Ucrânia, a cidade que não esqueceu os seus mortos
Em Kiev, oito anos após a "Revolução de Maidan" do inverno de 2014, presta-se tributo a quem tombou durante os violentos confrontos que ditaram o fim de uma contestada opção política, iniciando uma prolongada guerra ainda sem desfecho.
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Mundo Ucrânia
Junto a uma pequena capela de madeira fica o mausoléu em memória dos "Cem Celestiais", mártires da "Revolução de Maidan". Um grupo de raparigas, algumas com ramos de flores, perfila-se junto a uma grande lápide de aço e granito com dezenas de fotos. A professora pede para tirar uma fotografia frente ao pequeno templo à guarda da Igreja greco-católica ucraniana, uma construção de madeira erguida em memória dos caídos.
Tinha já decorrido a cerimónia religiosa celebrada por dois padres, com cânticos e ornamentos coloridos e reluzentes, frente a uma grande cruz de madeira com Cristo crucificado, esculpido. Um ritual de uma Igreja católica, fiel ao Vaticano, mas de rito bizantino, herança da conflituosa história que assolou estas regiões do leste, com fronteiras disputadas entre impérios rivais e distintas obediências ao sagrado.
No percurso em direção ao monumento, em fitas atadas a árvores ou colocadas nos arbustos, dezenas de figuras de sinos, de anjos, todos brancos e recortados a papel.
A capela de madeira, que designam de "Templo do Arcanjo Miguel e Novos Mártires Ucranianos", foi erguida em três dias, tal como a cruz. Cerca de um mês antes, em 20 de fevereiro, 47 defensores da brigada "Porta de Lviv", da "42ª unidade da autodefesa de Maidan" foram mortos neste local, em confrontos com as forças policiais.
"Foram pessoas que morreram, dispararam sobre eles... Foi a professora que nos trouxe aqui, já viemos antes. Foram mortos por coisas do Governo", diz Vi, 12 anos, integrada na visita escolar.
Por toda a cidade, grupos de jovens, de mulheres, de idosos, recolhem-se frente aos altares a céu aberto, tributo aos "heróis" tombados na também designada "Revolução da Dignidade".
Cravos vermelhos, coroas de flores, capacetes de segurança geralmente usados nas construções que pertenciam a insurgentes abatidos na "Revolução de Maidan e dos 'Snipers'" -- como também se designa a rebelião contra o Presidente "pró-russo" Viktor Yanukovych para recordar os atiradores furtivos que dispararam em direção aos protestos -- estão alinhados com devoção.
Perto da praça Maidan, outro altar improvisado com uma cruz, uma bandeira nacional azul e amarela, restos de uma barricada e um pneu acompanham as fotos dos 11 caídos que, incentivados pelas oposições, se juntaram aos milhares que desceram às ruas em protesto pela recusa de Yanukovych em assinar um acordo de associação comercial com a União Europeia. O pretexto para a revolução.
Nas proximidades, dois idosos vendem pequenas fitas de pano coloridas que depois são atadas num corrimão, às centenas, ou presas às fotos. Nessa rua que sobe a partir da grande praça, pequenos tijolos de cimento colocados num muro enquadram duas centenas de fotos dos mortos de Maidan, a maioria homens, algumas mulheres. Muitos com cravos vermelhos no pequeno nicho, velas, mesmo objetos pessoais que lhes eram queridos, uma longa tradição religiosa ortodoxa.
Perto, numa ponte aérea pedonal, está colocada uma grande faixa que exige a libertação de Nariman Jelal, tártaro da Crimeia, ativista, detido após a anexação da península pela Rússia.
Em diversos pontos da cidade também foram instalados painéis de metal com fotos dos "heróis ucranianos" mortos nos combates que eclodiram após a rebelião separatista das populações russófonas do leste na primavera de 2014, também acompanhados pelos seus cravos e velas. Deixaram-se mensagens, poemas em lápides ou em papel, bandeiras nacionais.
Há oito anos que a Ucrânia parece viver em estado de luto permanente, desanuviado na primavera de 2019 com a vitória de um "marginal da política", o ex-comediante e atual Presidente Volodymyr Zelenski, que prometeu melhor nível de vida, combate à oligarquia corrupta, solução negociada do conflito no leste. Uma esperança que se desvaneceu com as resistências internas, e ultimamente com o agravamento das relações com a Rússia e as alegações de iminentes invasões militares emitidas por aliados ocidentais.
Tudo parece ter regressado ao passado mais cinzento. E uma das formas de colocar em segundo plano os desafios do dia a dia, no país rotulado como "o mais pobre da Europa", consiste na contínua mobilização em torno de reemergentes referências nacionais.
Assim sucedeu na passada quarta-feira, um dia estipulado pelo aliado norte-americano para a anunciada invasão. O Presidente Zelenski dirigiu-se na noite anterior ao país pela televisão e decidiu declará-lo "Dia da Unidade". Bandeiras azuis e amarelas foram hasteadas nos edifícios, colocadas nos postes de iluminação nas principais avenidas, e às 10:00 em ponto entoou-se o hino nacional. Kiev ficou engalanada.
"O risco de uma guerra total não é tão direto. Mas não excluo a possibilidade de um conflito local na linha de contacto no Donbass. Os dois lados podem iniciar um conflito e que poderá alastrar", admite Anton Naychuk, 31 anos, doutorado em Ciências Políticas e um dos responsáveis da Fundação Diplomacia Civil, uma organização que se afirma vocacionada para a adoção de decisões acertadas em política externa e muito próxima do atual Presidente.
"Tentamos equacionar todas as variantes possíveis, a forma como poderá ser abordada a situação. Mas espero que não se assista ao confronto direto entre dois grandes exércitos, isso seria uma grande tragédia para a Ucrânia e para toda a Europa, incluindo a Federação russa", assinala após pedir desculpa pelo atraso no encontro, justificado pelo trânsito intenso numa tarde cinzenta e chuvosa em Kiev.
"Com as conversações diplomáticas sobre garantias de segurança, atendendo à situação do [gasoduto russo-alemão] Nord Stream II e todos os restantes casos, espero que Putin não decida atacar a Ucrânia".
Na Ucrânia, institutos oficiais, organizações da sociedade civil, investigadores independentes, prosseguem na análise de um processo pelo qual uma sociedade relativamente pacífica degenerou para a rebelião civil, o conflito e a guerra. Um ponto de viragem que implica profunda reflexão, incluindo as consequências futuras de uma derrota ou vitória nesta guerra entre "irmãos", mesmo que remetida ao campo diplomático.
E existem setores da sociedade ucraniana mais renitentes perante um eventual acordo de paz que apenas signifique o regresso a uma "guerra congelada", sem qualquer perspetiva de recuperação de territórios.
"A possibilidade de uma invasão permanece muito elevada. Não ocorreu uma importante retirada de tropas e prosseguem os preparativos para uma invasão, com todos os cenários ainda possíveis", diz à Lusa Volodymyr Ariev, deputado do Solidariedade Europeia (YeS), um partido conservador, nacionalista, e principal força da oposição.
Apesar de o seu partido, liderado pelo ex-presidente Petro Poroshenko continuar a promover em simultâneo uma feroz oposição a Zelensky e ao seu partido Servo do Povo (SN) com maioria na Verkhovna Rada, o parlamento unicameral ucraniano, a "defesa do território" gera consenso nacional.
"Os perigos vão aumentar, pode começar no leste e depois alastrar a outras regiões sob controlo do Governo ucraniano. Se a Rússia reconhecer a independências das repúblicas populares secessionistas isso pode significar uma escalada imediata porque essas designadas repúblicas gostariam de controlar mais territórios dos oblast [províncias]", prognostica.
Após a "revolução de Maidan", que Moscovo considera um "golpe de Estado" dirigido a partir do exterior, a Rússia respondeu com a anexação da península da Crimeia e de seguida forneceu apoio técnico e logístico aos separatistas armados pró-russos da região do Donbass (leste), que declararam "duas repúblicas populares" em Donetsk e Lugansk, ainda não reconhecidas por Moscovo.
Na quarta-feira, a Duma russa (parlamento) aprovou uma resolução nesse sentido dirigia a Putin, que cautelosamente ainda não acatou a ordem, porque a medida significaria o fim das negociações assentes no acordo de Minsk II de 2015, favoráveis às pretensões separatistas de ampla autonomia.
Numa aparência de um dia a dia normal, os tambores da guerra continuam a assolar os ucranianos. Temem que o seu país seja abandonado, remetido a um limbo, à mercê dos interesses das grandes potências, porque sabem ter sido nesta estratégica região entre as "duas Europas" que os poderosos elegeram um novo palco para esgrimir os seus argumentos.
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