"Vai ser difícil o compromisso político a longo prazo, logo a possibilidade de paz é diminuta. Os três grupos que tomaram o poder [Mohammed al-Bashir foi nomeado terça-feira primeiro-ministro interino] divergem sobre o futuro da Síria -- curdos, jihadistas (o mais estruturado) e 'proxies' da Turquia. Além disso, este país tem uma variedade de grupos minoritários (cerca de 40% da população) que vão ter de navegar no panorama sunita, com a possível emergência de um governo islamista", sustentou Felipe Pathé Duarte, académico da NOVA School of Law de Portugal.
Em declarações à agência Lusa, o analista português de política internacional admitiu ser difícil precisar quem está, de facto, por trás do líder da Organização para a Libertação do Levante (OLL), ou também do grupo islamita Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e fações aliadas.
No entanto, realçou que o HTS, antigo ramo da Al-Qaida, tem sido apoiado pela Turquia e pelo Qatar e que vários movimentos islamistas saudaram o grupo pela vitória, como a Irmandade Muçulmana.
Pathé Duarte referiu que a inesperada mudança de regime na Síria não foi, paradoxalmente, assim tão surpreendente, sobretudo para a Turquia.
"Por um lado, os aliados de al-Assad não estavam dispostos a comprometer recursos significativos ou a mobilizar-se para reforçar a posição do regime alauita por desafios internos e regionais", explicou.
"Por outro, a força militar do regime estava frágil e de baixa moral devido a anos de difíceis condições. A Turquia terá contactado o regime de al-Assad várias vezes nos últimos meses para iniciar um processo político e uma transição suave de poder, embora as condições maximalistas de al-Assad tenham dificultado essa oportunidade", acrescentou.
Questionado sobre que tipo de regime pode ocupar o vazio de poder em Damasco, Pathé Duarte sublinhou que as várias fações de rebeldes" têm interesses territoriais e políticos concorrentes e lembrou que o primeiro-ministro interino é próximo do HTS, ".
"Este processo vai levar ao faccionalismo e provavelmente a uma maior instabilidade. É provável que cooperem nominalmente na formação do governo pós-al-Assad, mas as negociações sobre a forma final do governo e a sua constituição pós-guerra serão lentas e serão influenciadas por atores estrangeiros", argumentou.
Sobre quem tem maiores interesses geoestratégicos na região, o académico português destacou a Turquia.
"A Turquia tem interesses significativos. Além de expansão de soberania, Ancara quer que os rebeldes enfraqueçam os separatistas curdos sírios sob a bandeira das Forças Democráticas Sírias (FDS) apoiadas pelos Estados Unidos. Os laços entre eles e o PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado um movimento terrorista pelas autoridades turcas] são uma ameaça intolerável à segurança nacional do país", argumentou.
Mas há outros interesses que têm ainda de ser definidos, ou, pelo menos, esclarecidos, nomeadamente o que o próximo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (que será empossado a 20 de janeiro de 2025) irá fazer, tal como o Irão, que perdeu o Levante, e Israel.
"Trump terá ainda de definir a sua posição sobre os curdos, especialmente se acreditar que o grupo Estado Islâmico (EI) pode aproveitar o vazio do poder sírio. O Irão, tendo perdido o Levante, vai querer garantir que não há qualquer efeito de repercussão no Iraque, onde protegerá a sua influência a qualquer custo. Israel, simplesmente trocou um inimigo, os radicais xiitas, por outro, os jihadistas sunitas", concluiu.
O político Mohammed al-Bashir foi nomeado terça-feira primeiro-ministro interino do governo sírio de transição até março, após uma sessão do Conselho de Ministros em que os poderes do gabinete do antigo regime foram transferidos para um novo executivo.
"Esta missão foi atribuída pelo Comando Geral. Fomos encarregados de dirigir o governo sírio até 01 de março de 2025", disse al-Bashir numa declaração transmitida pela cadeia de televisão saudita Al Arabiya.
O novo governo de transição começará a tomar medidas como "a dissolução das autoridades de segurança e a revogação das leis sobre o terrorismo", embora não tenham sido dados mais pormenores.
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