No dia em que o governo britânico apresentou, formalmente, a ativação do artigo 50.º do Tratado de Lisboa para proceder à saída da União Europeia, o Vozes ao Minuto esteve à conversa com a embaixadora do Reino Unido em Portugal.
Para Kirsty Hayes, esta quarta-feira marcou o início de um processo que se quer “construtivo” e que vá de encontro “à vontade dos britânicos”.
Recordando que a própria primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, votou contra o Brexit, a embaixadora lembrou que o que importa agora é manter a nação unida e conseguir, sem conflitos, um acordo que seja benéfico para ambas as partes.
Uma semana após o ataque terrorista de que foi alvo a cidade de Londres, Kirsty Hayes comentou também o "trágico" acontecimento e mostrou-se satisfeita por ver que o ritmo de vida na cidade voltou à normalidade, garantindo que não é com ataques deste género que conseguirão "destruir os valores de liberdade" e "estado de Direito" do Reino Unido.
O Governo britânico apresentou esta quarta-feira, formalmente, a ativação do artigo 50.º do Tratado de Lisboa. O que muda a partir de agora no Reino Unido?
O que vai mudar principalmente é que este é o início real do processo. Ou seja, o referendo foi no ano passado, dia 23 de junho, e desde essa altura foi claro que o Brexit ia acontecer, mas durante este período não houve negociações propriamente ditas. É claro que falámos com outros governos, incluindo o português, mas o processo propriamente dito não se iniciou até ao momento em que enviámos esta carta, para a qual esperamos uma resposta. Agora, isto tornou-se realidade e uma oportunidade para, com os nossos parceiros, encontrarmos uma solução que dê não só para nós como para eles.
A vontade do povo britânico tem de ser respeitadaE como encara este processo? Considera que é a melhor opção para o Reino Unido?
Na minha qualidade de embaixadora não tenho opiniões pessoais. Esta foi uma decisão histórica e difícil para o país porque há diferenças de opiniões entre o povo. Até a primeira-ministra votou para ficar. A minha opinião, a dela, a do governo e da oposição é que a vontade do povo britânico tem de ser respeitada. Estou muito otimista sobre a possibilidade de concluir este processo com um acordo construtivo que permita governar a nossa relação futura com amigos e parceiros como Portugal e outros Estados-membros da União Europeia.
E será possível manter essa relação de amizade ou será mais provável haver a partir daqui um corte de relações?
Acho que é possível uma cooperação. Não é interesse nosso, nem dos outros Estados-membros, ter um corte dessa natureza. E o governo português deixou isso claro também. É verdade que a primeira-ministra disse, em janeiro, que não ter um acordo seria melhor do que ter um acordo mau, mas não é para isso que estamos a trabalhar. Esperamos que um acordo construtivo e ambicioso seja possível.
Brexit não é uma questão de uma competição sobre quem vai perderQue implicações terá – para o Reino Unido e para a Europa – um processo destes? Quem fica a perder?
Não é uma questão de uma competição sobre quem vai perder. Acho que o importante é assegurar que todos nós temos um acordo positivo no futuro. Temos ligações tão fortes com todos os membros da União Europeia (UE). A UE é naturalmente o nosso parceiro comercial mais importante e o nosso mercado é muito importante para o resto da UE. Por exemplo, no caso de Portugal, somos um dos mercados mais importante para as exportações portuguesas. Portugal exporta muito mais para Reino Unido do que o oposto, então, claramente, para nenhuma das partes importa não ter um acordo ambicioso, tanto sobre os bens como sobre os serviços. Todos nós precisamos de encontrar uma solução positiva nas áreas académica, de segurança… E a minha esperança é a de que ninguém vai perder. Precisamos de encontrar um novo quadro para trabalhar e colaborar. Mas é uma mudança, não algo negativo.
Para muitos britânicos, é impensável que um país soberano como o Reino Unido não tenha o direito de decidir quem pode entrar no país ou nãoO que correu mal para que o Reino Unido queira deixar de fazer parte da União Europeia?
Havia vários fatores durante a campanha [do Brexit], nem todos eles tinham a ver com falhas ou com problemas da UE. Aliás, alguns deles tinham mais a ver com as perspetivas do povo britânico. Por exemplo, a imigração foi um tema central. Para Portugal e para muitos outros países os movimentos dentro da UE não são uma questão, mas para o povo britânico sim. Talvez por ser uma ilha e por causa da nossa história. Para muitos britânicos, é impensável que um país soberano como o Reino Unido não tenha o direito de decidir quem pode entrar no país ou não. Acho que foi mais isso do que a questão dos números [de imigrantes], pois como se sabe nós temos uma grande comunidade de portugueses no Reino Unido. Contudo, a questão de soberania e este direito de decisão foi muito importante.
O nosso parlamento tem também um papel bastante central e por isso a ideia de ter o Parlamento Europeu e o Tribunal Europeu a decidir assuntos britânicos é muito difícil para alguns dos britânicos. A questão de regulamentação da União também foi significativa para alguns cidadãos. Temos colaborado muito com Portugal e com outros países para reduzir esta burocracia da UE, mas acabou por ser também um fator.
Houve quem considerasse que a campanha pelo Brexit terá sido algo enganosa. Acha que se o referendo fosse hoje o resultado seria o mesmo?
Não é possível dizer com certeza o que vai acontecer depois do Brexit. Antes do referendo, muitos economistas disseram que, no caso de saída, a economia britânica iria sofrer um choque enorme e isso não aconteceu. Os mercados flutuaram bastante durante as semanas seguintes, e a libra esterlina está mais fraca do que antigamente, mas a economia tem vindo a evoluir de forma estável e tem estado a crescer, há mais investimento. É difícil dizer com certeza, mas tenho falado com britânicos que votaram para sair e eles sabem que esta decisão podia criar algumas incertezas, dúvidas e até problemas em termos económicos a curto prazo, mas as vantagens de sair, para eles, são maiores. Esta questão de soberania nacional é muito importante.
Terá Theresa May o pulso necessário para negociar esta saída ou será mais difícil do que o país imagina?
Acho que é a pessoa certa. De facto, como já disse, ela votou contra a saída mas o mais importante para ela é unir o país. Tem uma personalidade forte e muito determinada, pudemos observar isso nas negociações e reuniões com o presidente Trump. Foi uma reunião bastante positiva na qual ela não teve medo de falar sobre áreas difíceis, como a posição sobre a NATO. Ela é muito determinada e empenhada no sucesso das negociações. No seu discurso, fala muito sobre a necessidade de unir o país mas também tem mostrado o seu apoio e empenho para o sucesso da União Europeia. E este é um sentimento muito sincero da parte dela. Por todas estas razões, acho que é a pessoa certa para liderar estas negociações.
A Escócia aprovou um novo referendo para decidir a sua independência do Reino Unido. Se o conseguir, isto pode atrapalhar as futuras negociações do Brexit?
Não, não vai atrapalhar o processo porque a primeira-ministra já deixou bem claro que este não é o momento para mais um referendo. O acordo final sobre o nosso relacionamento com a UE ainda não é claro pelo que não faz sentido fazer mais um referendo agora. O último referendo foi há apenas dois anos, mais ou menos, e o resultado foi bastante claro. Embora o parlamento escocês tenha votado para ter mais um referendo, não é apenas uma decisão deles e as sondagens mostraram que a maioria do povo da Escócia não quer, neste momento, mais um referendo. Penso que a prioridade agora é encontrar uma solução para as negociações, não apenas para a Inglaterra e para a Escócia mas para todos os países do Reino Unido. Esta deve ser a nossa prioridade.
A desagregação do Reino Unido não está, então, à vista?
Não, penso que não.
O Governo português tem sido muito claro e garante que não há questão nenhuma sobre a possibilidade de deportação, por exemplo
E como é que a comunidade britânica, sobretudo aqui em Portugal, está a viver este momento? Que receios apresentam?
Tive uma série de encontros com a comunidade aqui. Temos cerca de 40 mil cidadãos britânicos a viver e Portugal , a maioria no Algarve, mas também noutras partes do país. Fiz vários eventos em Lisboa, Algarve, Cascais, Caldas da Rainha, Porto… O sentimento é de calma. Claro que têm algumas dúvidas porque muitas coisas não são ainda claras. Querem mais informações e respostas para as preocupações deles e que são sobre os direitos de permanência em Portugal, pensões e questões sobre o acesso aos serviços públicos, sobretudo os de saúde. Embora não tenhamos respostas a todas as perguntas, é possível dar muita segurança porque o Governo português tem sido muito claro a nível nacional e local, e garante que não há questão nenhuma sobre a possibilidade de deportação, por exemplo. O Governo português gosta muito e valoriza muito a comunidade britânica e vai trabalhar para protegê-la.
Para nós e também para a primeira-ministra uma das prioridades é proteger os que estão fora do país e os cidadãos da UE que já estão no Reino Unido, pois para estes grupos há muitas incertezas e precisamos de lhes dar clareza sobre o seu futuro. Assim, a intenção da primeira-ministra é encontrar solução nesta área muito rapidamente.
Registou-se, após o Brexit, algum aumento do número de britânicos a quererem regressar ao seu país?
Não. A comunidade diz que quer ficar aqui. Gosta muito de estar aqui: tem amizades e a qualidade de vida é excelente e os portugueses são muito acolhedores.
E os portugueses a viver no Reino Unido têm algo a temer com este processo?
Não. Falei recentemente com o secretário de Estado das Comunidades e com o embaixador português no Reino Unido e penso que no início houve um grande nível de preocupação mas agora a situação está normalizada. As pessoas estão mais calmas. Mas é óbvio que também querem mais certezas sobre o futuro.
Theresa May convidou Trump para uma visita de Estado ao país, o que gerou uma onda de revolta com uma petição com milhões de subscritores. O presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, disse que se recusava a recebê-lo. Porquê esta tensão?
Felizmente estamos a viver em Portugal e no Reino Unido, países onde temos a possibilidade de exprimir as nossas opiniões com muita liberdade. E esta é uma coisa muito positiva e importante e reflete os valores partilhados por todos os países da UE.
Este convite foi feito pela primeira-ministra e pela rainha. Nós temos um relacionamento muito forte, histórico e especial com os EUA e colaboramos em tantas áreas que uma visita desta natureza é inteiramente natural. Isto não significa que não haja áreas de divergência entre o nosso governo e o americano. A primeira-ministra e o nosso ministro responsável pelas relações internacionais já falaram sobre isso. Apesar das diferenças há coisas em que partilhamos as mesmas posições e vamos continuar a trabalhar numa parceria.O que marcou mais este evento não foi o ataque mas a resposta incrível da nossa polícia e dos serviços de segurança
Na semana passada, Londres foi alvo de um novo ataque terrorista. Que ambiente se vive neste momento na cidade e no Reino Unido?
Durante a nossa história o Reino Unido e especificamente Londres foram alvo de vários ataques e o espírito dos londrinos é, por isso, muito particular. O que é mais marcante é que a situação vivida agora em Londres é normal. Os cafés e os restaurantes estão cheios, as ruas também, as pessoas estão a trabalhar, a visitar, a fazer tudo normalmente. É por isso que gosto tanto de Londres. É uma cidade em que é impossível criar um sentimento de medo. O coração e alma da cidade é muito forte. Para mim, pessoalmente, o que marcou mais este evento não foi o ataque mas a resposta incrível da nossa polícia e dos serviços de segurança. Temos ainda mais polícias na rua para dar mais confiança às pessoas. A resposta foi impressionante e rápida.
A primeira-ministra britânica disse que o país não tem de ter medo dos ataques. Acha que esta é a atitude certa para fazer frente ao terrorismo ou poderá parecer uma afronta?
Temos uma coisa que partilhamos com Portugal e com outros países da UE, que são os valores incríveis da liberdade, liberdade de expressão e o estado de direito, e estes valores vão perdurar sempre. E não é possível parar isso com ataques desta natureza.
Desde 2000, esta é a segunda vez que Londres é alvo de um ataque deste género. O que a torna a cidade num alvo dos terroristas?
O ataque de 2005 foi um ataque bastante significativo e trágico mas há muitos países alvo deste tipo de ataques e gostaria de sublinhar que graças aos nossos serviços de segurança, conseguimos prevenir 13 ataques possíveis o que demonstra a nossa força.
Disse num artigo publicado recentemente que a escolha do lugar do ataque não foi em vão. Porquê, então, o parlamento?
Penso que neste ataque em particular o alvo não foi Londres, mas o parlamento porque é um símbolo de todos os nossos valores. Mas no final, o autor do ataque não conseguiu entrar no parlamento, polícia especial respondeu de forma heróica e felizmente o terrorista morreu. E até um dos nossos deputados tentou salvar uma vítima. Isto para mim demonstra que os valores representados pelo parlamento são muito mais fortes do que os valores de terrorismo.
De que forma é que acha que é possível combater o terrorismo? Passará por um reforço de segurança apenas a nível nacional ou é necessário, como defendeu Vladimir Putin, uma união a nível europeu para fazê-lo?
As duas. Há uma resposta nacional mas hoje em dia o terrorismo é cada vez mais global. Há comunicações por todas as partes do mundo, por isso é fundamental que colaboremos para acabar com esta ameaça. O ministro dos Negócios Estrangeiros falou recentemente sobre os riscos criados pela internet e sobre como é muito fácil hoje em dia enviar informações e radicalizar através deste meio. Precisamos de encontrar uma solução para acabar com esta radicalização na internet.
Precisamos de estar unidos. Não acho que a nossa saída vá mudar este aspetoVoltando ao Brexit, não considera então que a saída do Reino Unido pode dificultar a sua capacidade de fazer parte desta união que pretende fazer frente a novos ataques?
Precisamos de estar unidos. Não acho que a nossa saída vá mudar este aspeto. Ou seja, não estou a ver nenhum país, nenhum líder, nenhum membro das instituições europeias a dizer que precisamos de mais barreiras na área da segurança. Não ouvi isso uma única vez e tenho a certeza de que será possível encontrar um novo quadro em que possamos trabalhar.
Está em Portugal desde 2014. Daquilo que conhece do país considera que estamos isentos de um ataque deste género ou ninguém está a salvo?
Infelizmente nenhuma parte do mundo está isento de ameaças mas a certeza que tenho é de que Portugal é um dos países mais seguros do mundo. Não temos informações sobre uma ameaça particular aqui. Todas as comunidades em Portugal estão muito bem integradas, não parece haver tensões. Adoro Portugal e Lisboa e espero que o país continue seguro como sempre foi.