O alerta surge no relatório "Estão a esquecer-nos: O impacto a longo prazo da guerra e do Ébola na Serra Leoa", lançado hoje e que reúne relatos de sobreviventes que revelam como continuam confrontados com um leque de sintomas psicológicos, desde a angústia, ao trauma, ao stress ou ao luto prolongado.
Apesar deste cenário, assinala a AI, os serviços de saúde mental no país estão "muito aquém das necessidades", devido à falta de investimento governamental, apoio insuficiente dos doadores, falta de profissionais de saúde mental qualificados e poucos serviços disponíveis e concentrados principalmente nas cidades.
"Na Serra Leoa, as pessoas sofreram traumas horríveis nas últimas décadas e o país está agora também a lidar com as consequências da pandemia da covid-19", disse Rawya Rageh, da Amnistia Internacional.
Por isso, defendeu, o governo da Serra Leoa "deve investir na melhoria dos serviços de saúde mental".
A Amnistia Internacional apelou também ao governo para acelerar o processo de aprovação de nova legislação sobre saúde mental para substituir "Lunacy Act" (Lei da Loucura, em tradução livre) da era colonial de 1902.
O relatório recolhe entrevistas de 55 pessoas, das quais 25 que estiveram diretamente expostas à violência durante a guerra civil (1991-2002) ou contraíram o vírus Ébola durante a epidemia de 2014-2016.
As catástrofes naturais, condições socioeconómicas difíceis e, mais recentemente, a pandemia de covid-19 trouxeram novos desafios a um país com sete milhões de pessoas e apenas cerca de 20 enfermeiros de saúde mental e três médicos psiquiatras, assinala a AI.
A maioria dos sobreviventes do Ébola entrevistados continuam a lidar com várias complicações físicas de saúde, mas apontaram também os "imensos danos psicológicos" que sofreram, com a maioria a manifestar-se "profundamente afetada pelo estigma e discriminação que enfrentaram durante a doença e após a recuperação".
Vários membros das respetivas comunidades culparam-nos por terem levado o Ébola para as suas áreas, indica o relatório.
Mencionaram também que a covid-19 trouxe de volta "memórias angustiantes" e reavivou o "medo persistente da morte".
Por outro lado, muitos sobreviventes da guerra civil disseram à Amnistia Internacional que testemunharam as suas casas e aldeias arrasadas pelas forças rebeldes e viram os seus entes queridos serem mortos a tiro, ou descobriram os seus corpos enquanto fugiam para salvar as suas vidas.
Muitas pessoas ficaram com lesões físicas e incapacidades permanentes e cinco entrevistados foram sujeitos a amputações grosseiras por parte das forças rebeldes.
"A exposição repetida a traumas em conflitos torna as pessoas mais propensas a desenvolver condições de saúde mental", assinala a AI.
No país, as doenças mentais permanecem largamente ligadas a estigmas e envoltas em mitos que as atribuem a causas sobrenaturais.
"As pessoas com distúrbios psicológicos e condições de saúde mental enfrentam frequentemente abusos, mas o esforço do governo é insuficiente para combater esta situação através de campanhas de sensibilização e informação do público", aponta o relatório.
Segundo o documento, o número "muito reduzido" de enfermeiros de saúde mental colocados em hospitais gerais em todo o país recebe apoio insuficiente e enfrenta condições de trabalho muito difíceis.
Dos 25 sobreviventes de guerra e ébola entrevistados pela Amnistia Internacional, 15 disseram não ter conhecimento de qualquer serviço de aconselhamento psicológico disponível, quer através de instalações de saúde governamentais, quer de organizações não-governamentais.
"Precisamos desse tipo de apoio na nossa comunidade e desse tipo de serviços de aconselhamento", disse Amina, uma sobrevivente de guerra, enquanto Mariatu, que sobreviveu ao Ébola, lamentou o esquecimento a que estão a ser votadas as vítimas destas duas tragédias.
A pobreza surge como fator adicional que afeta seriamente a saúde mental, com muitos sobreviventes a recordarem promessas não cumpridas de proteção social e a considerarem-se "abandonados" tanto pelo governo como por organizações internacionais.
Os programas de ajuda humanitária de emergência ajudaram a prestar apoio temporário em matéria de saúde mental, mas grande parte terminou no rescaldo das crises.
O relatório defende, por isso, que é necessário um investimento a longo prazo em serviços governamentais para fornecer cuidados sustentáveis e eficazes.
"A saúde mental não é apenas um direito humano, é também um bem público. O governo da Serra Leoa deve agora dar prioridade suficiente à saúde mental e solicitar dotações específicas aos doadores para expandir adequadamente a sua saúde mental e serviços psicossociais", disse Rawya Rageh.
"Estamos também a apelar aos doadores internacionais para que apoiem mais campanhas destinadas a combater o estigma que persiste em torno da saúde mental. Esta crise não pode continuar por mais tempo", acrescentou.
Entre março de 1991 e janeiro de 2002, a Serra Leoa viveu um conflito armado durante o qual dezenas de milhares de civis foram mortos, e mais de dois milhões de pessoas foram deslocadas.
Em 2014, quando o país estava ainda a reerguer-se da guerra, um surto de Ébola afetou a África Ocidental, tendo sido registados cerca de 14.124 casos no país, incluindo 3.956 mortes.