Esta segunda-feira marca a última vez que Gisèle Pelicot vai pisar o tribunal que, ao longo de três meses e meio, tem ouvido o horror por ela vivido durante quase uma década. A sentença deverá ser conhecida ainda esta semana.
Recorde-se que Pelicot ganhou notoriedade este ano com o começo do julgamento do ex-marido, que durante o período acima referido não só a drogou e violou, como abriu a porta de sua casa a dezenas de estranhos - que também abusaram sexualmente desta mulher. Aos 72 anos, por ter tido a coragem de dar a cara, Gisèle tornou-se uma "heroína feminista", como escreve a France24.
Pelicot foi ouvida e quis ser vista, derrubando a vergonha de que muitas vezes as vítimas de abuso sexual carregam. Mas o caso que está nos holofotes há apenas alguns meses já está nas 'mãos' da Justiça desde 2020, quando uma gravação feita pelo ex-marido desvendou o que se passava na casa onde Pelicot viveu com o marido durante décadas.
Denúncia de três mulheres pôs a descoberto terror de anos
O caso foi aberto depois de Dominique Pelicot ter sido detido pelos seguranças de um supermercado, onde três mulheres o denunciaram à polícia por ter tentado filmar por debaixo das suas saias.
As autoridades foram surpreendidas quando, ao analisar o material apreendido, encontraram milhares de fotografias e vídeos onde aparecia uma mulher inconsciente a ser submetida a vários tipos de abusos.
"Quando me contaram, eu quis vomitar", diz um dos filhos
Entre quase 50 homens ouvidos em tribunal, também falaram os filhos do antigo casal. No tribunal, o filho mais velho, David Pelicot, contou como soube da situação. "A minha mãe disse-me que este homem que se encontra neste tribunal a entregou estranhos para a violar. Quando me contaram, eu quis vomitar [...]. Queríamos fazer esse homem desaparecer de casa. No espaço de dois dias, não havia mais fotos, nem mais roupa ou traços dele", recordou, acrescentando que parecia que a sua infância tinha sido apagada.
E foi aí que detalhou mais situações, recordando quão feliz esses tempos pareciam. "Enquanto crescia, e os meus pais organizavam festas surpresa para nós, os meus amigos diziam-me que eu era um sortudo por ter um pai como o meu. Agora, nenhum dos meus amigos consegue perceber como é que ele fez isto", partilhou.
David Pelicot acusou ainda o pai de também ter gravado a sua esposa enquanto esta estava grávida, e referiu que acreditava nas afirmações da irmã, Caroline, já que este também terá tirado fotografias suas de roupa interior. Já com o julgamento em andamento, Caroline deu entrada numa clínica, acusando ser também "vítima das suas ações". Quando anunciou a entrada na clínica, Caroline Pelicot acusou ainda o pai de ser "um dos maiores predadores" das últimas décadas.
Já o filho mais novo, Florian Pelicot, também testemunhou em tribunal, disse que há quatro anos que perdeu o pai e disse que o seu pai era "o diabo".
O que diz o agressor?
Dominique admitiu ter recrutado homens online, num site entretanto encerrado, durante quase uma década, para violar a mulher enquanto ela estava sob o efeito de sedativos pesados e medicamentos para dormir, que ele administrou em segredo.
O homem, de 72 anos, reconheceu que era um "violador", negando que alguma vez tivesse "tocado nos seus filhos". "Nunca toquei nos meus filhos ou netos. Sou um violador como as pessoas que estão nesta sala. Eles sabiam de tudo. Não podem dizer o contrário. Ela não merecia isto, admito-o", acrescentou, referindo-se às dezenas de homens que negaram saber que Pelicot estava sob o efeito de drogas, dizendo que pensavam que a francesa estaria a dormir ou a jogar um jogo e não que estivesse inconsciente.
Os homens acusados enfrentam uma pena de prisão que pode chegar aos 20 anos. No total, 49 homens estão acusados de violação, um de violação na forma tentada e um de assédio sexual. Outros cinco estão ainda acusados de posse de imagens de abuso infantil.
Os relatos de vários homens, que são conhecidos porque Gisèle Pelicot quis que o julgamento se tornasse público, são também 'dignos' da sequela de filme de terror já protagonizado pelo ex-marido. Um dos suspeitos, identificado como Charly A., e com hoje 30 anos, terá violado Pelicot em seis ocasiões diferentes, ao longo de quatro anos. Terá também proposto drogar e violar a própria mãe.
Já um outro homem, Christian L, explicou-se em tribunal com uma frase que a imprensa local considerou "doentia". "O meu corpo estava a violá-la, mas o meu cérebro não", afirmou o homem.
Não há diferentes tipos de violação. Violação é violação
O que se pede?
Ao longo dos meses, também se reuniram junto ao tribunal de Avignon, no sul da França, vários - mas mais várias - manifestantes. Um dos homens, Jesus, de 70 anos, defendeu numa das primeiras semanas do julgamento que este deveria ser "transmitido na televisão" e que este caso tenha impacto "não só na sociedade francesa, mas em toda a Europa e não só nas mulheres, mas nos homens também".
Já o juiz Roger Arata disse esta segunda-feira que a sentença está marcada para as 8h30 (hora em Lisboa). "Vamos dirigir-nos para o hemiciclo de deliberação e não sairemos de lá enquanto não tivermos tomado a nossa decisão", explicou, citado pela agência France-Presse, alertando que a discussão pode alargar-se e a leitura da sentença pode ser adiada para a tarde de quinta-feira ou para a manhã de sexta-feira.
Violação involuntária? "Violação é violação"
Já Gisèle Pelicot, que, segundo um dos seus advogados, ao início estava "perdida" e com "vergonha", reviu os vídeos das violações em tribunal. Numa dessas sessões, a vítima viu-se confrontada com afirmações proferidas por um advogado de defesa que declarou que "há violações e há violações", numa possível tentativa de apoiar a alegação de alguns dos homens que presumiam estar a participar num jogo de casal.
A mulher não acatou as declarações e respondeu: "Não, não há diferentes tipos de violação. Violação é violação".
Este é, inclusive, um dos pontos mais discutidos do caso. Na senda das justificações que têm sido apresentadas, o Ministério Público francês defendeu que não existe "violação involuntária" neste caso, esperando que o veredito traga uma mensagem de esperança às vítimas de crimes sexuais.
Após meses de testemunhos e provas apresentadas em tribunal, os homens deverão ser condenados e, se forem considerados culpados, enfrentam coletivamente uma pena de mais de 600 anos de prisão.
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