O discurso anti-imigração foi uma das marcas da campanha eleitoral dos partidos que subiram ao poder em outubro de 2022 - Irmãos de Itália, de Meloni, e Liga, de Matteo Salvini, que formam a atual coligação governamental com o Força Itália fundado pelo entretanto falecido Sílvio Berlusconi - e que prometeram 'mão dura' para travar as entradas de migrantes no país.
Contudo, e apesar da "promessa" de um verdadeiro bloqueio naval no Mediterrâneo e da diminuição de chegadas irregulares, Itália está a assistir este ano ao maior fluxo migratório dos últimos anos: desde o início de 2023, chegaram ao país mais de 106 mil migrantes, mais do dobro do que no mesmo período do ano passado.
Apesar de Meloni, juntamente com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, terem fechado em Tunes este ano um acordo para as autoridades locais "travarem" as saídas a troco de um avultado apoio financeiro, a Tunísia é o país que mais contribui para o aumento recorde do número de chegadas.
Dado o fluxo de chegadas e falta de recursos, o governo está agora a implementar um sistema de redistribuição pelo país que está a deixar as regiões e províncias à beira de um ataque de nervos, com muitos autarcas a advertirem que a capacidade de acolhimento das cidades está à beira do colapso.
Um dos grandes problemas é a instalação de menores não acompanhados -- só na região da Lombardia (norte), este ano chegaram quase 3.000. As redes de acolhimento estão saturadas e não conseguem cumprir as duas formas de proteção prevista na legislação (acolhimento em família e a tutela voluntária), o que aumenta o risco de os jovens migrantes terminarem nas redes de tráfico de droga, da prostituição ou do trabalho forçado.
Na quarta-feira, o presidente da Câmara de Milão, Giuseppe Sala, juntou-se aos apelos, pedindo ao governo "uma redistribuição mais clara e uniforme" dos migrantes e refugiados por todos os municípios de Itália, comentando que, "tal como a Itália está a pedir que os imigrantes sejam redistribuídos por toda a Europa", também Milão pede para não carregar um 'fardo' tão grande.
O governo tem desvalorizado as queixas dos autarcas, considerando-as "surreais" e politicamente motivadas, mas, com o agravamento da situação, até ministros da coligação governamental já admitem que a situação está a ficar fora do controlo, e no passado domingo o ministro das Empresas, Adolfo Urso (Irmãos de Itália), pediu um maior apoio dos parceiros europeus.
"A situação em Lampedusa está à vista de todos, mas tem de ser a Europa a dar-nos uma mão, aos italianos, para gerir melhor este fenómeno", disse Urso, durante uma visita à ilha, que é a principal porta de entrada dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo desde o norte de África.
De Bruxelas, a Comissão Europeia limita-se a indicar que tem estado a trabalhar com as autoridades italianas para ajudar a descongestionar o 'hotspot' [centro de acolhimento] de Lampedusa e a "fornecer assistência de emergência para permitir a transferência por via aérea de migrantes vulneráveis da ilha para outros locais em território italiano", mas admite estar "consciente da pressão exercida sobre o sistema de acolhimento em Itália", com muitos Estados-membros a oporem-se a uma redistribuição dos migrantes pelo território da União Europeia.
No centro de um fogo cruzado de críticas, o governo de Meloni também não é poupado pelas organizações não-governamentais (ONG) que operam no Mediterrâneo, que acusam Roma de restringir o acesso humanitário, ao dificultar sobremaneira as operações de busca e salvamento numas águas onde este ano já terão morrido em naufrágios pelo menos 2 mil pessoas.
O mais recente confronto foi motivado pela retenção de três navios de busca e salvamento de ONG, por desrespeito das novas regras implementadas já este ano pelo governo, que decidiu proibir as ONG de efetuarem mais de uma operação de salvamento em cada saída para o mar e impor-lhes o porto de desembarque dos migrantes recolhidos, muitas vezes a considerável distância. De acordo com a coligação governamental, as ONG "incentivam" os migrantes a atravessar o Mediterrâneo.
Na semana passada, Elly Schlein, a líder do principal partido de oposição, o Partido Democrático (PD, centro-esquerda), acusou o governo liderado por Meloni de cometer "o crime de solidariedade" ao multar e apreender navios de ONG de busca e salvamento de migrantes "por salvarem mais vidas do que as 'autorizadas'".
Em resposta, Meloni argumentou que o seu governo está "apenas a fazer cumprir a lei", de acordo com "os princípios que sempre existiram em todos os Estados", no sentido de "não facilitar a imigração ilegal e favorecer, direta ou indiretamente, o tráfico de seres humanos".
Mas a situação atingiu um nível tal que as críticas até já chegam de 'dentro': recentemente, o vice-presidente da câmara de Lampedusa, Attilio Lucia - membro da Liga - questionou "onde está a primeira-ministra Meloni, que falava em bloqueio naval?", afirmando que "esperava que, com um governo de direita, a situação finalmente mudasse, mas a direita está a ficar pior do que a esquerda".
A ironia da situação é tanto maior quando um decreto de Meloni sobre migração legal estima que a Itália precisa de 833 mil novos migrantes nos próximos três anos para preencher as lacunas no seu mercado de trabalho, devido ao declínio demográfico acentuado no país: na última década, a Itália perdeu cerca de 1,5 milhões de pessoas e já há mais reformados do que trabalhadores ativos em um terço das províncias do país.
Leia Também: Meloni visita bairro marcado por agressões sexuais e droga e promete agir