UE e ONU devem "fazer mais para pôr fim a genocídio de uigures"

A ativista uigur exilada nos Estados Unidos Rushan Abbas instou, segunda-feira em Lisboa, a União Europeia e a ONU a "fazerem mais para pôr fim ao genocídio" pelas autoridades chinesas daquela minoria muçulmana da região de Xinjiang.

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Lusa
27/09/2022 08:31 ‧ 27/09/2022 por Lusa

Mundo

Rushan Abbas

"O Governo chinês está a utilizar o nosso país como campo de treino para uma distopia do tipo '1984', de George Orwell, e está a safar-se no presente com este genocídio sob o olhar do mundo", acusou.

"[O Presidente norte-americano, Joe] Biden aprovou uma lei que proibirá, a partir do início do próximo ano, importações de bens produzidos com trabalho forçado", mas é preciso fazer mais, referiu a ativista, cuja organização foi, em fevereiro deste ano, nomeada para o prémio Nobel da Paz.

"O mundo já começou a acordar para este problema, mas o comércio e a economia metem-se no caminho", prosseguiu, acrescentando: "Cerca de 20% da produção mundial de algodão tem origem em Xinjiang, pelo que, neste momento, qualquer empresa norte-americana ou europeia que trabalhe com os chineses é cúmplice de genocídio".

E, frisou ainda, "a razão para, mesmo no mundo muçulmano -- Turquia e Palestina incluídas -- não se admitir o que se passa com os uigures em Xinjiang é a Nova Rota da Seda".

Rushan Abbas, de 53 anos, fundadora e diretora-executiva da organização sem fins lucrativos Campaign for Uyghurs (Campanha pelos Uigures), esteve em Lisboa para denunciar "o holocausto dos uigures" antes "que este termine, como aconteceu com o dos judeus na Segunda Guerra Mundial", exortando o público presente para assistir a um documentário sobre o tema a defender essa causa falando sobre ela, seja ao vivo, com familiares e amigos, seja através das redes sociais.

"Está na altura de acabarmos com o holocausto do meu povo. Um simples 'tweet' (mensagem na rede social Twitter) pode ter uma repercussão inimaginável", sublinhou.

Exibido na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa, o documentário, intitulado "In Search of My Sister" ("À Procura da Minha Irmã", em tradução livre), realizado por Jawad Mir e protagonizado por Rushan Abbas, relata "as atrocidades cometidas pelas autoridades da República Popular da China" sobre os uigures.

Trata-se, referiu, de uma parte da sua população que a China pretende eliminar para criar uma identidade nacional única, enviando milhões de adultos para campos de concentração no meio do deserto e retirando as crianças aos pais e enviando-as para orfanatos do Estado, "escolas orwellianas" onde lhes é feita "uma lavagem cerebral que as despoja da sua cultura e da sua língua" e onde crescem pensando que são han, a etnia maioritária no país.

Sempre que um uigur tenta denunciar o flagelo a que esta minoria está a ser sujeita em massa desde 2017, quem sofre as consequências é a sua família: os irmãos desaparecem, os filhos, mesmo os pequenos, são levados pelas forças de segurança, e os pais, mesmo que octogenários ou nonagenários, são capturados e muitas vezes nunca mais veem a família.

É essa a história que conta este documentário: a irmã de Rushan Abbas, uma médica de 58 anos chamada Gulshan Abbas, desapareceu a 11 de setembro de 2018 sem deixar rasto. Depois de muitas tentativas para a encontrar, a irmã conseguiu saber que ela está num desses campos de concentração, após ter sido condenada a 20 anos de prisão por "atividades terroristas".

Questionada, no documentário, sobre se se sente culpada da situação em que se encontra a irmã, Rushan Abbas responde que sim e que isso a impede de dormir à noite e também de olhar nos olhos a sobrinha mais nova, que estava grávida quando a mãe desapareceu e acabou por ter o bebé prematuramente.

Mas, acrescentou, "se a China pensa que pode silenciar-me levando a minha irmã, não pode".

O marido de Rushan Abbas, sentado ao lado dela, afirmou que por vezes também se sente culpado, porque a irmã de Rushan desapareceu depois de esta ter denunciado o desaparecimento da família dele: o irmão foi condenado a 21 anos de prisão e as três irmãs foram capturadas bem como 14 sobrinhos e sobrinhas.

Outros uigures que aceitaram falar com o cineasta denunciam situações semelhantes, de desaparecimento de familiares, e assumem uma culpa semelhante, por terem denunciado publicamente que as autoridades de Pequim querem exterminar os uigures. Um deles disse que, por sua causa, as autoridades chinesas levaram a mãe que, veio a saber anos depois, morrera num desses campos, e que nunca se perdoará.

Surgem também em primeira mão depoimentos das atrocidades cometidas nos campos de concentração de alguns uigures que lá estiveram e acabaram por ser libertados, porque os cônjuges tinham passaporte estrangeiro.

As mulheres libertadas falam sobretudo de abortos forçados, esterilizações forçadas, violações, tortura sexual com bastões eletrificados, espancamentos e mordeduras até os seus corpos ficarem irreconhecíveis, desfigurados.

De acordo com outros antigos prisioneiros, todos os que estão nos campos "são obrigados a renunciar à sua identidade religiosa e étnica, a tomar medicamentos desconhecidos, sujeitos a intensa doutrinação política, privação de comida e sono, desidratação, instalações sujas e sobrelotadas e violações em massa e tortura física e psicológica conducente à morte".

O Governo de Pequim continuou a negar a existência de tais instalações e do aprisionamento nelas de milhões de pessoas simplesmente por pertencerem a uma minoria muçulmana, mas houve um estudante uigur no Canadá que, tendo livre acesso à internet, conseguiu localizá-las através do Google Earth, pesquisando "escolas de reeducação".

Primeiro, em imagens de satélite desfocadas, os edifícios situados em pleno deserto pareciam escolas, mas ampliando-as e tornando-as mais nítidas, passaram a ser visíveis não só as grandes dimensões das construções, como as vedações de arame farpado que as rodeiam e as torres de vigia com guardas armados, relata o estudante, mostrando-as no documentário.

"A ONU recebeu extensas provas da existência desses gigantescos campos de 'reeducação' por imagens de satélite", vincou.

A China, que, segundo Abbas, "se considera, na realidade, um paradigma dos direitos humanos e está a reforçar e a aperfeiçoar a sua máquina de propaganda", tentou fazer controlo de danos rotulando a opressão dos uigures como "guerra ao terrorismo" e declarando que "as pessoas que estão a receber reeducação são os radicais".

A isso, a ativista uigur reagiu observando que "a versão oficial da propaganda chinesa, claro, é que muitas pessoas partilham ainda da ideia errada de que a islamofobia é uma realidade na China e o terrorismo não é".

A Região Autónoma Uigur de Xinjiang conseguiu por duas vezes proclamar a independência, como Turquestão Oriental, mas desde 1949 está sob a ocupação da República Popular da China, e "há milhares de câmaras nas ruas com 'software' de reconhecimento facial, se se usar o WhatsApp ou o Telegram é-se investigado, e se se sair de casa pela porta das traseiras em vez da porta da frente, isso é considerado suspeito e a polícia pode ir investigar", indicou a ativista.

Leia Também: Relatório sobre abusos em Xinjiang é reconhecimento para sobreviventes

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