Um conflito diplomático sem precedentes? A visita do presidente da Argentina a Madrid, em Espanha - para intervir numa convenção da extrema-direita intitulada 'Viva 24' - abriu uma crise nas relações entre ambos os países.
Tudo começou quando, este domingo, Milei se referiu ao "socialismo maldito e cancerígeno", antes de acrescentar: "Que cambada de gente aparafusada ao poder. Mesmo quando tem uma mulher corrupta, suja-se e tira cinco dias para pensar nisso".
De recordar que o socialista Pedro Sánchez disse, no final de abril, que ponderava demitir-se invocando ataques à família, sobretudo à mulher, baseados em campanhas de desinformação. Passados cinco dias de reflexão, decidiu manter-se no cargo.
"Se permitirmos ataques a pessoas inocentes, então não vale a pena. Se permitirmos que as mentiras mais grosseiras substituam o debate baseado em provas, então não vale a pena", indicou o primeiro-ministro espanhol na altura, considerando não haver fundamento para o ataque.
Em reação às palavras do presidente argentino na convenção, o ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, afirmou, ainda no domingo, que "o senhor Milei, com o seu comportamento, levou as relações entre Espanha e Argentina ao momento mais grave na nossa história recente".
"Espanha também exige desculpas públicas ao senhor Milei. Caso não se produzam essas desculpas, tomaremos as medidas que consideramos oportunas para defender a nossa soberania e a nossa dignidade", acrescentou, sem dar mais detalhes.
O ministro considerou que as palavras de Milei "ultrapassam qualquer tipo de diferença política e ideológica" e "não têm precedentes na história das relações internacionais e ainda menos na história das relações entre dois países e dois povos unidos por fortes laços".
Rompe com todos os usos diplomáticos e com as mais elementares regras da convivência entre paísesAlbares realçou que Milei "foi recebido na capital de Espanha de boa-fé" e tratado "com todo o respeito e deferência devida", tendo sido colocado à disposição do Presidente da Argentina "os recursos públicos do Estado espanhol necessários" para a sua estadia.
Milei, porém, respondeu com "um ataque frontal" à democracia e às instituições espanholas, lamentou Albares. O ministro espanhol disse ser inaceitável que um chefe de Estado "insulte Espanha e o presidente do Governo de Espanha" durante uma visita ao país: "Rompe com todos os usos diplomáticos e com as mais elementares regras da convivência entre países".
De frisar que o governo de Espanha retirou, ainda no domingo, a embaixadora do país em Buenos Aires, María Jesús Alonso, por causa de declarações do Presidente da Argentina, Javier Milei, que Madrid considera insultos ao líder do executivo, Pedro Sánchez.
Já hoje, José Manuel Albares convocou o embaixador da Argentina em Madrid, Roberto Bosch, para lhe transmitir formalmente a exigência de um pedido de desculpas públicas.
EN DIRECTO
— La Moncloa (@desdelamoncloa) May 19, 2024
Declaración institucional del ministro de @MAECgob, José Manuel Albares, desde La Moncloa. https://t.co/OSlUr7GPM6
"Ataques contra familiares não têm espaço na nossa cultura"
Também Josep Borrell, o chefe da diplomacia europeia, condenou já "os ataques" de Milei, numa publicação na rede social X. "Os ataques contra familiares dos líderes políticos não têm espaço na nossa cultura: condenamo-los e rejeitamo-los, especialmente quando vêm de parceiros", escreveu Borrell.
O chefe da diplomacia europeia defendeu que "o respeito no debate público" é um dos pilares da União Europeia, a par da "liberdade política, da prosperidade e da coesão social baseada na redistribuição fiscal".
Political freedom, prosperity, social cohesion based on fiscal redistribution, respect in public debate are pillars of the EU.
— Josep Borrell Fontelles (@JosepBorrellF) May 19, 2024
Attacks against family members of political leaders have no place in our culture: we condemn and reject them, especially when coming from partners. https://t.co/xLk19J8GSe
Sánchez: "O respeito é irrenunciável". E o que disse Milei?
Já esta segunda-feira, foi a vez de Pedro Sánchez se referir ao 'caso'. O primeiro-ministro espanhol defendeu que o respeito entre governos de dois países "é irrenunciável" e acusou o presidente argentino, Javier Milei, de não ter estado à altura do cargo durante a visita a Madrid.
"Evidentemente que entre governos os afetos são livres, mas o respeito é irrenunciável", disse o governante, num evento em Madrid organizado pelo jornal Cinco Dias.
Sánchez pediu uma "retificação pública" a Milei das declarações que fez no domingo. "A resposta do governo de Espanha estará de acordo com a dignidade que representa a democracia espanhola e com os laços de irmandade que unem Espanha e a Argentina, neste momento presidida por um Presidente que, infelizmente, não esteve à altura com as suas declarações", acrescentou.
"Sou plenamente consciente de que quem ontem falou não o fez em nome do grande povo argentino. Mas o que vimos ontem em Madrid fala do risco que representa a internacional de extrema-direita para sociedades como a nossa", considerou ainda Sánchez, apelando à "condenação rotunda" por parte de todas as forças políticas democráticas das declarações de Milei no domingo, mas também de outros dirigentes políticos, como o presidente do Vox, Santiago Abascal.
No entender de Sánchez, o líder do Vox fez um "apelo explícito à violência política" quando pediu no domingo para o atual governo de Madrid, eleito democraticamente em eleições, ser "expulso a pontapé".
Javier Milei só se referiu a esta polémica, até agora, numa breve publicação na rede social X, hoje de manhã, quando regressou à Argentina, em que escreveu: "Olá a todos! O leão regressou, a surfar uma onda de lágrimas socialistas... Viva a liberdade, c***!"
HOLA A TODOS...!!!
— Javier Milei (@JMilei) May 20, 2024
VOLVIÓ EL LEÓN, SURFEANDO SOBRE UNA OLA DE LÁGRIMAS SOCIALISTAS...
VIVA LA LIBERTAD CARAJO pic.twitter.com/SiDkgLHTnG
"Chocante", "intromissão" e "escalada". As reações em Espanha
O Partido Popular espanhol (PP, direita) considerou esta segunda-feira o discurso de Milei em Madrid "chocante" e "uma intromissão na política nacional", mas defendeu que o Governo e Sánchez estão a "exagerar muitíssimo".
"Transformar a mulher de Pedro Sánchez na razão de uma possível rutura das relações diplomáticas com a Argentina é exagerar muitíssimo", disse o dirigente do PP Esteban González Pons, numa entrevista na rádio COPE.
A mulher de Pedro Sánchez não é um assunto de Estado
González Pons ressalvou que Milei não pode ir a Madrid na sua primeira viagem após tomar posse como Presidente da Argentina sem saudar o Rei, o Parlamento e o Governo de Espanha e participar num evento partidário "e remexer na política espanhola".
"Mas a mulher de Pedro Sánchez não é um assunto de Estado", acrescentou o dirigente do PP, para quem os argentinos que vivem em Espanha, os espanhóis que vivem na Argentina e as empresas "não merecem que as respetivas situações se vejam comprometidas pelo sentido de honra que tem Pedro Sánchez em relação à sua mulher".
Também o líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, considerou que tanto Sánchez como Milei entraram numa "escalada verbal que não conduz a lado nenhum".
A maior patronal espanhola, CEOE, condenou as declarações de Milei e o mesmo fizeram empresas como BBVA, Santander, Telefonica ou Iberia. O presidente da CEOE, Antonio Garamendi, condenou umas "declarações fora de tom", impróprias de uma relação entre "dois países amigos, irmãos".
"Não tem nenhum sentido que se ataque o nosso presidente do Governo", afirmou Garamendi, que sublinhou a importância das relações económicas entre os dois países.
Mas... Argentina exige a Espanha pedido de desculpas a Milei
O porta-voz da presidência da Argentina, Manuel Adorni, exigiu que o governo de Espanha peça "sinceras desculpas" ao presidente Javier Milei. "Trataram-no como um vilão, um negacionista, um 'consumidor de substâncias', um autoritário, um antidemocrático e uma pessoa 'muito má'. Espero que em algum momento reflitam e peçam desculpas sinceramente", disse Adorni na rede social X (antigo Twitter).
Lo trataron de odiador, de negacionista, de “ingerir sustancias”, de autoritario, de anti-democrático y de ser gente “muy mala”.
— Manuel Adorni (@madorni) May 19, 2024
Ojalá en algún momento reflexionen y pidan sinceras disculpas.
Fin.
Também um outro porta-voz da presidência da Argentina, Javier Lanari, tinha acusado o ministro dos Transportes da Espanha, Óscar Puente, de insultar Milei, ao descreve-lo como "viciado em drogas", no início do mês.
"Ele não foi o único: a ministra da Ciência espanhola [Diana Morant] chamou Milei de 'negacionista' e disse que ele 'ataca a democracia'. Mas quem coloca as relações em risco e deve pedir desculpas é Milei...", ironizou Lanari.
Contudo, a Argentina rejeitou hoje a possibilidade de um problema diplomático com Espanha por causa de "uma questão entre duas pessoas", mesmo que sejam os líderes dos governos dos dois países.
"Não insistam com o problema diplomático porque não há aqui nenhum problema diplomático. As relações entre os povos e a diplomacia entre povos estão muito acima das diferenças que possa haver entre duas pessoas, incluindo dois presidentes", disse o porta-voz da Presidência a Argentina, Manuel Ardoni, numa conferência de imprensa em Buenos Aires, em resposta a várias perguntas dos jornalistas.
Ardoni afirmou que Milei é que tem sido alvo de uma "catarata de insultos" por parte de ministros espanhóis e até de Sánchez, que já acusaram o Presidente da Argentina de "consumir substâncias", negacionismo, "atentar contra a democracia", ter um "governo de ódio" e autoritarismo.
Apesar disto, a Argentina nunca questionou as relações diplomáticas com Espanha, vincou Manuel Ardoni, que considerou que seria "absolutamente irracional" uma "reação diplomática" por parte de Madrid.
Recorde-se que Javier Milei chegou a Madrid na sexta-feira e regressou no domingo à Argentina, depois de participar na convenção do Vox. Sublinhe-se que o líder do Chega, André Ventura, foi um dos convidados da convenção. No evento estiveram também o espanhol Santiago Abascal, líder do Vox, a francesa Marine Le Pen (União Nacional), o ex-primeiro-ministro da Polónia Mateuwsz Morawiecki (Lei e Justiça, PiS) e, por videoconferência, os primeiros-ministros de Itália, Giorgia Meloni (Irmãos de Itália), e da Hungria, Viktor Orbán (Fidesz).
Esta foi a primeira viagem que Javier Milei fez a Espanha após ter tomado posse, mas não teve encontros com autoridades do país. O governo argentino explicou na semana passada que Milei pretende regressar a Espanha em junho e aí pedirá audiências oficiais.
[Notícia atualizada às 18h01]
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