"Esta é a pandemia da ascensão da China"
A covid-19 é a pandemia da "ascensão da China", disse à agência Lusa o antropólogo e historiador José Manuel Sobral, para quem o surto do novo coronavírus pode "modificar bastante" o panorama das relações internacionais.
© Reuters
Mundo Covid-19
"Em termos geopolíticos, esta é a pandemia da ascensão da China", considerou, em entrevista à Lusa o investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
Para José Manuel Sobral, a pandemia que teve origem na China acaba por mostrar a importância do país a nível mundial: "Desde a China como fábrica, que está a produzir, por exemplo, as máscaras que faltavam no mundo ocidental (também aqui se produziam, mas não em quantidade suficiente para uma emergência destas) a uma economia que cresce - mesmo estando neste momento em regressão - e um Estado que sai prestigiadíssimo, apesar dos ataques americanos e das críticas que se lhe podem fazer, pela maneira como até agora conseguiu controlar um surto epidémico".
"Há dois meses, a maior parte das pessoas pensava que isto era uma coisa sobretudo chinesa, que afetava sobretudo a China e viu como a China do país com maior número de contágios, com maior número de mortos, hoje é para aí o quarto ou quinto país. Vem atrás dos EUA, de Itália, de Espanha, do Reino Unido, onde o surto epidémico chegou depois, mas está a fazer mais vítimas", justificou.
Habituado a estudar a reação dos povos, o cientista social antevê "grandes modificações em termos internacionais", que já se desenhavam antes da pandemia.
De um lado a China, do outro os Estados Unidos, com "uma política nacionalista e isolacionista" e pelo meio uma União Europeia sem grande capacidade de resposta ou sem uma resposta de grande capacidade.
"A União Europeia não consegue chegar a uma resposta conjunta e solidária, no sentido de fazer face aos encargos, que vão ser muito avultados, que a epidemia trouxe", afirmou.
"É evidente que isso pode implicar efeitos para a própria UE", estimou o antropólogo, investigador principal no ICS, defendendo que esta é "uma crise muito grave" para a UE, com desfechos ainda difíceis de prever.
Por outro lado, referiu, "aquilo que vemos, neste momento, é que algum auxílio à Europa e comunicações com a Europa, a Europa mantém-nas neste momento com a China, mas não as mantém com os EUA", cujas primeiras medidas face à covid-19 implicaram desde logo o corte de ligações aéreas com a Europa.
"Os EUA verdadeiramente retiraram-se para tratar da epidemia dentro das suas fronteiras", acentuou.
"São transformações muito grandes e a União Europeia está com dificuldades em responder de uma maneira entendida como solidária por parte dos países mais atingidos pela epidemia, caso de Itália e de Espanha, por exemplo, que já tinham sido muito atingidos pela crise das dívidas soberanas em 2008 e 2009", constatou. "Tudo isto cria tensões, muitas tensões".
José Manuel Sobral não tem dúvidas de que haverá mudanças no campo económico: "Isso é absolutamente inevitável, vai haver recessão. Até recuperarmos do impacto do vírus vai demorar o seu tempo".
"Ao alterarem-se os nossos rendimentos altera-se bastante o nosso estilo de vida", acrescentou quando questionado sobre as mudanças que a pandemia pode trazer à sociedade.
"Isto tem um grande impacto para as nossas vidas, para as nossas economias, que afetam os empregos, que afetam os nossos quotidianos, repercute-se em tudo", sublinhou o investigador, que integra o painel de peritos ICS-ISCTE que está a estudar o impacto da pandemia.
No campo profissional, José Manuel Sobral admitiu que se intensifique mais o teletrabalho e frisou que as empresas que já estavam preparadas tecnologicamente sairão a ganhar.
Em relação a mudanças de fundo na sociedade portuguesa foi mais cauteloso, até pela mera observação empírica: "Todos nós estamos um bocado nostálgicos da vida de café, de poder ir ao restaurante, queremos voltar ao mesmo não é?".
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