Trump põe fim a solução de dois Estados. O que resta? "A esperança"
Donald Trump reconheceu Jerusalém como capital de Israel e garantiu que vai mudar a embaixada norte-americana para a Cidade Santa. Embaixador da Palestina em Portugal pede ação à comunidade internacional, o que, diz, passaria pelo reconhecimento do Estado palestiniano. Teme-se uma escalada de violência na região.
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Mundo Jerusalém
A promessa já tinha sido feita durante a campanha eleitoral, mas havia a esperança de que Donald Trump fosse capaz de tratar o conflito Israel/Palestina com mais ponderação. Ontem, quarta-feira, o presidente norte-americano rompeu com décadas da política externa norte-americana para o Médio Oriente e anunciou que vai mudar a embaixada dos Estados Unidos em Israel para Jerusalém. Além disso, Trump reconheceu que a Cidade Santa é a capital de Israel.
Como escreve o The Guardian, “de todos os assuntos no coração do longo conflito entre israelitas e palestinianos, nenhum é tão sensível quanto o estatuto de Jerusalém. A Cidade Santa esteve no centro do processo de paz durante décadas”. Por esse motivo, prossegue o jornal inglês, “a abordagem de Donald Trump ameaça destruir um longo consenso internacional de uma forma disruptiva e perigosa”.
Este consenso começou a ser quebrado ainda antes da conferência de imprensa dada por Trump a partir de Washington. De Ancara a Paris, de Riade a Londres, sucederam-se as declarações de condenação à medida de Trump, que, ao reconhecer Jerusalém como capital de Israel, ficou isolado no plano internacional, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris.
Para o embaixador da Palestina em Portugal, Nabil Abuznaid, a decisão de Trump é “um ato irresponsável e perigoso”, uma vez que vai comprometer a solução de dois estados como solução para o conflito entre israelitas e palestinianos. “Estou chocado com esta decisão porque sinto que é bastante irresponsável e perigosa. Vai contra a lei internacional, contra a vontade da comunidade internacional, contra os termos da negociação. Terá uma implicação muito negativa para o processo de paz, para a região e para todos os que apoiam a solução de dois estados”, afirmou o embaixador da Palestina ao Notícias ao Minuto.
Nabil Abuznaid, que insiste na importância de Jerusalém como “cidade aberta para todas as religiões”, teme que a mudança da embaixada norte-americana para a Cidade Santa possa levar a um conflito religioso no Médio Oriente. “Se esta questão mudar de um conflito político para um conflito religioso, será desastroso e haverá mais derramamento de sangue”, alerta.
Já Rui Bebiano, historiador e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sublinha o risco de os esforços de paz, construídos com altos e baixos ao longo das últimas décadas, serem postos em causa. “O reconhecimento pelos EUA de Jerusalém como capital tem consequências pesadíssimas para a situação na região, uma vez que colocam em causa longos esforços, incluindo alguns que desde o mandato do presidente Jimmy Carter, e principalmente no tempo de Bill Clinton, foram desenvolvidos pela política externa norte-americana em diálogo com o governo israelita e os representantes dos palestinianos”.
"Jerusalém é uma cidade que sofre de limpeza étnica"
Não obstante o impacto das palavras de Trump na quarta-feira, há muito que se esperava que o presidente dos Estados Unidos anunciasse a mudança da embaixada norte-americana para Jerusalém.
Desde 1995 que uma lei norte-americana solicitava esta mudança. No entanto, desde então, de seis em seis meses, o presidente dos Estados Unidos em funções tinha de assinar um documento a dizer que a embaixada continuava em Telavive. Com mais ou menos proximidade com o lado israelita, Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama nunca tomaram a decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel. Sabiam os riscos e tinham consciência de que ficariam isolados internacionalmente. Tudo mudou com Donald Trump, que recebeu do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, os mais rasgados elogios.
Shahd Wadi, luso-palestiniana, confessa que já esperava este anúncio de Trump. “Já se esperava a decisão. Por um lado, estou triste e tenho dificuldade em usar a expressão ‘reconhecer Jerusalém como a capital de Israel’. Por outro, espero que a reação seja positiva e que a comunidade internacional finalmente acorde e perceba que há problema grave na Palestina e em Jerusalém”, declarou Wadi ao Notícias ao Minuto.
A investigadora em assuntos palestinianos e feministas denuncia a “limpeza étnica” que os palestinianos estão a sofrer às mãos do governo e dos militares israelitas e apela a que sejam tomadas medidas para combater o “radicalismo” de Trump.
“A política em Jerusalém já estava a caminhar mal e esta decisão é a continuação da política israelita. O problema não é só a mudança da embaixada dos Estado Unidos. Jerusalém é uma cidade que sofre de limpeza étnica do seu povo palestiniano. Espero que o radicalismo de Trump sirva para acordar o mundo”, até porque, prossegue, “Jerusalém Oriental é a capital da Palestina e ninguém, sem ser Trump e os seus seguidores, acredita que não o seja”.
Para percebermos realmente o está em causa com esta decisão de Donald Trump é preciso recuar no tempo e olhar para a história. Como salienta Rui Bebiano, “Jerusalém é particularmente sensível no que respeita aos problemas e divergências colocados no âmbito do atual conflito do Médio Oriente, pois o seu controlo representa, pelo menos no plano simbólico, a imposição perante as outras, pela força de quem o detém, de uma dessas culturas”.
Além disso, é preciso ter em conta o significado da Cidade Santa para os crentes das três religiões monoteístas abrâmicas – cristão, judeus e muçulmanos. É na Cidade Velha que se situa o Pátio das Mesquitas, para os muçulmanos, ou Monte do Templo, para os judeus. Para os primeiros, o local é sagrado porque contém a Mesquita de Al Aqsa, o terceiro lugar sagrado do Islão a seguir a Meca e a Medina, bem como a Cúpula da Rocha. Segundo o Corão, terá sido a partir de lá que o profeta Maomé ascendeu aos céus. Já para os judeus, o mesmo local é sagrado porque, segundo a Bíblia, terá sido lá que o Deus de Israel terá ordenado a Abraão que sacrificasse o seu filho Isaac. Depois, sobre a mesma pedra, Salomão terá erguido o primeiro templo para o povo de Israel, que acabou destruído pelo exército de Nabucodonosor II, da Babilónia. Já o segundo templo foi destruído pelos romanos, sobrando apenas o Muro das Lamentações.
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Por estes motivos, Jerusalém tem sido uma cidade que durante toda a sua história lidou com violência. Já no século XX, e de acordo com o Plano da ONU para a partilha da Palestina, assinado em 1947 e que dividiu a histórica Palestina entre judeus e estados árabes, Jerusalém ficaria um estatuto especial, sob controlo internacional.
No ano seguinte, forças israelitas tomaram controlo do lado ocidental da cidade e declararam-na como território de Israel. Durante a Guerra dos Seis dias, em 1967, que opôs Israel a países árabes, nomeadamente Jordânia, Síria e Egito, as forças militares israelitas anexaram o lado Oriental da cidade, um ato considerado ilegal pela comunidade internacional e por uma série de resoluções da ONU.
Apesar disso, Israel tem continuado, ao longo dos anos, a sua política de ocupação em Jerusalém. Por exemplo, os palestinianos que vivem na Cidade Santa não têm direito à cidadania, sendo atribuída, ao invés disso, sob controlo israelita, permissões de residência.
Segundo a Al Jazeera, cerca de 420 mil palestinianos têm este documento, bem como um passaporte jordano que, contudo, não lhes confere a cidadania. Ou seja, um palestiniano a viver em Jerusalém nem é cidadão de pleno direito no seu próprio local de nascimento, nem tem a cidadania jordana, o que lhe causa impedimentos como a obtenção de uma permissão de trabalho ou as dificuldades em ter acesso a serviços governamentais. “Os jerusalemitas palestinianos em Jerusalém Oriental são, essencialmente, apátridas, presos num limbo legal – nem são cidadãos de Israel, nem são cidadãos da Jordânia ou da Palestina”, escreve a mesma estação árabe. Por outro lado, ao abrigo da Lei do Retorno israelita, qualquer judeu, de qualquer país do mundo, que queira ir viver para Israel tem direito a residência e a cidadania.
A juntar a isto, os palestinianos lidam, diariamente, com o crescimento dos colonatos israelitas –habitações construídas, ilegalmente, em território ocupado destinadas apenas a judeus. Cerca de 200 mil israelitas vivem em Jerusalém Oriental sob proteção do exército e da polícia, ao passo que os palestinianos se veem confrontados com limitações nos seus movimentos diários. Um muro separa Jerusalém Oriental de várias zonas palestinianas, sem esquecer os checkpoints instaurados por Israel, isto enquanto os colonatos judeus continuam a crescer.
"A doença da esperança"
Numa região bastante fragilizada pelas suas guerras, em que o conflito Israel/Palestina assume um papel central, é imprevisível até que ponto a tensão e a violência podem escalar nos próximos tempos. O Irão já avisou que poderá estar em causa um início de uma nova intifada.
Momentos depois da declaração de Trump, começaram a suceder-se manifestações um pouco por todo o Médio Oriente. Bandeiras queimadas e protestos marcaram as horas seguintes ao anúncio norte-americano.
Protestos contra a decisão de Donald Trump© Reuters
Em declarações ao Notícias ao Minuto, Rui Bebiano considera que “a decisão de Trump representa uma afronta para os palestinianos, em primeiro lugar, mas é-o também para todas as forças mundiais que se têm batido por uma paz negociada no conflito israelo-palestiniano”. Por esse motivo, continua, a mudança da embaixada norte-americana em Israel para Jerusalém “ajudará a radicalizar setores da maioria árabe, legitimando ações de natureza violenta e contribuindo para reforçar o papel dos setores palestinianos que são contra qualquer negociação e favoráveis à eliminação pura e simples de Israel”. Nos próximos dias ficaremos a saber qual será a reação do grupo fundamentalista islâmico Hamas, que governa a Faixa de Gaza, e que chegou, recentemente, a acordo com a Fatah, pondo fim a 10 anos de divisões.
Para evitar que a se aumente a escalada de violência na região, o embaixador da Palestina em Portugal considera que é fundamental que a comunidade internacional “não deixe os palestinianos sozinhos” e que, finalmente, reconheça o Estado palestiniano.
“Todas as pessoas do mundo que se preocupam com a paz, que querem a solução dos dois estados, devem estar preocupadas”, alerta Nabil Abuznaid. “A comunidade internacional tem a responsabilidade de ajudar, realmente, os palestinianos e não os deixar sozinhos nisto. Que reconheça o Estado da Palestina nas áreas ocupadas em 1967. [A comunidade internacional] Deve agir rapidamente para impedir este comportamento de Trump e a melhor forma de o fazer é reconhecer o Estado da Palestina”, conclui.
No mesmo sentido, Shahd Wadi apela a que a comunidade internacional tome medidas, temendo que haja uma escalada de violência na região. No entanto, avisa, “qualquer reação na Palestina é uma resistência legítima a esta tentativa de limpeza étnica”, sublinhando o sofrimento do povo palestiniano, diariamente, não só em Jerusalém como em todos os territórios ocupados por Israel na Cisjordânia.
Apesar deste sofrimento, que dura há várias décadas e que parece não ter fim à vista, a investigadora não perde a esperança. É isso que mantém viva a luta palestiniana. “Tenho a doença que todos os palestinianos têm. Há um poeta que diz que os palestinianos têm a doença da esperança, portanto não quero deixar de a ter”.
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