E quando nódoas negras e hemorragias são doença? Falámos com especialista

Já ouviu falar de hemofilia? O diagnóstico muda vidas. Susana Nobre Fernandes, coordenadora do Centro de Referência de Coagulopatias Congénitas do Centro Universitário de São João, esclarece o que é, quais os sintomas que devem merecer a sua atenção e de que forma é que esta patologia condiciona a vida dos doentes.

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Ana Rita Rebelo
21/07/2023 07:32 ‧ 21/07/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

A hemofilia é uma doença rara, sem cura, transmitida pelo cromossoma X, o que significa que afeta quase exclusivamente os homens. Esta condição está associada à falta ou deficiência de um ou mais fatores da coagulação humana. Trocado por 'miúdos': traduz-se na incapacidade do sangue em coagular de forma eficaz, o que faz com que os doentes apresentem uma maior tendência para sangrar.

A mais comum é a hemofilia A. A Direção-Geral da Saúde (DGS), refere que a incidência é de um caso para cinco mil nascimentos do sexo masculino e, segundo os últimos dados, de 2013, estima-se que a hemofilia afete 549 adultos.

Embora seja uma doença com consequências potencialmente fatais, os tratamentos atualmente disponíveis permitem uma vida sem sobressaltos. "Com os avanços terapêuticos da área da hemofilia e cuidados médicos adequados, centralizados no utente e nas suas necessidades e expectativas, a maioria das pessoas com hemofilia pode ter uma vida normal e ativa", explica Susana Nobre Fernandes, coordenadora do Centro de Referência de Coagulopatias Congénitas do Centro Universitário de São João, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.

Pessoas com hemofilia grave geralmente apresentam sintomas mais frequentes, enquanto aqueles com hemofilia leve podem até nem ter sintomas

Todavia, "na grande maioria dos casos, o tratamento da hemofilia obriga a administração endovenosas, com periodicidades diferentes, que podem ser realizadas nos hospitais, nos centros de saúde ou mesmo pelos próprios ou familiares, após um período de ensino". "Atualmente, a grande preocupação é a adesão a este plano tratamento, que se quer personalizado, orientado e adaptado para o estilo de vida de cada um."

O que é a hemofilia?

Trata-se de uma doença rara, crónica e hereditária. Caracteriza-se por ser um distúrbio hemorrágico, uma vez que está relacionado com a deficiência, ou mesmo ausência, de fatores de coagulação - o fator VIII no caso da hemofilia A e o fator IX na hemofilia B. A transmissão desta doença está ligada ao cromossoma X, existindo na maioria das vezes história familiar conhecida. Contudo, 30% dos casos são esporádicos.

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O que acontece exatamente?

Quando existe uma lesão que provoque uma hemorragia, o organismo ativa a coagulação sanguínea, que é um processo delicado, equilibrado e complexo que envolve uma série de reações químicas e interações entre diferentes componentes do sangue, responsável pela formação de uma matriz que envolve um coágulo, no local da hemorragia, parando-a. Este processo de coagulação tem várias etapas, com objetivos diferentes e sequenciais. Na hemofilia, a ausência, ou quantidade insuficiente de um dos fatores de coagulação, torna este processo frágil e incapaz de parar a hemorragia de maneira eficaz. Clinicamente, traduz-se num risco aumentado de ter uma hemorragia, mesmo em pequenos cortes, lesões ou traumas. A gravidade dos sintomas pode variar de pessoa para pessoa, dependendo do grau de deficiência do fator de coagulação, chamado fenótipo hemorrágico.

Quais são os fatores de risco?

Um deles é a hereditariedade. A hemofilia é causada por uma mutação genética que afeta a produção ou a função dos fatores de coagulação VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B).  Por outro lado, a hemofilia é uma doença ligada ao cromossoma X. Isso significa que a maioria das pessoas com doença são do sexo masculino (os homens têm um cromossoma X e um cromossoma Y, enquanto as mulheres têm dois cromossomas X), isto é: o homem que herda o gene com a alteração responsável pela doença do cromossoma X da mãe, vai ter hemofilia; e as mulheres mesmo que herdem o gene com essa alteração, geralmente têm um cromossoma X saudável que compensa e são apenas portadoras da doença. No entanto, existem mulheres com hemofilia, mas são situações de extrema raridade. Além disso, o desenvolvimento de inibidores, autoanticorpos contra o fator em défice, é o fator de risco/ complicação mais temida na hemofilia. Isto porque o organismo desenvolve um mecanismo que anula o fator em circulação, aumentando o risco e a gravidade das hemorragias. É também importante referir que a hemofilia é uma doença rara e, na maioria dos casos, ocorre em famílias com história genética conhecida. No entanto, em 30% dos casos, pode ocorrer em pessoas sem histórico familiar conhecido. Se houver dúvidas relativamente à história familiar de hemofilia e se houver intenção de prevenir a transmissão da doença à descendência, é recomendável procurar aconselhamento médico para obter um diagnóstico adequado.

Só por se tratar de uma doença crónica e sem cura, emocionalmente é difícil de gerir e, na realidade, as decisões do dia a dia podem estar limitadas à hemofilia, como a escolha do tipo de desporto a praticar, por exemplo

Quais são os sintomas comuns da hemofilia?

Os sintomas dependem da gravidade e incluem hemartroses, hematomas ou equimoses, gengivorragias e epistaxis. É importante esclarecer que a gravidade dos sintomas varia de pessoa para pessoa, dependendo do grau de deficiência do fator de coagulação em causa. As pessoas com hemofilia grave geralmente apresentam sintomas mais frequentes, enquanto aqueles com hemofilia leve podem até nem ter sintomas. As hemorragias podem ser espontâneas, traumáticas ou associadas a manobras invasivas, na ausência de tratamento adequado. 

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Não havendo cura para a hemofilia, em que consiste o tratamento dos doentes?

De facto, a hemofilia é uma condição crónica que não tem cura. Atualmente, graças à inovação na área dos tratamentos médicos, é possível tratar a hemofilia de forma eficaz e segura. Existem normas de orientação clínica nacionais e internacionais, que são os pilares das boas práticas médicas no tratamento desta patologia. Os principais tratamentos disponíveis baseiam-se na reposição fisiológica do fator de coagulação em falta, concentrados de FVIII ou FIX.  Existem várias alternativas terapêuticas que podem ser administradas de forma endovenosa ou, mais recentemente, para alguns doentes selecionados, os tratamentos de reposição não fator que são de administração subcutânea. Com os avanços terapêuticos da área da hemofilia e cuidados médicos adequados, centralizados no utente e nas suas necessidades e expectativas, a maioria das pessoas com hemofilia pode ter uma vida normal e ativa. O grande objetivo do tratamento da hemofilia é permitir que os doentes vivam de forma plena e sem o peso diário da doença.

De que forma é que o dia a dia destas pessoas é impactado?

De várias maneiras, devido às necessidades específicas da doença e às complicações. A grande limitação prende-se com a administração do tratamento. Na grande maioria dos casos, o tratamento da hemofilia obriga a administração endovenosas, com periodicidades diferentes, que podem ser realizadas nos hospitais, nos centros de saúde ou mesmo pelos próprios ou familiares, após um período de ensino. Atualmente, a grande preocupação é a adesão a este plano tratamento, que se quer personalizado, orientado e adaptado para o estilo de vida de cada um. O sucesso desta adesão implica o sucesso clínico. É evidente que só por se tratar de uma doença crónica e sem cura, emocionalmente é difícil de gerir e, na realidade, as decisões do dia a dia podem estar limitadas à hemofilia, como a escolha do tipo de desporto a praticar, por exemplo. Contudo, com a evolução do tratamento e do seguimento em centros especializados, a qualidade de vida da pessoa com hemofilia melhorou consideravelmente.

É fundamental que as pessoas com hemofilia e as suas famílias tenham acesso a informações atualizadas, baseadas na evidência científica produzida até aquele momento, e procurem aconselhamento médico individualizado, para tomarem decisões informadas, consciente e partilhadas

Porque é que é tão importante tratar a doença numa fase precoce?

Os planos terapêuticos para as pessoas com hemofilia dependem da gravidade da doença e do fenótipo hemorrágico individual. Conceptualmente, o tratamento precoce da hemofilia é essencial para prevenir complicações ou hemorragias graves e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Adicionalmente, a instituição precoce do tratamento vai permitir reduzir o número de hemorragia articulares e, por consequência, prevenindo o aparecimento da artropatia hemofílica (a complicação mais comum que ocorre devido a hemorragias recorrentes nas articulações, especialmente nas articulações de carga, como joelhos e tornozelos). Numa perspetiva global, o tratamento correto, personalizado e iniciado atempadamente vai permitir à pessoa com hemofilia ter hábitos de vida saudáveis (nomeadamente pratica desportiva) e aumentar a qualidade de vida ao longo dos anos.

A entidade reguladora do medicamento nos Estados Unidos, a a Food and Drug Administration (FDA), aprovou a terapia genética como tratamento para a hemofilia. O que sabe sobre este tratamento? Chegará a Portugal? 

Sim, a terapia genética tem-se mostrado como uma opção promissora no tratamento da hemofilia. Nos Estados Unidos, a FDA aprovou a terapia genética para o tratamento da hemofilia A e B.  Quanto à disponibilidade dessa terapia em Portugal, vai ser uma realidade, estando dependente das aprovações das entidades reguladoras responsáveis e dos recursos de saúde disponíveis.

Envolve riscos?

É importante considerar que cada opção terapêutica possuí os seus próprios benefícios e potenciais riscos. Os benefícios e riscos devem ser avaliados em conjunto com os médicos especialistas, utente e a sua família. É fundamental que as pessoas com hemofilia e as suas famílias tenham acesso a informações atualizadas, baseadas na evidência científica produzida até aquele momento, e procurem aconselhamento médico individualizado, para tomarem decisões informadas, consciente e partilhadas. 

Por fim, que mitos importa desmistificar sobre a hemofilia?

Que a coagulopatia é muito grave em todas as pessoas, que as pessoas com hemofilia têm baixa esperança de vida, que têm os mesmos sintomas, que não podem praticar desporto, que a doença é transmitida por transfusão de sangue ou que ocorre sempre por transmissão genética.

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