Com o Mundial a terminar, como ficam agora os direitos humanos no Qatar?
A Amnistia Internacional recusa que se coloque uma "venda nos olhos" com o fim do campeonato do mundo e lembra que "tudo está por fazer" quanto à compensação dos trabalhadores migrantes que, para que o evento fosse possível, foram vítimas de abusos laborais.
© LAURIE DIEFFEMBACQ/Belga/AFP via Getty Images
Mundo Amnistia Internacional
O Mundial'2022 chega ao fim, este domingo, e ficou inevitavelmente marcado pela chuva de críticas devido aos atropelos à Declaração Universal dos Direitos Humanos no Qatar, país que acolheu o evento. O campeonato do mundo de futebol dividiu opiniões - em Portugal, mas não só - sobre a representação de cada país no local, a conivência de empresas europeias e as suspeitas de corrupção em torno da atribuição do evento.
Mesmo com o campeonato a chegar ao fim, milhares de trabalhadores continuam a enfrentar dificuldades resultantes de salários em atraso ou que não foram pagos, acesso limitado à justiça, e continua, também, por investigar a morte de muitos dos trabalhadores.
"O Mundial já decorre. A justiça não pode tardar", dissera, no mês passado, o diretor da Amnistia Internacional Portugal, Pedro A. Neto. Agora, para Ângela Ferreira João, diretora de angariação de fundos da mesma organização, "estamos noutra fase", em que é necessário garantir que estes trabalhadores e as suas famílias "não ficam esquecidos".
"Não é porque Portugal já não está na competição ou porque o Mundial vai acabar dentro de dias que esta situação tem um ponto final", defendeu a responsável.
Está tudo por fazer. Estas pessoas precisam de apoio, precisam de profissionais da área ao lado deles, a Amnistia precisa de continuar a denunciar o que acontece no Qatar, porque não falamos apenas de violações de direitos humanos por causa da construção dos estádios e de infraestruturas associadas ao campeonato, mas falamos de o Qatar ser um país que viola os direitos humanos de forma reiterada e constante."
Depois de uma campanha em parceria com a MEO para sensibilizar os portugueses para os Direitos Humanos - divulgada através da televisão, imprensa, rádio e digital -, a Amnistia Internacional segue com a petição que "pede uma posição de responsabilidade tanto da FIFA como do governo do Qatar".
Para a diretora de angariação de fundos da Amnistia Internacional Portugal, "agora que já falámos sobre a face menos boa deste Mundial", é necessário dar novo fôlego à campanha, já que "estas pessoas não podem ser esquecidas".
"O que pretendemos é que as pessoas conheçam cada vez mais em detalhe, que consultem os relatórios e que percebam que o facto de acabar o Mundial num país como o Qatar não invalida que outros abusos não continuem a acontecer ali", alertou.
O que nós não queremos é que as pessoas coloquem uma venda nos olhos e que, agora que já acabou o Mundial, já ninguém queira saber de direitos humanos. Pelo contrário. Há muitos anos que o Qatar é um dos países que a Amnistia Internacional tem vindo a falar, muito antes de se saber que o Qatar iria receber o Mundial."
Futebol: o desporto rei. Vale tudo?
O Mundial 2022, no Qatar, teve início a 20 de novembro, e termina este domingo, dia 18 de dezembro. Contudo, as preocupações sobre o cumprimento dos direitos humanos naquele país não vêm de ontem.
Ângela Ferreira João frisou, aliás, que a Amnistia Internacional não se opõe à realização de eventos de futebol desta dimensão, mas considera que a FIFA "quando escolhe o local onde se vai realizar o Mundial, tem de ter em consideração se esse país respeita os direitos humanos", lembrando que, no caso do Qatar, "estamos a falar de um país onde as pessoas não têm liberdade para serem homossexuais, por exemplo". "Há aqui uma série de questões que a FIFA devia ter antevisto", defendeu.
Desde 2010, quando a FIFA atribuiu ao Qatar a organização do evento, que esta ONG tem investigado e produzido relatórios que divulgam "exatamente as condições em que estes trabalhadores se encontravam".
O pontapé de saída dos jogos "foi só um timing" em que o tema ganhou "mais relevância".
"A verdade é que há 12 anos que falamos sobre isto e que questionamos o que é válido para acontecer um campeonato de futebol no Qatar. Não há limites? Não deveriam existir sanções? Onde é que estão as compensações para os trabalhadores e para as famílias dos trabalhadores que morreram para que este Mundial pudesse existir no Qatar?", questionou a responsável.
Para Ângela Ferreira João, esta é "a luta, a reivindicação e o pedido de justiça que tem de ser feito", até porque "a investigação exaustiva tem de continuar".
Mesmo em relação aos trabalhadores que acabaram por morrer no Qatar, muitas das autópsias dizem que morreram de causas naturais. Morrer depois de estar a trabalhar 24 horas seguidas, com temperaturas de 42 graus, não me parece causas naturais, parece-me que houve aqui negligência. É isto que nós pedimos: uma investigação exaustiva que nos diga efetivamente o que é que aconteceu no Qatar, quem é que tem de ser responsabilizado e os números oficiais.
Além disso, a Amnistia Internacional pede "uma compensação": "O dinheiro que a FIFA ganha com a realização do Mundial no Qatar pode perfeitamente ser direcionado para este fundo de compensação para os trabalhadores e as suas famílias".
Para a responsável, nem a dimensão do evento nem o facto de este estar a terminar devem impedir que se investiguem todas as mortes até às últimas instâncias.
"É inegável que o futebol é o desporto rei. Falando num campeonato do mundo, nós sabemos que a visibilidade que o evento destes tem é massiva. Claro que torna exponencial toda a concentração de preocupações que existem. Obviamente que a investigação tem de decorrer normalmente", asseverou.
A esse propósito, a instituição insistiu para que as figuras de Estado que foram a Doha se manifestassem sobre "a responsabilidade que existe na realização de um campeonato de futebol, que tem uma visibilidade brutal e que não deve usar a escravatura para poder acontecer". Nesse sentido, congratulou-se por o Presidente da República ter abordado a questão dos direitos humanos.
"Do nosso lado, obviamente que nos agrada que haja uma mensagem forte sobre o que aconteceu de pessoas que têm influência e que estão no Qatar", referiu, dando o exemplo do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa ou do protesto da seleção da Alemanha. "Não invalida o mal que aconteceu, que a situação esteja errada e que se continue a trabalhar por isso, mas obviamente que qualquer mensagem forte como a que Marcelo Rebelo de Sousa passou é algo que consideramos que é adequado e que deve existir, sim."
O que está em causa
Para a diretora de angariação de fundos da Amnistia Internacional Portugal, as condições em que se encontravam os trabalhadores ligados à construção dos estádios e outras infraestruturas "são de uma atrocidade brutal".
"Tudo começa numa fase inicial. Através de agências de recrutamento, as pessoas aceitam ir trabalhar para o Qatar. Falamos de pessoas que não são qataris, são pessoas que vêm da Índia, do Bangladesh, do Nepal, e estão à procura de condições melhores, e começam por se endividar à chegada. Têm de pagar a uma agência para ficarem trabalhadores", explicou.
"Depois, a partir do momento em que chegam, há uma lei no Qatar, um procedimento que é o 'kafala', basicamente, e é como se o empregador tivesse uma espécie de tutela sobre o trabalhador. O empregador fica com os seus dados pessoais, o passaporte, e, portanto, a partir desse momento dificilmente o trabalhador se consegue mexer no Qatar. Não consegue sair do país, não consegue pedir apoio jurídico porque não tem sequer os seus documentos e fica à mercê do empregador que tem", prosseguiu.
Ângela Ferreira João explicou que muitas dessas pessoas "não receberam salários" ou "receberam salários em atraso", "trabalharam horas e horas consecutivas com negação de dias de descanso, sob temperaturas muitíssimo elevadas, em condições completamente inseguras de trabalho". Além disso, denunciou, houve intimidação, discriminação, trabalho forçado e "mortes que continuam inexplicáveis".
"Não se pode esquecer isto", atirou, admitindo que houve reformas à lei laboral em 2018, mas que estas não saíram do papel. Ainda assim, a especialista acredita que "há muita coisa que se pode fazer", embora isso não invalide que o dano esteja feito.
"Estas pessoas precisam de apoio, estas pessoas precisam de profissionais da área ao lado deles, a Amnistia precisa de continuar a denunciar o que acontece no Qatar, porque não falamos apenas de violações de direitos humanos por causa da construção dos estádios e de infraestruturas associadas ao campeonato, mas falamos de o Qatar ser um país que viola os direitos humanos de forma reiterada e constante", conclui, incentivando aos donativos para que se alavanque o financiamento das investigações. "Isto é o muito que as pessoas podem fazer", rematou.
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