Chegou aquele que é considerado o dia mais deprimente do ano. O que muito não sabem é que a 'Blue Monday' ('Segunda-feira Triste', em português), o nome dado à terceira segunda-feira de janeiro, não passa de uma jogada de marketing de uma agência de viagens britânica.
Recuemos a 2005, data em que o termo foi criado pelo psicólogo Cliff Arnall, que, desafiado pela Sky Travel, criou uma fórmula pseudocientífica para determinar o dia mais triste do ano. O especialista baseou-se em fatores como o frio, as despesas do Natal e Ano Novo, as resoluções de ano novo falhadas e o regresso à rotina.
Apesar de não ter base cientifica, a verdade é que, desde então, o conceito ganhou popularidade e serviu de mote a uma conversa entre o Lifestyle ao Minuto e Patrícia Câmara, psicanalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática.
© Patrícia Câmara, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Afinal, estar triste faz bem à saúde?
Faz bem estar triste se os acontecimentos de vida pelos quais estamos a passar assim o exigem.
A tristeza é um ingrediente essencial à síntese das nossas vivências e uma pitada dela é essencial ao pensamento
Como assim?
Isto é, se a vivência de uma determinada situação nos pede que nos debrucemos sobre ela com um olhar que implica alguma perda implícita, deceção ou integração dolorosa. A intensidade da tristeza que sentimos é, habitualmente, diretamente proporcional ao nível de investimento afetivo que a situação tem para nós. Por isso, há coisas que nos deixam em tristeza profunda, como o caso da morte de alguém muito importante para nós, ou coisas que nos causam tristeza, mas não nos arrastam até ao fundo.
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É importante também saber que às vezes somos apanhados de surpresa com uma tristeza que nos parece não ser proporcional ao que está a acontecer ou por uma tristeza sem razão aparente e, nesses casos, devemos pensar na necessidade de um processo psicoterapêutico. Nem sempre o que vemos corresponde com o que se passa dentro de nós e não olhar para dentro pode ter consequências nefastas e gerar mal entendidos de nós para connosco e para com os outros à nossa volta. A regulação emocional e, nessa medida, psicossomática - ou seja, física e mental - depende da possibilidade de nos deixarmos afetar por aquilo que nos acontece, sendo a tristeza essencial para a integração profunda e aceitação das múltiplas questões que a vida nos traz.
Portanto, podemos assumir que a tristeza assume um papel importante na nossa vida?
A tristeza é um ingrediente essencial à síntese das nossas vivências e uma pitada dela é essencial ao pensamento. Para que o pensamento aconteça e a saúde possa ir imperando, é necessário que o terreno de construção da vida se possa ir irrigando. Sabemos que os solos sem água são pouco férteis e que se não chovesse a acumulação de tensão atmosférica se tornava insuportável a ponto de não fazermos ideia do que é um céu limpo. Assim como sabemos que os terrenos alagados não se traduzem em boas colheitas, o mesmo se passa com a tristeza. Sem ela não há vida, mas se ela é em excesso tolda a possibilidade de viver. O 'blues' existencial, a melancolia saudável da contemplação é lugar de criação e de maior humanidade relacional. A impossibilidade de o sentir é grave e leva a comportamentos auto e hetero destrutivos.
Num sentido mais estrito, podemos dizer que a tristeza tem muitas funções, mas talvez seja, numa primeira instância, a sinalização de dor e a necessidade de olhar para ela
Qual é a função da tristeza?
Num sentido mais lato, podemos conceber que a função da tristeza é na sua base a aceitação da condição existencial. Todos vamos morrer e isso é triste, mas se for sendo elaborado de uma forma boa (com a tristeza de que se necessita) é suportável e permite contemplar e viver com respeito o lugar que ocupamos na vida e no mundo. Num sentido mais estrito, podemos dizer que a tristeza tem muitas funções, mas talvez seja, numa primeira instância, a sinalização de dor e a necessidade de olhar para ela. É simultaneamente detector de mal estar e terapêutica em si mesma, porque permite parar para sentir e pensar o que precisa de ser pensado ou tratado. O luto e a decepção implicam elaboração mental, para que se possa verdadeiramente andar para a frente. Claro que ninguém quer estar em contacto permanente com a dor, mas a fuga da dor sem compreensão do que a faz acontecer pode traduzir-se em múltiplos adoeceres (físicos, mentais)
Às vezes, sentimos medo da tristeza, outras excesso de intimidade com ela. Em qualquer um dos casos, pedir ajuda é fundamental
O que podemos e devemos fazer quando estamos tristes?
Em primeiro lugar, tentar perceber o que nos está a deixar triste e a dimensão da tristeza que transportamos. É importante poder sentir tristeza em paz, mas se ela nos estiver a alagar ou a impedir de pensar e encontrar pontos de luz então é mesmo necessário procurar ajuda especializada. Darmo-nos tempo para sentir a tristeza permite que o processo psicossomático reparador que ela acarreta, aconteça. Não ter medo de sentir tristeza é fundamental para que ela não se instale em nós de formas mais ou menos evidentes. A tristeza enquistada e que não é sentida condiciona em muito a nossa vida e saúde. Há momentos em que precisamos de sentir o 'blues' para descansar a cabeça e integrar o dia a dia.
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Como distinguir a tristeza de um estado depressivo?
A tristeza de um estado depressivo é uma tristeza que se arrasta dentro de nós e deixa um lastro de peso em tudo o que são as tarefas do dia a dia. Normalmente é acompanhada de uma sensação de impotência e baixa autoestima. Nestes casos pedir ajuda é premente.
Quais os sinais de que algo não está bem e que devemos pedir ajuda?
Às vezes, sentimos medo da tristeza, outras excesso de intimidade com ela. Em qualquer um dos casos, pedir ajuda é fundamental. Quando nos sentimos mesmo tristes e incapazes de sair da tristeza, isto é, quando a tristeza aparece e se instala de forma a tirar a cor toda da vida ou grande parte dela, é fundamental recorrer a apoio psicológico e, provavelmente, a psicoterapia. Se a dor for insuportável é também importante poder contar com o apoio psiquiátrico. Podemos passar por momentos de grande tristeza, quando perdemos alguém que nos era muito querido, e vivê-la, dando tempo ao tempo, para que, à medida que vamos integrando a perda, a dor vá diminuindo. A tristeza só se torna um problema se for roubando o entusiasmo e o desejo de viver de forma prolongada e não de forma reativa a um acontecimento.
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Serviços telefónicos de apoio em Portugal
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (entre as oito e as 22 horas em dias utéis) - 116 006 (número gratuito) - 213 587 900
Linha Telefónica de Informação às Vítimas de Violência Doméstica (24 horas por dia, sete dias por semana) - 800 202 148 (número gratuito)
Aconselhamento psicológico no SNS 24 (24 horas por dia, sete dias por semana) - 808 242 424 (número gratuito)
SOS Voz Amiga (entre as 16 horas e as meia-noite) - 213 544 545 (número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660
Conversa Amiga (entre as 15 e as 22 horas) - 808 237 327 (número gratuito) e 210 027 159
SOS Estudante (entre as 20 horas e a uma da madrugada) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
Telefone da Esperança (entre as 20 e as 23 horas) - 222 080 707
Todos estes contatos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24), o contacto é assumido por profissionais de saúde. Deve selecionar a opção 4 para o aconselhamento psicológico. O serviço está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana.
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