"O objetivo final da Rússia é duplo, no sentido da ameaça e da retirada do acordo existe um objetivo comercial, porque Moscovo tenta fazer crer que o fornecimento da Ucrânia não é fiável nem estável, sendo que existe uma quota de mercado que a Rússia pretende ganhar junto daqueles que têm importado historicamente cereais ucranianos", disse à Lusa o académico da Universidade Autónoma de Lisboa.
Analisando os dados e informações sobre a crise da exportação de cereais, o diretor do Departamento de Relações Internacionais daquela universidade concluiu que há uma tentativa de fazer chantagem sobre o acordo de cereais como "arma de guerra".
A partir do momento em que sai do acordo, referiu, a Rússia deixa de ser responsável pelos compromissos inerentes ao acordo, não apenas em relação à salvaguarda da segurança dos navios que estariam a exportar os grãos e cereais ucranianos mas também das infraestruturas portuárias e dos silos.
"A Rússia volta a ter como alvo direto os portos e os silos de abastecimento como, hipoteticamente, os navios", disse.
Por outro lado, Luís Tomé argumentou que "não é muito sustentável, mesmo para aqueles que são apoiantes da Rússia", manter esta situação durante muito tempo pela razão de que o "mundo começa a perceber" que "há uma parte da história mal contada" pelo Kremlin.
"Se é verdade que do escoamento dos cereais ucranianos apenas 03% foram para países com rendimentos mais baixos e 44% foram para os países com rendimento mais elevado, também é verdade que entre os maiores importadores de cereais ucranianos estão a República Popular da China e a Turquia, que faz parte do acordo", referiu.
O Egito e o Bangladesh estão em sétimo e sexto lugar.
No limite, como a ONU indica, este acordo não é humanitário, tratando-se de um acordo de tipo comercial para permitir o escoamento dos cereais ucranianos mas também visando a segurança alimentar global e em particular dos países mais carenciados, uma vez que havendo escassez de alimentos, os preços aumentam e os países mais pobres ficam mais prejudicados.
Desta forma, o grande efeito da situação está relacionado com o preço global dos alimentos que baixaram 23% desde o estabelecimento do acordo e não pelas vendas aos países mais pobres.
"Aliás, essa é a contrapartida que (Vladimir) Putin tem anunciado: a oferta gratuita de cereais aos países mais pobres mas não o pode fazer a todos os Estados destinatários dos cereais ucranianos", destaca Luís Tomé.
O académico diz ainda estar convencido de que dentro de pouco tempo, a Rússia vai regressar ao acordo, depois de esticar "ao limite a corda" para ver se consegue obter alguma das contrapartidas que foi exigindo sendo que, acrescenta, não lhe é sustentável a médio e a longo prazo manter esta posição pelos danos que vai causar em muitos dos próprios "parceiros e até aliados".
Assim, a postura de Moscovo pode ter um efeito contrário para a Rússia, porque muitos países são sensíveis à "narrativa" do Kremlin, que se apoia na "traição dos ocidentais" por não cumprirem os pressupostos do acordo.
"Depois, há uma outra parte factual, exposta pelas Nações Unidas e que coloca tudo em causa. Basta pensar que a exportação dos cereais ucranianos baixou ao longo dos últimos meses, atingindo o nível mais baixo em julho deste ano com menos de 1,4 milhões de toneladas escoadas", recordou.
A Rússia aumentou consideravelmente o caudal de exportações de cereais através do Mar Negro, captando uma parte do mercado que anteriormente era da Ucrânia e é possível que muitos dirigentes africanos e do Médio Oriente não deixem de confrontar a Rússia no caso de começarem de ter de pagar mais pelos alimentos.
Por outro lado, sublinhou, as Nações Unidas - "desunidas em situação de conflitualidade" - têm tentado salvaguardado o acordo apresentando soluções às exigências de Moscovo como o recurso ao pagamento SWIFT, pelo Banco Agrícola russo e através de instituições bancárias norte-americanas e sul-africanas.
Quanto ao escoamento de amoníaco e fertilizantes, indicou que a situação é diferente porque o oleoduto utilizado explodiu provocando acusações mútuas entre Moscovo e Kiev sobre responsabilidades neste assunto.
"Este é o principal travão às exportações de amoníaco no Mar Negro", disse frisando que é muito difícil para as Nações Unidas e para a Turquia fazerem quando confrontados com "jogos cínicos".
"Putin mantém margem para fazer as duas coisas: permanecer no acordo ou abandonar o tratado, 'disparando para o lado' para, daqui a um minuto, ou na próxima cimeira Rússia-África (fim do mês de julho) ou na reunião dos BRIC (agosto) ceder em nome dos países mais pobres", conclui Luís Tomé.
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