Eduarda Abbondanza tem um percurso digno de filme. Nasceu em Lisboa, cresceu nas ruas de Campo de Ourique e viveu toda a infância rodeada de arte. A doença, desarmante, bateu-lhe à porta duas vezes - a primeira aos oito anos e a última em 2012. Dona de um estilo muito próprio, é indubitavelmente uma mulher à frente do seu tempo. O reconhecimento chegou quando, em 1991, Abbondanza fundou, a par com Mário Matos Ribeiro, uma gigantesca montra dos designers portugueses e, admite, "o grande projeto" da sua vida: a ModaLisboa.
Em 32 anos de Lisbon Fashion Week, o panorama da indústria é bem diferente. A presidente da Associação ModaLisboa reconhece, com orgulho, que a moda portuguesa tem sabido afirmar-se, mas considera que o esforço feito pode ir além e deixa recados ao próximo governo. "O investimento em Portugal requer uma resposta rápida. Já a moda precisa de tempo de resposta. Não temos sequer um organismo ou um grupo dedicado a olhar para esta questão e o que acontece é que nós, enquanto plataformas, tentamos fazer o máximo com o mínimo. E isto tem que ver com as prioridades do país", diz em entrevista exclusiva ao Lifestyle ao Minuto.
Quando é que descobriu esta paixão pela moda? Ter vivido em Milão teve algum peso?
Parti para Milão no início dos anos 80 e um mês depois de lá estar soube que a moda ia ser o meu caminho. Nessa altura, passava-se pouco em Lisboa. Vivíamos o pós 25 de Abril, o país estava a passar por enormes alterações e as hipóteses eram muito reduzidas. Recordo-me até que quando vim estudar para a capital a Faculdade de Arquitetura estava encerrada. Não se falava em design e moda, nada disso. Já a moda italiana estava num momento de afirmação. Itália estava pujante e a posicionar-se nas capitais de moda.
O fenómeno da moda de autor iniciou-se connosco (...). Não fizemos tudo sozinhos, obviamente, mas fomos a 'faísca'. Fomos o fósforo que incendeia a caixa
E o ballet? Teve influência nesta sua sensibilidade para a arte?
Sim. Quando era criança a dança clássica fazia parte da minha vida. Tinha aulas de manhã e as tardes eram sempre passadas no ballet e a assistir a concertos e a óperas no Teatro Nacional de São Carlos. Ao mesmo tempo, tinha aulas de violino. Posso dizer que tive uma infância recheada de cultura e lidei com a arte desde muito cedo.
Considera-se uma mulher disruptiva?
Eventualmente. Mais numas alturas do que outras. Hoje em dia tento manter um certo equilíbrio. Já fui mais ligada ao coração. Agora tenho mais filtros. Estou mais madura. Mas sim, considero que tenho alguma disrupção no meu processo criativo e pensamento.
O que é que a move todos os dias?
O fazer bem e conseguir trazer algo de positivo à vida das pessoas com quem me relaciono. Gosto muito de estar sozinha e não tenho assim tantos amigos, o que significa que quando estou com pessoas é porque também são pelo bem.
Leia Também: Luís Carvalho. Após 10 anos de carreira, com que linhas cose o futuro?
De certa forma, a história da Eduarda confunde-se com a da ModaLisboa.
Sim. Eu tinha uma marca [Eduarda Abbondanza e, mais tarde, Abbondanza Matos Ribeiro] e gostei muito dela enquanto durou. Ainda hoje tenho muito orgulho desse projeto que parei para me dedicar à ModaLisboa. Do ponto de vista profissional, a ModaLisboa é o grande projeto da minha vida. A nível pessoal, é a maternidade.
Alguma vez imaginou chegar até aqui quando fundou a ModaLisboa? O projeto está exatamente onde imaginou que estaria?
Não. Gostava que estivesse muito mais á frente. A ModaLisboa tem uma relação direta com o país. Nós não fazemos tudo, só uma pequena parte. Como tal, temos muitas vezes de atrasar o processo, porque não é possível ir à velocidade que gostaríamos.
A moda é uma área que envolve investimento e meios. Para nós, estiveram sempre esgotados
Qual é a mais-valia da ModaLisboa para Portugal?
É uma marca com trinta anos num país com um enorme déficit de marcas. Essa é a sua principal mais-valia. Fomos um projeto piloto. O fenómeno da moda de autor iniciou-se connosco. Quando começámos não existia formação qualificada na área, só havia uma agência de manequins que era a Central Models, ninguém sabia iluminar moda e equipas de aderecistas também não existiam. O próprio jornalismo de moda arranca com a ModaLisboa. Não fizemos tudo sozinhos, obviamente, mas fomos a 'faísca'. Fomos o fósforo que incendeia a caixa.
Eduarda Abbondanza© Rita Chantre/ Global Imagens
O que é a moda para si? Uma indústria ou uma forma de arte?
As duas coisas. O ciclo da moda só se conclui no ato da compra e a moda precisa de ser usada, partilhada e de circular para ser um fenómeno. Como tal, é uma indústria. Mas dentro da moda há várias formas de entendê-la. Estamos a falar de um vestuário com uma carga cultural que recupera técnicas tradicionais, tem séries limitadas, o que significa que as pessoas não andam todas vestidas de igual, cada criador acaba por trabalhar para um nicho... É uma roupa mais cara, mas também dura mais. Eu acabei a minha marca em 1996 e ainda hoje vejo pessoas a usá-la. Isto prova que a roupa de autor tem uma enorme longevidade, muito devido ao cuidado na confeção, e um lado conceptual que ultrapassa as estações. Tem valor estético, o que faz com que não se esgote naquilo que são as tendências. São peças que ficam para a vida.
Quão árdua tem sido a tarefa de colocar o país no mapa da moda e como é que Portugal se compara com outros países europeus?
A moda é uma questão cultural e o país não tinha moda. Ao contrário de Espanha, não temos tradições de marcas de moda. No país vizinho, há a Balenciaga, por exemplo, e tem um lado grandioso no que toca à sua cultura. Aqui não e é difícil. Os nossos artistas de várias áreas vão para fora à procura da internacionalização e só depois é que são reconhecidos. Essa é a nossa história. Mas há que reconhecer que Portugal cresceu em imensos aspetos. Têm vindo muitos fundos comunitários contribuir para uma transformação ao nível da digitalização e da economia verde. Estamos a fazer essa transição, a fazê-la bem e de forma muito dedicada. No entanto, a moda propriamente dita tem que ver com os seus autores e está esquecida.
Durante a campanha eleitoral, não houve nenhum partido que falasse sobre cultura, por exemplo, e que é muito mais do que moda
Os recursos são insuficientes?
Claramente. Em cinquenta anos, nunca houve, até à data, um programa específico para esta área. Acabamos por ser encaixados em programas que não são exatamente para nós e acaba por não resultar da melhor maneira. A moda é uma área que envolve investimento e meios. Para nós, estiveram sempre esgotados. Neste momento, o investimento em Portugal requer uma resposta rápida. Já a moda precisa de tempo de resposta. Não temos sequer um organismo ou um grupo dedicado a olhar para esta questão e o que acontece é que nós, enquanto plataformas, tentamos fazer o máximo com o mínimo. E isto tem a ver com as prioridades do país.
Isso quer dizer o quê?
Durante a campanha eleitoral, não houve nenhum partido que falasse sobre cultura, por exemplo, e que é muito mais do que moda. É uma imensidão de disciplinas e continuamos a não considerá-la uma prioridade, sendo que é provavelmente o que mais nos distingue do resto da Europa.
Esta edição da Lisbon Fashion Week coincide com as eleições legislativas. Não é inédito, mas sei que foi uma preocupação.
Sim. Tentámos alterar as datas, mas não foi possível. As datas são fixadas com muito tempo de antecedência porque os espaços em Lisboa estão todos ocupados. A nossa preocupação prende-se com o nível de comunicação, porque os media estão naturalmente muito dedicados às eleições e têm menos espaço para nós.
Ano após ano, ainda consegue surpreender-se?
Consigo. Tem de ser. Esse é o meu motor, sempre.
Leia Também: Buzina. "As pessoas diziam que eu fazia sacos de batatas"
Houve algum momento da ModaLisboa que a tenha marcado particularmente?
Já lá vão muitos anos e cada edição é um desafio. E cada vez mais é desafiante fazer projetos desta envergadura. Mas marcou-me muito a edição nos Armazéns Abel Pereira da Fonseca, que antecede a Expo-98, pelo momento positivo em que o país se encontrava. Estávamos todos a trabalhar para o mesmo. Os contratempos não eram impedimentos. Eram apenas coisas que precisavam de ser resolvidas. A cidade estava empenhada nessa missão e é muito gratificante trabalhar nesse ambiente pró ativo, cultural e com todas as estruturas organizadas para fazer acontecer. Essa foi uma das melhores fases de Lisboa e foi muito gratificante fazer a ModaLisboa nessa altura.
A edição do Mercado da Ribeira foi igualmente desafiante, porque ninguém acreditava que conseguíssemos fazer o evento com um mercado a funcionar e não só o fizemos como envolvemos os vendedores. Realizámos um desfile no meio da fruta e dos legumes, os comerciantes participaram e foi um momento excecional. Também me marcaram todas as edições no Armazém Terlis, porque tinha espaço para tudo aquilo que necessitávamos, e termos ido para a Social Mitra, espaço da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em Marvila. Na Factory Lisbon, no Hub Criativo do Beato, foi claramente um grande desafio, porque estava em construção, mas igualmente gratificante.
E momentos indesejáveis? Teve?
Quando a ModaLisboa passou para um formato inteiramente digital. Foi emocionante, mas muito esquisito e frio.
Lembro-me que fiz férias quando a minha filha nasceu e só aí é que me apercebi que não fazia uma pausa há dez anos. Até lá, nunca dei por isso. Eu trabalhava, trabalhava, trabalhava, porque o prazer e a alegria estavam diretamente relacionados com o trabalho
Ficaram ensinamentos desses tempos?
Que é preciso estarmos juntos. O ecrã serve para comunicar, mas não chega para nos potenciar. Nós, enquanto criativos, precisamos de sentir o entusiasmo das pessoas.
A Eduarda esteve presente no 'nascimento' de alguns dos designers portugueses com os nomes mais sonantes. O que é que recorda do borbulhar desses primeiros tempos e que conselho deixa às novas gerações de criadores?
Lembro-me exatamente dessa efervescência de que fala e da dedicação. É esquisito dizer que uma geração é mais dedicada que a outra. Acho isso sempre muito estranho, porque entendo que cada geração tem as suas especificidades. Mas falando daquela que vi 'nascer', lembro-me que fiz férias quando a minha filha nasceu e só aí é que me apercebi que não fazia uma pausa há dez anos. Até lá, nunca dei por isso. Eu trabalhava, trabalhava, trabalhava, porque o prazer e a alegria estavam diretamente relacionados com o trabalho. Éramos 'workaholics', mas porque tínhamos uma crença. Acreditávamos que iríamos ser capazes de mudar algo. Isso dava-nos uma ideia de futuro melhor do presente que tínhamos e do passado que outras pessoas como nós tinham tido. Íamos ser agentes de mudança. Nas gerações atuais, falta perspetiva de futuro. Continuam a decorrer duas guerras e vivemos uma crise climática, além de todos os outros problemas.
Percebe isso através das aulas que dá?
Sim. Dou aulas exatamente para ir percebendo as várias gerações e uma das questões são realmente os anseios com o amanhã. É muito difícil pôr um grupo de pessoas de vinte e poucos anos a imaginar o seu futuro, porque estão engaioladas num presente muito restritivo em termos de possibilidades. Essa é, sem dúvida, a maior diferença entre gerações. Nós tínhamos tido uma revolução há quinze anos e podíamos ter uma intervenção na sociedade, algo que fizemos, enquanto os jovens de hoje em dia estão muito mais limitados.
A propósito da crise climática, é sabido que a sustentabilidade é palavra de ordem na ModaLisboa. Mas é uma imposição dos tempos ou uma vontade dos próprios criadores?
Nós estamos nesse processo há muito tempo e começámos muito sozinhos. A indústria têxtil está a fazer uma transição bastante interessante e acelerada.
Que desafios é que se colocam nessa transição?
As questões da reciclagem, da toxicidade dos tingimentos, dos novos materiais por causa do excesso de algodão... Tudo isso está em mudança e há mesmo um esforço, metas e datas definidas e as pessoas estão empenhadas em cumpri-las.
Falava também da guerra e, no último dia do evento, vários designers de moda ucranianos irão apresentar as suas coleções.
Essa iniciativa resulta de um protocolo estabelecido com a Ukrainian Fashion Week [Semana da Moda Ucraniana], que não se realiza no seu país de origem desde o início da invasão russa. No fundo, é uma forma de continuar a exportar e apoiar os designers ucranianos.
E esse propósito casa muito bem com o mote desta edição. Porquê 'For Good'? Qual a mensagem que pretendem transmitir?
Está muito relacionada com o facto de estarmos com a viver um período com duas guerras, de ansiedade climática... As pessoas estão agitadas e o mundo muito agressivo. Este 'For Good' é um apelo para voltarmos ao básico da existência, que é fazer bem, cada um na sua área. No caso da moda, fazer design de qualidade, ético, inclusivo, sustentável e bem desenhado.
Como é que estão a ser os últimos preparativos? A 'apagar fogos'? O que é que espera?
Que corra bem. Neste momento, o nosso foco é resolver problemas.
A seu ver, os portugueses interessam-se por moda?
Creio que sim.
Para rematar a nossa conversa, considera que existe um estilo português?
Sempre se disse que os designers portugueses trabalhavam a cor de uma forma diferente por causa da luz. Mas houve épocas em que os designers não refletiam tanto a portugalidade, porque o lado aspiracional em termos de internacionalização foi muito importante em determinadas alturas. Neste momento, posso dizer que há claramente esse compromisso. Vamos ver. Esperemos mais um pouco.
Leia Também: ModaLisboa arranca hoje com debates e prossegue até domingo com desfiles