Acordo de cereais? Rússia faz "jogo duplo" e tenta influenciar na ONU
O analista Richard Gowan, do International Crisis Group (ICG), defende que o impasse criado pela Rússia na extensão do acordo dos cereais é uma estratégia de "jogo duplo" usada por Moscovo noutras negociações, para criar influência na ONU.
© Reuters
Mundo Rússia/Ucrânia
Em declarações à Lusa, Gowan, um especialista no sistema das Nações Unidas, Conselho de Segurança e em operações de manutenção da paz, negou surpresa com o facto de a Rússia apenas ter aceitado prolongar o acordo dos cereais por 60 dias, advogando tratar-se de um jogo em que está em causa a simpatia de países africanos e asiáticos, mas também a imagem da União Europeia.
"Esta é uma tática padrão de negociação russa, que vimos muitas vezes em discussões sobre a extensão do mandato da ONU para o envio de ajuda à Síria. Moscovo sabe que pode deixar o Ocidente nervoso ao ameaçar encerrar esses acordos da ONU, mas, no final, a Rússia ganha mais influência mantendo os acordos vivos e exigindo mais concessões do Ocidente para fazê-lo", observou.
A Rússia prolongou na terça-feira, por 60 dias, o acordo que permite a exportação de cereais a partir de portos ucranianos no Mar Negro, que iria expirar no próximo sábado, apesar de a ONU lutar pela renovação por 120 dias.
O acordo dos cereais, assinado em julho de 2022 por 120 dias entre as Nações Unidas, Ucrânia, Rússia e Turquia, ajudou a limitar a grave crise alimentar mundial provocada pela invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro. Foi prolongado em novembro por mais 120 dias e até ao momento permitiu exportar mais de 24 milhões de toneladas de cereais a partir de portos ucranianos, segundo a ONU.
Moscovo condicionou o prolongamento desta iniciativa ao cumprimento de outro acordo paralelo para a exportação desimpedida de alimentos e fertilizantes russos, que o Kremlin diz não estar a ser implementado.
"Suspeito que a Rússia cumpra com esses 60 dias ou que se acomode com um compromisso de 90 dias. E voltará a jogar um jogo semelhante com os prazos, dentro de dois ou três meses. É irritante, mas é uma forma de a Rússia criar influência na ONU. Acho cínico, mas temos que conviver com isso", avaliou Gowan.
Para o analista, as exportações de alimentos e fertilizantes russos - fundamentais para a agricultura global - enfrentam agora problemas de cariz técnico.
"É difícil encontrar bancos ocidentais e empresas de transporte que se sintam à vontade para facilitar essas promessas do acordo, mesmo que não haja bloqueios legais formais para que o façam", disse, acrescentando que a Rússia tem trabalhado arduamente para estabelecer acordos alternativos de exportação com países não ocidentais que não tenham sanções contra Moscovo.
"Portanto, a Rússia pode colocar muita culpa no Ocidente, mas na verdade não enfrenta grandes problemas económicos com as exportações de alimentos e fertilizantes. É um jogo duplo. Ela usa isso como uma oportunidade para ganhar simpatia também entre os países africanos e asiáticos, pois isso pode prejudicar a imagem da União Europeia", sinalizou.
Para Gowan, o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, "trabalhou arduamente" na extensão do acordo dos cereais, e possui um "conhecimento incrível dos detalhes" que rodeiam o acordo, pois sabe "que tem muita credibilidade em jogo".
Uma das prioridades de Guterres ao longo destes mais de 12 meses de guerra na Ucrânia foi garantir o fluxo de alimentos, cereais e fertilizantes ucranianos e russos para os países em desenvolvimento, de forma a travar os números crescentes de insegurança alimentar, tendo conseguido, em julho de 2022, numa mediação conjunta com a Turquia, estabelecer um acordo que permitiu essa exportação.
Na tentativa de prolongar esse acordo, Guterres viajou para Kyiv no início do mês, na sua terceira deslocação à capital ucraniana desde o início do conflito.
"Alguns países europeus acham que Guterres está excessivamente nervoso com os sentimentos de Moscovo sobre o acordo. Alguns gostariam que ele falasse mais sobre as agressões e abusos da Rússia na Ucrânia, e temem que ele não o faça porque quer manter viva a negociação dos cereais", disse Gowan, em declarações à Lusa.
"Mas acho que Guterres sente que tem que manter o acordo vivo para satisfazer os muitos membros não-ocidentais da ONU que se preocupam com os preços dos alimentos. Ele está a fazer bem o seu trabalho, e não é um trabalho fácil", admitiu o analista.
Leia Também: Incêndio no FSB? "A Ucrânia não interfere, mas observa com prazer"
Descarregue a nossa App gratuita.
Oitavo ano consecutivo Escolha do Consumidor para Imprensa Online e eleito o produto do ano 2024.
* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com