Em declarações à agência Lusa, Bruno Cardoso Reis admitiu que ficaria surpreendido se o processo das negociações fosse rápido e fácil, frisando que "a única paz rápida seria a da rendição forçada da Ucrânia e essa teria como resultado provável a multiplicação de guerras de conquista por todo o lado".
"Se estivermos a falar de um cessar-fogo, isso pode ser que avance mais rapidamente, deixando ainda assim muitas pontas soltas", disse.
Contudo, se as negociações envolverem o destacamento de tropas europeias como garantia de segurança ou o levantamento de sanções e o desbloqueio dos bens congelados à Rússia - uma situação que não depende apenas dos Estados Unidos da América (EUA) ou da Rússia -, o especialista acredita que as conversações de paz serão "mais complexas e mais demoradas do que provavelmente Donald Trump pensaria".
"Certamente não é uma questão que se vai resolver em poucos dias ou semanas", frisou.
Trump surpreendeu Kyiv e os aliados europeus ao anunciar recentemente uma conversa telefónica de cerca de 90 minutos com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, acabando por abalar a unidade ocidental e a estratégia de isolamento de Moscovo.
Ao telefonema seguiram-se conversações russo-americanas em Riade, nas quais os dois países se comprometeram em restabelecer as relações entre as duas potências e em iniciar conversações de paz para a Ucrânia, num encontro sem a presença de europeus ou de Kiev, o que gerou descontentamento junto do líder ucraniano, Volodymyr Zelensky.
Mas as relações entre Washington e Kyiv estremeceram ainda mais quando Donald Trump acusou esta semana Zelensky de ser um "ditador" e responsabilizou a Ucrânia pelo início da guerra.
Face a todo este cenário, Bruno Cardoso Reis manifestou-se "surpreendido com a surpresa dos líderes europeus", uma vez que há muito que defende que a Europa se tinha de preparar "para um Donald Trump muito mais radical, muito mais disposto a ruturas e em que uma das obsessões constantes é a ideia de desvalorização da cooperação e das alianças, assim como a ideia de que os aliados estão sempre a explorar os EUA, mesmo que isso não seja verdade".
"A relação entre Europa e EUA é mutuamente benéfica, inclusive no campo da segurança e defesa. As tropas norte-americanas na Europa estão em bases seguras, em países onde são bem acolhidas e, em muitos casos, são usadas não para defender a Europa, mas para operações em África, Médio Oriente ou Índico", observou o historiador português, que é também professor visitante na Universidade de Georgetown, em Washington DC.
"É uma enorme vantagem também do ponto de vista da segurança europeia, mas é uma relação mutuamente benéfica. Contudo, para Trump parece que as coisas têm de ser sempre pensadas em termos de 'um bom negócio para mim tem de ser mau para outros'. Trump tem essa hostilidade declarada há muitas décadas em relação a este sistema de alianças", acrescentou.
O docente sublinhou ainda que além de Trump ter também uma "enorme admiração por ditadores, mais do que documentada ao longo de décadas", tem também agora uma equipa bastante diferente da do seu primeiro mandato (2017-2021), o que terá impacto direto nestas negociações.
"No primeiro mandato, apesar de tudo, a maior parte dos ministros, dos altos responsáveis do Governo eram republicanos conservadores, tradicionalmente fiéis e que valorizavam as relações transatlânticas, a NATO, as relações com os europeus, com os aliados tradicionais. Isso não é todo o caso agora", observou Cardoso Reis, considerando uma exceção o atual secretário de Estado, Marco Rubio, "mas que está muito condicionado e muito isolado".
Exemplo dessa mudança de relações entre EUA e Europa foi o polémico discurso que o vice-presidente norte-americano, J.D. Vance, fez em 14 de fevereiro em Munique, na Alemanha, e que repetiu na quinta-feira em Maryland, em que criticou os líderes europeus em várias frentes e os acusou de "dependência excessiva" dos EUA em matéria de segurança.
"No fundo, a ideia de Trump é que as questões não se resolvem tendo em conta o direito internacional ou princípios como direitos humanos ou democracia, mas resolvem-se sim entre grandes potências, tendo em conta os seus interesses materiais, os seus interesses pensados de uma forma muito pragmática", disse à Lusa o historiador, que foi subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL.
No entanto, sublinhou que essa postura gerará "enormes problemas", uma vez que a "Rússia, declaradamente há muitas décadas, tem como objetivo minar a influência e o poder dos EUA".
"Portanto, aparentemente, Trump está disposto a fazer acordos com uma potência que é declaradamente hostil em relação aos interesses americanos", observou ainda.
A Ucrânia tem contado com ajuda financeira e em armamento dos aliados ocidentais desde que a Rússia invadiu o país, em 24 de fevereiro de 2022.
Os aliados de Kyiv também têm decretado sanções contra setores-chave da economia russa para tentar diminuir a capacidade de Moscovo de financiar o esforço de guerra na Ucrânia.
O conflito que na segunda-feira atinge a marca dos três anos provocou a destruição de importantes infraestruturas em várias áreas na Ucrânia, bem como um número por determinar de vítimas civis e militares.
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