Já ouviu falar de disfunções temporomandibulares? Afligem muitas crianças

O Lifestyle ao Minuto esteve à conversa com o médico cirurgião David Ângelo, diretor clínico do Instituto Português da Face. O responsável liderou um estudo inédito que pode mudar a vida de muitas crianças.

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Ana Rita Rebelo
24/04/2024 08:40 ‧ 24/04/2024 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

O stress é um dos fatores de risco para as disfunções temporomandibulares, um desconhecido indesejado por muitos portugueses. E, como se isso não bastasse, durante muitos anos não existiu consenso sobre como tratá-las nos mais novos, por receio de complicações ou possíveis mudanças no crescimento craniofacial, assim como danos irreversíveis.

Atualmente, "já não esperamos que a patologia tenha uma evolução até chegar a uma situação catastrófica (...), normalmente após anos de sofrimento. Agora é possível intervir com tratamentos minimamente invasivos", diz David Ângelo, médico cirurgião e diretor clínico do Instituto Português da Face, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.

O responsável liderou uma equipa portuguesa de profissionais de saúde que realizou, entre 2019 e 2023, um estudo inédito para investigar a eficácia e segurança de técnicas cirúrgicas minimamente invasivas da articulação temporomandibular (ATM) em idade pediátrica. A equipa submeteu os resultados à revista internacional Jornal of Clinical Medicine, que reconheceu mérito a esta investigação, por ter sido a primeira, a nível mundial, a desmistificar o tratamento cirúrgico em idades pediátricas. Os resultados foram apresentados, recentemente, nos Estados Unidos, a convite da Sociedade Americana de Cirurgiões da Articulação Temporomandibular. 

A que conclusões foi possível chegar a partir deste estudo?

No geral, foi possível concluir que, em centros de referência, os procedimentos cirúrgicos minimamente invasivos na articulação temporomandibular de crianças foram seguros. Por outro lado, apurou-se que estes procedimentos apresentaram uma taxa de eficácia elevada na resolução dos sintomas de dor orofacial em crianças. Por fim, que os procedimentos cirúrgicos minimamente invasivos na articulação temporomandibular atrasaram a progressão da doença e reduziram o consumo de fármacos para controlo da dor. 

Não se sabe ao certo o número de crianças com este problema nem em Portugal, nem a nível mundial. No último estudo publicado observou-se que cerca de 38,4% das crianças sofrem deste problema

O que é a disfunção da articulação temporomandibular? O que acontece exatamente?

A articulação temporomandibular localiza-se em frente ao nosso ouvido e permite-nos fazer movimentos muito importantes como mastigar, falar, sorrir e bocejar. Em média, esta articulação é movimentada duas mil vezes por dia, sendo que o normal é não nos apercebermos desta articulação no dia a dia. Quando esta articulação dói, estala, limita a nossa abertura normal da boca, sentimos bloqueios articulares, tensão nos músculos da face e nos músculos do pescoço. No caso de esta articulação estar disfuncional, diz-se que existe uma disfunção da articulação temporomandibular. Na maioria das vezes, o problema é apenas muscular, mas há muitos casos em que também subsiste uma patologia dentro da articulação temporomandibular. Nestes casos, acontece muitas vezes um deslocamento do disco articular, que se trata de uma estrutura anatómica semelhante a um menisco que amortece as forças mastigatórias e evita a fricção das superfícies ósseas.

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Há muitas crianças afetadas por este problema no mundo e em Portugal? 

Não se sabe ao certo o número de crianças com este problema nem em Portugal, nem a nível mundial. No último estudo publicado observou-se que cerca de 38,4% das crianças sofrem deste problema, mas a variabilidade foi muito grande (20-60%). Acredito que os resultados no nosso país sejam próximos de 35%, mas com tendência crescente.

A que se deve essa tendência de que fala? Quais são as causas?

São multifatoriais. Raramente temos apenas uma causa, mas sim um conjunto de situações que acumuladas podem contribuir para as disfunções temporomandibulares.

Mas causas as mais comuns?

Infelizmente, começam por ser os elevados níveis de stress. Estas crianças, normalmente apresentam preocupações constantes, dificuldades diversas, frustrações, conflitos familiares e muitas outras exigências. As 'obrigações' a nível escolar e as atividades extracurriculares são muitas e as crianças reagem frequentemente a estes eventos, desencadeando stress.

O nosso ritmo está demasiado rápido e temos de conseguir abrandar. As disfunções temporomandibulares são muitas vezes um reflexo do ambiente que nos rodeia e é crucial que consigamos interpretar esses sinais de forma precoce e agir em conformidade.

O que está a dizer que, quando esse stress não é controlado, pode contribuir para as disfunções temporomandibulares?

Sim, uma vez que está associado a um grande apertamento dentário que, por sua vez, está relacionado a uma grande sobrecarga muscular e articular. E é assim que começam a maioria dos problemas da articulação temporomandibular. 

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Considera que este tema deve servir de reflexão para as famílias e para a nossa sociedade?

Sim. O nosso ritmo está demasiado rápido e temos de conseguir abrandar. As disfunções temporomandibulares são muitas vezes um reflexo do ambiente que nos rodeia e é crucial que consigamos interpretar esses sinais de forma precoce e agir em conformidade. 

Quais os sintomas e sinais de alerta?

Os mais importantes são dor perto do ouvido, na zona da articulação temporomandibular; limitação na abertura da boca; limitação dos movimentos da boca; 4) estalidos ou outros ruídos quando há movimentos da boca, a mastigar, por exemplo; tensão dos músculos da face; tensão dos músculos do pescoço; dores de cabeça e cansaço dos músculos da face. A dor pode ser tipo 'moinha', que vai e vem com intensidade moderada, ou uma dor constante de grande intensidade. Defendo que deve haver o cuidado de perceber se existem outras patologias associadas, como enxaquecas ou cefaleias. Podem estar associadas à disfunção temporomandibular. Muitas vezes, os pais destas crianças deslocam-se de profissional em profissional à procura de uma solução para um diagnóstico que pode não ser óbvio.

Como é feito o diagnóstico?

O diagnóstico é geralmente realizado através de um conjunto de combinações, nomeadamente uma boa história clínica, a que se segue uma correta avaliação do doente e, por fim, um pedido de exames, como tomografia computadorizada ou ressonância magnética.

Agora é possível intervir com tratamentos minimamente invasivos, como a artrocentese e artroscopia, em fases menos avançadas da doença e assim evitar a progressão da patologia articular, reduzindo os sintomas

Quais os motivos que explicam o porquê de durante muitos anos não ter existido consenso sobre o tratamento das disfunções temporomandibulares em crianças?

A articulação temporomandibular é essencial ao crescimento normal dos maxilares. Acredito que o primeiro motivo está relacionado com o receio de poder provocar algum dano irreversível na articulação e comprometer o crescimento da face. O segundo pode estar relacionado com a falta de estudos científicos que validassem estas intervenções em crianças. Por último, a evolução técnica. Atualmente, somos pouco invasivos nos tratamentos, muito mais precisos e tratamos apenas o que tem de ser tratado sem danificar as estruturas adjacentes. Sinto que há dez anos atrás não estaria preparado para operar uma criança, por exemplo. Hoje, tenho mais experiência, um gesto cirúrgico mais refinado, faço a cirurgia de forma mais delicada e foi isso que me deu a segurança necessária para tentar ajudar estas crianças com patologia da articulação temporomandibular. 

O que era feito até aqui?

Normalmente estas crianças eram medicadas para controlar os sintomas e o tratamento era protelado para mais tarde, sendo que apenas os casos muito graves eram operados.

Desde então, o que mudou? Concluiu-se que é possível uma intervenção mais precoce? 

A mudança agora acontece em casos intermédios, onde já não esperamos que a patologia tenha uma evolução até chegar a uma situação catastrófica e onde exista uma indicação absoluta para operar, normalmente após anos de sofrimento. Agora é possível intervir com tratamentos minimamente invasivos, como a artrocentese e artroscopia, em fases menos avançadas da doença e assim evitar a progressão da patologia articular, reduzindo os sintomas da disfunção temporomandibular. 

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