A política externa, quer nos Estados Unidos, quer na Rússia, tem marcado a atualidade e tem sido alvo de debate nos últimos meses e, mais abruptamente, nos últimos dias.
Por um lado, no que diz respeito à política norte-americana, assiste-se a um momento de abertura de precedentes com uma corrida entre um ex-presidente, Donald Trump (Trump), e o seu ex-vice presidente, Mike Pence (Pence), às presidenciais de 2024.
Além disso, como se não bastasse, Trump vai competir ainda com o governador da Florida, Ron DeSantis (DeSantis), outro candidato do Partido Republicano que está alinhado também com o conservadorismo mais radical.
Por outro lado, e de forma inesperada, a Rússia tem sido palco de tensões, nos últimos dias, após uma rebelião armada de 24 horas, liderada pelo líder do Grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin (Prigozhin), que expôs fraquezas dentro das forças armadas russas e, consequentemente, na liderança de Vladimir Putin.
Para ajudar a compreender estes temas e as suas implicações a curto/médio prazo, o Notícias ao Minuto falou com Maria João Militão Ferreira, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e especialista em Relações Internacionais, com ênfase em política externa.
Trump e as suas ambições presidenciais para 2024
Pence e Trump têm uma visão muito diferente daquilo que deve ser o exercício da política nos Estados Unidos
De uma família de democratas católicos irlandeses, Pence ajudou Trump a tornar-se presidente dos EUA em 2016. Mas pode Pence sobreviver à associação que é feita a Trump durante a corrida às presidenciais norte-americanas de 2024?
Sim, penso que sim. Aliás, a retórica de Pence no lançamento da sua campanha constitui um dos mais graves ataques a Trump, uma vez que acusou o ex-presidente de desrespeitar a Constituição norte-americana e, mais do que isso, de ter abandonado os verdadeiros valores conservadores que caracterizaram o Partido Republicano.
Pence tem a seu favor o momento de coerência discursiva e comportamental que advém do facto de se ter, no tempo certo, demarcado da invasão ao Capitólio (no dia 6 de janeiro de 2021) e de hoje poder, com alguma credibilidade, acusar Trump de deslealdade perante a Constituição - o que é uma acusação grave para alguma parte do eleitorado conservador.
O episódio da invasão do Capitólio marcou o início da colisão entre Pence e Trump e reflete de que forma é que estas duas personalidades, apesar de terem estado juntas na mesma administração, têm uma visão muito diferente daquilo que deve ser o exercício da política nos Estados Unidos.
Pence, que é filho de um veterano da guerra na Coreia, sempre se alinhou com os valores conservadores, no caso ao Partido Republicano, inclusivamente é muito próximo ao movimento Tea Party (ala radical do Partido Republicano). E, enquanto governador do estado do Indiana, o seu apreço por este tipo de valores conservadores republicanos, fizeram-se notar.
Apesar de ter estado ao lado de Trump durante o mandato enquanto presidente dos EUA, Pence é, de certa forma, uma espécie de negativo de Trump, com a vantagem de ser um pouco mais jovem do que Trump e Biden.
É uma personagem discreta que apela claramente para ideais que Trump já mostrou desrespeitar, nomeadamente a importância do respeito pela Constituição, a relevância da ética no exercício da política. Aliás, Trump acusou Pence de falta de coragem por se ter recusado a falsificar os resultados da eleição de 2020 - que lhe valeu a fúria dos apoiantes de Trump.
Neste sentido, esta demarcação de Trump pode ter um efeito positivo para Pence em relação ao eleitorado conservador, que cada vez menos se revê no estilo de Trump. No entanto, por outro lado, pode ser um fator negativo para o eleitorado republicano que acreditou e continua a acreditar na narrativa do Partido Republicano de que as eleições presidenciais de 2020 foram fraudulentas.
DeSantis e Pence têm obrigado Trump a reorientar a sua estratégia eleitoral
Ao anunciar a candidatura, Pence posicionou-se como um conservador constitucional e argumentou que o Partido Republicano precisa de ser o partido da Constituição dos EUA, abordando diretamente o juramento que fez como vice-presidente e usando-o, novamente, para contrastar com Trump. A concorrência de duas figuras populares no Partido Republicano, DeSantis e Pence, vai obrigar Trump a repensar a sua estratégia?
Há um fator interessante que tanto Pence como DeSantis têm originado. Isto porque, sobretudo DeSantis, e Pence depois um pouco a reboque, têm obrigado Trump a reorientar a sua estratégia eleitoral, fazendo-o desenvolver estratégias de confrontação no plano das ideias. Isso não é habitual em Trump, que se move no plano do insulto pessoal.
Há aqui três questões que são muito caras, neste momento, à elite conservadora republicana e que, tanto Pence como DeSantis, enquanto governadores, respetivamente, do estado do Indiana e do estado da Florida, quiserem desenvolver, que são chave: educação, sexualidade e género. Estas questões são muito importantes no debate contemporâneo conservador norte-americano.
Tanto DeSantis como Pence têm insistido numa ‘cultural war’ (guerra cultural). No plano da educação, tanto um como outro afirmam ser contra a inclusão de currículos na educação pública que contenham menções aos direitos das minorias sexuais, ao questionamento sobre o género. Portanto, ambos têm tocado nestas três questões-chave, colocando em causa até que ponto é que a educação pública nos EUA deve, no seu currículo, incluir questões da interculturalidade.
DeSantis até já proibiu na Florida qualquer menção à teoria crítica racial (Critical Race Theory em inglês), que pergunta exatamente como é que a comunidade afro-americana é discursivamente construída de um ponto de vista crítico. Assim, o que DeSantis está a fazer é a apoiar e a materializar no seu mandato enquanto governador valores profundamente republicanos.
Pence, curiosamente, já veio dizer, este ano, que não fica atrás de DeSantis no que toca a esta questão das guerras culturais e que, também ele, é particularmente conservador sobre as questões da educação, da interculturalidade, dos direitos das mulheres, dos direitos das minorias sexuais.
O posicionamento tanto de DeSantis como de Pence têm obrigado Trump a falar sobre ideias, o que normalmente Trump evita fazer porque, ao contrário de Pence e DeSantis, não é um político. Portanto, Pence e DeSantis têm obrigado Trump a reorientar as suas estratégias eleitorais, no sentido em que está a começar a falar sobre ideias.
O facto de, de alguma forma, terem provocado uma reorientação da estratégia comunicacional de Donald Trump e de o obrigarem a falar sobre as ideias que tem (ou que não tem) para os EUA e a colocar o seu debate, não no plano de insulto mas no plano de debate de ideias, é importante e uma mais valia, tanto para DeSantis como para Pence.
Trump, por exemplo, acusa DeSantis de ser muito liberal e pouco republicano no que toca à questão dos direitos sociais, à questão da Medicare. E temos aqui, portanto, um Trump a sair de um registo que é mais habitual e a entrar numa zona de discussão pouco habitual - que é a zona da discussão das ideias.
Pence quer garantir que o Partido Republicano volte ao período em que havia consensualização sobre a necessidade absoluta de respeitar a Constituição
E acha que essa mudança discursiva em Trump durante a sua campanha pode afastá-lo de ser um dos favoritos a vencedor das presidenciais?
Pode porque há aqui uma outra questão que Pence muito simboliza quando se afirma como republicano defensor da Constituição, defensor do Tea Party, defensor dos valores caros à elite republicana. Pence está, no fundo, a chamar à atenção - até mais do que DeSantis - para a importância de haver alguma integridade e regras no exercício da política. Foi, aliás, esse posicionamento que o levou a reconhecer a derrota do Partido Republicano e a validar a vitória de Joe Biden e Kamala Harris (atuais presidente e vice-presidente dos EUA, respetivamente) nas eleições de 2020.
Pence quer garantir que o Partido Republicano volte ao período em que havia consensualização sobre a necessidade absoluta de respeitar a Constituição, em que havia alguma integridade, algum respeito por valores no exercício da politica. Foi algo que desapareceu do Partido Republicano durante o mandato de Trump, e que anda a desaparecer com a hegemonia de Trump novamente desde que é candidato às eleições presidenciais. Por isso é que considero que é um negativo de Trump.
Pence obriga Trump a posicionar-se no campo dos valores e a falar sobre política, algo que é uma desvantagem para Trump devido a todos os processos judiciais em que está envolvido. Trump não é reconhecido como uma personalidade política que está afeta a qualquer tipo de norma ou ética e que, inclusive, não respeita a própria constituição que ele jurou, quando assumiu o cargo de presidente dos EUA.
Há aqui um negativo (Pence), uma clara oposição em termos de posicionamento político, que pode favorecer Pence, sobretudo se continuarem a vir ao de cima detalhes - tais como a forma como lidou com um documento altamente confidencial que o próprio assumiu esta semana - que mostram a falta de ética e integridade no exercício da política de Trump.
O que Pence pretende também, no fundo, é que venha ao de cima esta faceta conservadora mais respeitosa da Constituição e de como as coisas eram tradicionalmente feitas nos EUA, que todos os presidentes até Trump sempre respeitaram. Isso pode ser um trunfo para Pence.
DeSantis já é alguém que está particularmente colado a Trump e, portanto, não tem essa dimensão de descolamento de Trump ao nível da postura, tanto quanto fez Pence.
Mais do que Pence, DeSantis é um candidato muito apelativo para o eleitorado republicano
Pence apontou querer voltar às políticas que ele e Trump defenderam durante o mandato. Com uma promessa de cumprir a constituição, será o antigo vice-presidente capaz de unir um partido republicano cada vez mais dividido?
Isso tenho as minhas dúvidas porque penso que o Partido Republicano já entendeu que se for necessário criar uma alternativa a Trump - como se prevê que seja - essa alternativa não passe por Pence, mas sim DeSantis.
DeSantis é uma figura muito interessante para o Partido Republicano por diferentes razões. É um homem relativamente jovem e que apela às grandes elites conservadoras norte-americanas.
Em primeiro lugar, à elite económica. E aqui é preciso ter-se em conta que DeSantis diminuiu a despesa pública do estado da Florida e, esse mesmo estado, durante a pandemia, teve uma relativamente boa ‘performance’.
Tem uma narrativa de preservação das liberdades norte-americanas, o que, por exemplo, o posiciona como um defensor do porte de armas, contra as políticas ambientais, de preservação do clima e combate ao aquecimento global, contra os fluxos migratórios.
Além disso, tem encabeçado, do ponto de vista republicano e conservador, a tal ideia das guerras culturais com a esquerda norte-americana sobre a importância da educação de género e da educação para a interculturalidade. Portanto, do ponto de vista dos valores republicanos, diferencia-se.
É um ex-marine (ex-militar da Marinha dos Estados Unidos), tem um percurso militar sem mácula portanto agrada à elite militar. E agrada muito à elite conservadora norte-americana, mais do que Pence, porque teve um excelente resultado eleitoral no estado da Florida - que democratas e republicanos cobiçam particularmente.
Isto, aliado ao facto de ter obrigado Trump a falar sobre ideias faz DeSantis um melhor candidato, na minha opinião, que Pence. Pence, apesar de se ter demarcado de Trump, foi seu vice-presidente e está desgastado. DeSantis aparece aqui como uma espécie de John Kennedy (antigo presidente dos Estados Unidos de 1961 a 1963), do século XXI, do ponto de vista do parecer republicano.
Mesmo que DeSantis não ganhe agora a nomeação, será sempre uma mais valia para o Partido Republicano, por este facto de saber apelar às três elites conservadoras norte-americanas - económica, militar e política.
DeSantis também já provou na Florida ser capaz de ir buscar os votos não só dos republicanos tradicionais como também dos eleitores que estão indecisos nas votações entre o partido republicano e o partido democrata. E faz esse apelo ao voto do Partido Republicano sem causar o drama e o caos político que está associado a Trump.
E por isso, mais do que Pence, DeSantis é um candidato muito apelativo para o eleitorado republicano e tenderá a crescer à medida que (e se) Trump se for degradando enquanto potencial candidato à eleição.
É um homem de valores e que pensa que é preciso marcar a diferença em relação a Trump
Considera que a candidatura de Pence é uma afronta direta à autoridade de Trump, como o mesmo tem reiterado, ou vai mais além e serve para mostrar que a sua traição a Trump não passava de especulações inventadas pelo próprio para denegrir a sua imagem entre os eleitores republicanos?
Penso que não, penso que Pence acredita piamente que é preciso levar o Partido Republicano por caminhos diferentes do que aqueles que se avizinham ser aqueles que Trump quer voltar a pisar.
Aliás, já vários notáveis do Partido Republicano, nomeadamente George Bush filho, fizeram esse apelo. Há uma ala do partido que quer claramente encontrar candidatos que sejam alternativas à via 'trumpista' que, segundo esta ala, vai desvirtuar e desvirtua aquilo que é a marca tradicional do Partido Republicano.
Penso que foi isso que levou Pence a ter o comportamento que teve na invasão do Capitólio, tendo, de alguma forma, validado e contribuído para a transição mais ou menos pacífica dos poderes republicanos para os democratas. É um homem de valores e que pensa que é preciso marcar a diferença em relação a Trump, que é exatamente o oposto.
Tanto DeSantis como Pence ilustram, com as suas políticas e com as suas propostas, o que é o conservadorismo republicano
Com estes três candidatos (Trump, DeSantis e Pence) às presidenciais de 2024, que tipo de futuro pode ter o Partido Republicano? Conseguirá dissociar-se dessas ideias mais radicais?
Em boa verdade, embora no caso de Pence ele se metabolize por ter uma postura diferente de Trump, a verdade é que, em termos de políticas públicas, quer Pence, quer DeSantis são extremamente conservadores.
Sobretudo DeSantis, mas também Pence - se olharmos para o futuro enquanto governador do estado do Indiana - têm aprovado legislação que é considerada particularmente conservadora. Ambos estão situados na ala mais radical do plano das ideias do partido conservador republicano.
Foi Pence que, no estado do Indiana, e contra a corrente daquilo que está a acontecer nos outros estados, aprovou a Religious Freedom Restoration Act - que é um documento legislativo que claramente constitui uma discriminação dos direitos das minorias sexuais.
Já DeSantis, durante a pandemia de Covid-19, seguiu a linha inspirada em Trump em atitudes de prevenção - no que dizia respeito à obrigatoriedade da vacinação, dos confinamentos, da utilização de máscaras - e tem também seguido políticas apelidadas de discriminatórias face à diversidade cultural (a chamada guerra cultural que opõe a direita e esquerda nos EUA). Além de perseguir uma política intolerante no que diz respeito aos direitos às minorias sexuais e ao aborto.
Isto significa que tanto DeSantis como Pence ilustram, com as suas políticas e com as suas propostas, o que é o conservadorismo republicano. O facto de DeSantis e, no seu tempo, Pence, terem conseguido prosseguir essas políticas sem causar drama e a comoção que estão associados a Trump é uma coisa, mas outra é terem-nas realmente prosseguido. Isso coloca-os numa ala particularmente conservadora e radical do conservadorismo republicano.
Logo, não são conservadores moderados, são conservadores radicais, do ponto de vista ideológico, e é preciso ter-se isso em conta quando se fala de um futuro sem Trump, de um futuro de um partido republicano sem Trump. Sobretudo se esse futuro passar por DeSantis, que, em termos republicanos, é um republicano extremamente conservador.
Tensão na Rússia e o enfraquecimento de Putin
Putin está claramente enfraquecido
Prigozhin, que liderou, recentemente, uma rebelião contra o exército russo, esteve também implicado na adulteração de resultados nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, ao manipular a opinião pública em contas criadas nas redes sociais antes das eleições presidenciais que Trump viria a vencer. Trump chegou mesmo a comentar a rebelião dizendo tratar-se de uma "grande confusão na Rússia", elogiando Putin e sugerindo que uma troca de liderança podia ser para pior. Considera que a liderança de Putin ficou enfraquecida com estes movimentos dos mercenários?
Eu considero que sim, embora não se saiba exatamente aquilo que se passou e aquilo que se está a passar na Rússia. Penso que há aqui dois cenários. Num primeiro cenário, pode ter-se tratado uma encenação liderada por Moscovo (capital da Rússia) para retirar o Grupo Wagner do palco público. E porquê?
Este grupo tem tido uma ação multicontinental porque está em África, no Médio Oriente, e agora na Ucrânia, e tem sido instrumental enquanto arma político-militar e de disseminação do terror nas mãos da Rússia e do regime do presidente da Rússia, Vladimir Putin (Putin).
É um grupo totalmente financiado por grupos do Kremlin e talvez Putin tenha chegado à conclusão de que seria hora de retirar alguma notoriedade a este grupo e daí ter preferido acabar com as operações na Ucrânia. Isto pode ter levado este grupo a insurgir-se.
Mas há aqui um segundo cenário, que é o facto de esta rebelião - à semelhança de outros conflitos em que a Rússia tem intervido - poder significar o início do fim de Putin. Isto porque demonstra que as forças armadas russas estão a enfraquecer com a guerra e estão a criar-se forças paramilitares.
O facto de haver uma notoriedade do Grupo Wagner está a retirar visibilidade às forças regulares do exército russo e isso é algo que não pode agradar às chefias militares do Kremlin.
Portanto, pode ser visto através de dois cenários. Yevgeny Prigozhin, o líder do Grupo Wagner, pode ter concordado com Putin sair de cena e, portanto, encenou aqueles acontecimentos - uma suposta marcha sobre Moscovo e depois, subitamente, uma retirada para a Bielorrúsia (o que é extremamente conveniente tanto para ele como para Putin, mas até mais para Putin).
Ou, então, não se tratou de uma encenação e foi realmente uma rebelião e o princípio de uma dissensão militar séria. Nesse caso, pode demonstrar que Prigozhin sabia que tinha apoio dentro das forças regulares russas e isso motivou a que pensasse que podia, de alguma forma, chegar a Moscovo.
Se olharmos para a história da Rússia, a questão da tomada de Moscovo, a ideia de tomar Moscovo, de marchar sobre Moscovo, invoca nos russos - e nos moscovitas em particular - traumas e memórias históricas muito duras, nomeadamente de guerras mundiais e de outros conflitos ao longo dos séculos.
O facto de Prigozhin ter frisado esta ideia da marcha sobre Moscovo, sabendo que invoca nos russos e moscovitas dramas históricos, sugere que pode ter tentado semear o terror mas com a consciência de que ia ter a publicidade de elementos das forças regulares russas.
Portanto a questão é: até que ponto Putin e as chefias militares que estão ao seu lado controlam, neste momento, a totalidade das forças militares russas? E até que ponto Prigozhin pode estar a explorar (porque ele continua a falar a partir da Bielorrússia) eventuais dissensões dentro das forças armadas regulares russas? Se elas existem, ele conhece-as, embora seja, curiosamente, o líder de uma força paramilitar não regular e que opera pela Rússia em vários cenários de confronto militar.
Se aquilo que se vier a confirmar é este segundo cenário, então diria que sim, Putin está claramente enfraquecido. Isto porque o presidente russo depende, como todos os regimes, da condescendência das suas forças armadas, e se houver uma dissensão dentro das forças regulares russas, então pode haver uma transição de regime.
Uma transição de regime para o quê é que não sabemos, porque como dizem os norte-americanos - e com alguma razão - os líderes ocidentais conhecem Putin, têm o número de telefone de Putin, falam com Putin. Com Prigozhin já seria outra coisa.
Não quer dizer que se houver uma transição de regime que Prigozhin assumisse o poder - longe disso. Prigozhin pode ser um pião no xadrez de outras forças que estejam a querer provocar uma transição de regime para colocar um substituto no Kremlin, que pode ser tão ou mais radical que ele. Nomeadamente pode ser Dmitri Medvedev (Medvedev), atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, mas também ex-presidente.
Aquilo que se pergunta agora é o que é que Putin vai fazer com os efetivos que estavam no Grupo Wagner
Durou apenas 24h00, mas que consequências e desafios pode a rebelião ter trazido para o regime de Putin e para a elite russa após ter sido exposta uma possível crise política?
As consequências aqui são claramente militares porque o que estamos aqui a falar é uma questão de lealdade das chefias militares à liderança política.
Perante esta dissensão, aquilo que se pergunta agora é o que é que Putin vai fazer com os efetivos que estavam no Grupo Wagner: se vão ser julgados, se vão ser presos, ou se vão, inversamente, ser integrados no exército, ou da Bielorrússia ou mesmo no russo.
Putin já argumentou que o Grupo Wagner foi sustentado e financiado com dinheiros russos e, portanto, parece estar a querer insinuar que, nesse sentido, haverá um vínculo militar do Grupo Wagner ao Kremlin. Assim, uma solução poderá ser o desarmamento do grupo e, eventualmente, a reintegração dos membros no exército regular russo.
As atenções devem focar-se agora em perceber quais são as consequências da rebelião no plano militar. O que é que as autoridades russas vão fazer com estes efetivos militares altamente qualificados - possivelmente muito mais bem pagos do que o exército regular russo.
Putin afirmou que sempre tratou estes guerrilheiros e os seus comandantes com respeito, que são elementos que sempre mostraram bravura e heroísmo. Nesse sentido, pode estar a preparar o caminho não só para o desarmamento do Grupo Wagner mas para aquilo que é uma questão mais profunda - que é a sua integração no exército regular russo. Putin precisa de efetivos militares bem preparados numa altura em que a guerra ameaça prolongar-se nos próximos anos.
Normalmente, quem se opõe ao regime russo (ativistas, opositores políticos), tem uma sanção particularmente grave na Rússia. Putin a insistir que estes homens, que faziam parte do Grupo Wagner, são patriotas, são bravos, contrasta com a forma como o seu regime normalmente trata opositores políticos como jornalistas e ativistas. Normalmente ou são assassinados das formas que conhecemos, ou são presos e desaparecem.
Mas a forma como Putin se está a dirigir a este grupo, pode significar que estes guerrilheiros vão potencialmente ser integrados ou no exército da Bielorrússia ou no próprio exército russo.
No sentido de mostrar a sua liderança militar, Putin vai endurecer bastante a guerra na Ucrânia
Uma rebelião como a travada pelo Grupo Wagner levantou questões nos escalões superiores do poder na Rússia, que apoiam Putin na invasão à Ucrânia. Estes possíveis desentendimentos podem sugerir que a guerra fique para segundo plano e que haja uma retirada das tropas?
Se há alguma coisa que todos devem a Prigozhin é o facto de ele ter exposto as brechas e falhas do comando militar russo. Aliás, esse foi o seu grande objetivo - denunciar, de alguma forma, daquilo que ele considera que é a incompetência dos líderes militares russos.
De alguma forma, os acontecimentos desse fim de semana foram um choque mas, se olharmos para aquilo que eram as práticas discursivas de Prigozhin vemos que, já há largos meses, vinha exatamente a chamar à atenção sobre as insuficiências, sobretudo ao nível da liderança estratégica das forças armadas russas. E terá sido, aliás, essa insuficiência, que o terá levado a tomar o caminho da rebelião.
É natural que agora Putin vá querer, de alguma forma, mostrar que as acusações de Prigozhin não são acusações verdadeiras e que o comando militar russo está mais integrado, que é mais coerente, que é mais estratégico do que aquilo que Prigozhin faz querer.
O que se prevê, no sentido de mostrar a sua liderança militar, é que Putin vá endurecer bastante a guerra na Ucrânia. Um Putin mais fraco vai ter, paradoxalmente, o efeito de uma guerra mais dura e, sobretudo, uma guerra mais suja.
Quer através de grupos paramilitares, quer através do exército regular russo, deve-se, nos próximos meses, assistir a um endurecimento da guerra na Ucrânia. Putin, para manter a sua posição - e ele deve a sua posição às chefias militares - vai ter de mostrar que Prigozhin está errado e que, estrategicamente, o alto comando militar russo é consequente.
Num regime severamente autoritário como o de Putin, nada pode escapar ao controlo, portanto vai ter de dar resposta a esta falta de controlo sobre algo vital que são as forças armadas.
O que está em causa é a crença de Putin de que Prigozhin não tinha só o Grupo Wagner do seu lado, mas também tinha elementos das forças armadas regulares russas. E isso é algo que deve incomodar Putin porque é o princípio de uma rebelião dentro das forças armadas russas.
A resposta pode perfeitamente levar a uma intensificação das operações militares na Ucrânia, até porque estamos agora em período de verão e o próprio clima favorece esse endurecimento.
Parece-me ser uma ação totalmente interna
Os movimentos dos mercenários alimentaram também especulações sobre exatamente quem sabia e se houve ajuda de alguma potência ocidental. Acha que isso é possível?
Sabia-se que os EUA conheciam os planos de Prigozhin de antemão, mas penso que isto terá sido uma ação exclusivamente do Grupo Wagner, com uma eventual cumplicidade de grupos do exército regular russo.
Aquilo que aconteceu na Rússia foi um desafio claro à autoridade do Kremlin. O Grupo Wagner tomou militarmente algumas instalações militares russas e ameaçou marchar sobre Moscovo.
Isto parece-me ser uma ação totalmente interna, doméstica. A questão é do exército regular russo com uma força paramilitar mercenária e, depois, estes dois grupos, instrumentalizados ou não, pelo Kremlin. Portanto, há aqui um triângulo - que é um triângulo crítico para Putin e que une o Kremlin às suas forças armadas regulares e a grupos mercenários.
O que pode ter acontecido é que um grupo mercenário pode ter criado laços com grupos regulares do exército russo e isso constitui uma clara quebra de controlo para Putin. Foi, por isso, aliás, que a Bielorrússia e o regime bielorrusso intervieram logo, no sentido de mediar a situação, mas entendendo-a como uma situação interna russa.
Aliás, Medvedev já veio avisar o mundo - apresentando a questão também como uma questão interna russa - que se Prigozhin metesse as mãos em armas nucleares, aí haveria um agravamento seríssimo das condições de ordem no sistema internacional.
O que prova que tanto o presidente da Bielorrúsia, Aleksandr Lukashenko (Lukashenko), como Medvedev compreenderam esta questão como um problema militar interno russo. Medvedev, no fundo, o que está a querer dizer é: ‘Reparem, Putin é um líder muito mais seguro com quem se pode falar e Prigozhin é inseguro, mercenário, não é político, e muito mais errático’.
Prova ainda que, apesar de enfraquecido [Putin] e de ser muito fácil discursivamente encontrar bodes expiatórios no Ocidente, desta vez Putin e o seu regime não o fizeram. Ou seja, localizaram a questão dentro da esfera doméstica russa.
Isto não significa que nas próximas semanas não possamos encontrar bodes expiatórios externos para tentar justificar aquilo que é claramente um enfraquecimento de Putin. Tal é o enfraquecimento que Lukashenko teve de vir em seu auxílio.
Leia Também: Chefe da diplomacia europeia vê Putin enfraquecido mas "mais perigoso"