueses alteraram os seus hábitos, aumentando o sedentarismo e o consumo de alimentos processados e hipercalóricos. Por outro lado, a redução de acesso a cuidados de saúde foi preponderante para favorecer o crescimento dos números da obesidade.

A obesidade é consequência de um ambiente obesogénico, em que os alimentos hipercalóricos e processados são os mais baratos, mais publicitados e mais disponíveis

E quais as perspetivas? 

AFL: Infelizmente, não são as melhores. A World Obesity Federation estima que em 2030 haja um bilião de pessoas com obesidade em todo o mundo, mais concretamente uma em cada cinco mulheres e um em cada sete homens. Espera-se que o maior aumento ocorra nos países de baixo rendimento, especialmente em África e na Ásia. Em Portugal, prevê-se que o número possa ascender aos 2.1 milhões de pessoas com obesidade, o que corresponde a um gasto em saúde de 2,1 mil milhões de euros. 

Quais são os sinais a que as pessoas devem estar atentas e que as devem levar a procurar ajuda médica?

CN: Todas as pessoas que sentem que o peso que têm as prejudica de alguma forma devem procurar ajuda. Qualquer pessoa que sinta que o peso a mais as limita nas suas atividades diárias, afeta a sua mobilidade e agilidade, a sua autoestima e o bem-estar deverá ter ajuda profissional. Além disso, incluem-se neste grupo todas as pessoas com excesso de peso e obesidade, de acordo com o IMC, e que apresentem já as complicações da obesidade.

É possível avaliar o risco de virmos a desenvolver a obesidade? 

CN: A história familiar, ou seja, a carga genética que o individuo herda, a história prévia de excesso de peso e de dietas, o estilo de vida sedentário, o stress, o excesso de horas laborais, o défice de horas de sono, o ambiente urbano, o baixo nível socioeconómico, a iliteracia em saúde e o padrão alimentar desfavorável podem ser preditores do desenvolvimento de obesidade. Adicionalmente, existem fases de vida em que há particular vulnerabilidade para aumentar o peso, como a puberdade, a gestação, o período pós-parto, a menopausa, a cessação tabágica ou situações em que há mudanças de cidade ou de trabalho, viagens prolongadas ou férias.

A perda de peso saudável e sustentável não é atingida com dietas curtas ou uso de terapêuticas sem orientação profissional

De que forma é que a obesidade pode ser prevenida?

AFL: A prevenção da obesidade não é só uma responsabilidade individual, mas essencialmente governamental. É importante a adopção de comportamentos saudáveis logo na infância, entre os quais uma alimentação equilibrada e a prática de exercício físico regular. É essencial apostar na literacia em saúde e em políticas que permitam o acesso a um estilo de vida saudável. A regulação de alimentos saudáveis em detrimento dos mais nefastos e o acesso fácil nas cidades a zonas de lazer com a possibilidade da prática de exercício são alguns exemplos. A obesidade é consequência de um ambiente 'obesogénico', em que os alimentos hipercalóricos e processados são os mais baratos, mais publicitados e mais disponíveis. Na sociedade atual, fazer uma refeição saudável requer um esforço muito maior, quer seja na procura do alimento como no custo, do que uma 'fast-food'. A inversão deste cenário seria um bom ponto de partida. Para mudar este ambiente, é preciso ir mais além e mudar toda uma sociedade incubadora de doenças. Isso significaria melhorar as condições de vida socioeconómicas, horários, condições laborais e a mobilidade nas cidades, investir na educação para a saúde física e mental, promover a atividade física e, mais uma vez, tornar os alimentos saudáveis num bem acessível a todos. 

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Para melhorar o acompanhamento de pessoas com obesidade, tendo ou não diabetes, a APDP está a desenvolver programas de perda de peso e manutenção individualizados. Em que consistem?

CN: Em breve, teremos uma clínica exclusivamente dedicada ao tratamento da obesidade e excesso de peso. Trata-se de uma equipa especializada e multidisciplinar que irá oferecer programas individualizados de perda de peso e manutenção que consistem em consultas de avaliação e acompanhamento regular por médico endocrinologista, nutricionista, enfermeiro e psicólogo num processo continuado de perda de peso e sua manutenção. O tratamento da obesidade implica vários tipos de intervenção e a perda de peso saudável e sustentável não é atingida com dietas curtas ou uso de terapêuticas sem orientação profissional. Os programas terão como objetivo promover a perda de peso para melhorar a saúde e a qualidade de vida e prevenir complicações futuras, garantido que as mudanças sejam permanentes. 

Quais os tratamentos atualmente disponíveis?

AFL: Embora existindo globalmente um número superior de fármacos, em Portugal dispomos de três grupos terapêuticos para tratar a obesidade. Claro que a base do tratamento continua a ser a reeducação alimentar e o exercício físico e são independentes da terapêutica escolhida. Habitualmente, o seu sucesso é, contudo, limitado, atingindo perdas de peso na ordem dos 3-5%, pelo que a adição de fármacos é importante para reduções superiores e sustentadas. Um desses fármacos atua reduzindo a absorção de gordura (orlistat). Os chamados agonistas dos receptores de GLP-1, tais como o liraglutide e semaglutide, promovem redução do apetite através do atraso do esvaziamento do estômago e inibição da fome homeostática a nível cerebral. Por fim, a associação bupropiona/naltrexona tem uma ação sinérgica, actuando no sistema de recompensa mesolímbico, com a redução da fome hedónica e do prazer com a comida, indicada em situações de compulsão alimentar. Para o tratamento de situações mais extremas (IMC>40 Kg/m2 ou IMC>35 Kg/m2 com comorbilidades) existe a cirurgia bariátrica. 

Uma vez que é uma doença crónica, o tratamento é para toda a vida?

CN: A obesidade é uma doença crónica e recidivante. Isto significa que o seu tratamento também é crónico. Da mesma forma que uma pessoa com hipertensão deve tomar os fármacos anti-hipertensivos sempre, o tratamento comportamental e farmacológico deve ser mantido nas pessoas com obesidade. Mesmo os indivíduos submetidos a cirurgia bariátrica, em que ocorre uma alteração estrutural significativa do seu sistema digestivo, podem recuperar o peso a longo prazo e necessitar de novas intervenções. A fisiopatologia da doença explica este fenómeno. Os mecanismos da doença, como a redução das hormonas da saciedade, o aumento das hormonas da fome e a redução da taxa metabólica basal, permanecem e até são agravados após a perda de peso. É por isso que, depois de se fazer uma dieta muito restritiva em que se perde peso muito rápido, a pessoa recupera pouco tempo depois e, por vezes, aumenta ainda mais o peso. Tal acontece porque a restrição excessiva é difícil de manter a longo prazo e ocorre uma adaptação metabólica à perda de peso promovendo um grande aumento do apetite e menor consumo energético diário do metabolismo basal. Para a perda de peso sustentável são necessárias mudanças no padrão alimentar e atividade física também sustentáveis, que aliadas a uma terapêutica farmacológica que contraria os mecanismos da doença, resultam em sucessos terapêuticos muito satisfatórios.

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Um documento lançado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, em conjunto com a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, indica que existe desigualdade no acesso ao tratamento da obesidade. É assim? 

CN: A desigualdade resulta do facto de, por exemplo, haver cirurgias bariátricas e metabólicas comparticipadas no Serviço Nacional de Saúde, mas não haver comparticipação dos tratamentos farmacológicos hoje disponíveis para tratar a obesidade. Não faz sentido haver comparticipação para o tratamento da doença em fase avançada e não haver numa fase mais precoce, o que evitaria o aparecimento de complicações e os tratamentos mais invasivos. Por outro lado, mesmo o acesso à cirurgia é limitado pela escassez de recursos, o que torna o processo moroso e restringe o número de pessoas que recebem atempadamente o tratamento.

A baixa autoestima é muitas vezes um fator de adesão incompleta aos tratamentos e a intervenção psicológica é a primeira abordagem necessária

O que está a falhar?

CN: Está a falhar a equidade de acesso aos tratamentos. A terapêutica farmacológica a custo integral para o doente torna-a um tratamento de luxo acessível apenas a quem tem disponibilidade financeira para tal. É o tratamento de uma doença que pode causar inúmeras outras, cujas terapêuticas farmacológicas são comparticipadas. Não promover o acesso ao tratamento da doença 'mãe' é optar por não tratar a raiz de muitos problemas e promover a evolução da doença para as suas complicações.

Crê que a comparticipação dos fármacos em Portugal possa estar para breve? 

CN: Gostaria de acreditar que sim. Contudo, não me cabe prever as decisões políticas. Se houvesse interesse em poupar custos a longo prazo, não tenho dúvidas de que seria a medida estratégica mais certa, com critérios definidos para a prescrição.

Considera que estes doentes devem ter acompanhamento psicológico?

CN: Sem dúvida. O acompanhamento psicológico deve estar disponível durante todo o processo, desde o início até a manutenção do tratamento. A obesidade está fortemente associada a depressão e ansiedade, que agravam e são agravadas pela doença. É necessário avaliar, diagnosticar e tratar estas doenças mentais, assim como os distúrbios de comportamento alimentar que podem existir. Por outro lado, a baixa autoestima é muitas vezes um fator de adesão incompleta aos tratamentos e a intervenção psicológica é a primeira abordagem necessária. A maioria das pessoas com obesidade têm histórias de vida de sofrimento pela discriminação e estigma e o papel do psicólogo é muito relevante. Também durante todo o processo de mudança de estilo de vida e da imagem corporal o seguimento psicológico pode ser um determinante de sucesso. 

Portugal reconheceu a obesidade como uma doença apenas em 2004. Que ideias erradas persistem sobre a doença?

CN: Comecemos por dizer que a obesidade é considerada uma doença num país onde os seus tratamentos não são comparticipados. Se a obesidade é uma doença crónica como tantas outras, porque é que as pessoas afetadas não têm acesso aos recursos que pessoas com outras doenças têm? Esta realidade revela que não foi posta em prática a premissa de se tratar de uma doença. Permanece a ideia de que esta é uma doença apenas comportamental, atribuindo-se às pessoas a culpa pela sua situação. Lamentavelmente, além de ser uma doença mal compreendida na sua causa e complexidade, está associada a discriminação social e estigma. A crença de que 'comem muito e não se mexem' está fortemente enraizada, e ainda se utilizam terminologias ofensivas que desrespeitam a dignidade destes doentes, tais como 'gordo' ou 'obeso'. Infelizmente, até entre profissionais de saúde, ainda se pode encontrar o mesmo comportamento. A estigmatização e a vergonha são, frequentemente, fatores que inibem o doente de procurar ajuda profissional. 

Considera que há iliteracia sobre o tema? 

CN: Sim. Infelizmente, a iliteracia sobre obesidade é muito prevalente e verifica-se em todos os meios, inclusive, entre profissionais de saúde. 

Como acabar com o estigma?

CN: É necessário esclarecer que a obesidade é uma doença multifatorial, fortemente associada a predisposição genética, fatores hormonais, psicológicos e ambientais. O estigma deve ser combatido principalmente através da educação e do investimento na literacia em saúde e em campanhas de sensibilização, como a lançada pela Federação Mundial de Obesidade: 'Mudar Perspectivas: vamos falar de obesidade'. 

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*[Notícia atualizada às 15h20/ O documento lançado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade foi feito em conjunto com a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo e não com a Associação de Doentes Obesos e Ex-obesos de Portugal, como havia sido mencionado.]

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