"Temos de estar atentos a mentiras contra estrangeiros. Será uma batalha"

Bruno Maçães é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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Pedro Filipe Pina
08/11/2018 09:40 ‧ 08/11/2018 por Pedro Filipe Pina

País

Bruno Maçães

Durante seis meses, Bruno Maçães andou por territórios ainda estranhos ao turismo, onde a Europa e a Ásia se tocam e por vezes se confundem.

No regresso, trouxe na ‘bagagem’ uma mudança de relevo na sua vida pessoal e um livro, ‘O Despertar da Eurásia’, que nos fala sobre outras mudanças.

‘Guerra dos Tronos’, série de livros de sucesso que virou série de televisão de ainda maior sucesso, é referido por duas vezes nesta entrevista. E não é acaso. Para lá de dragões, exércitos de zombies e lutas medievais, encontramos ali uma lógica de disputa de poder no tabuleiro que é o mundo.

Olhando para o nosso próprio tabuleiro – o mapa do mundo – é possível ver um bloco gigantesco de terra ligada a que podemos chamar Eurásia e imaginar uma espécie de ‘super-continente’, em mutação, onde o futuro se vai jogar.

A viver atualmente em Pequim, o ex-secretário de Estado que se mantém fora de cargos políticos mas atento à geopolítica esteve de passagem por Lisboa e explicou ao Notícias ao Minuto que já vai sendo tempo de deixarmos certas ideias antigas sobre Oriente e Ocidente.

"Mais do que nunca, o futuro parece estar em aberto", escreve Bruno Maçães no livro. E mais do que nunca a tecnologia poderá ser a chave do sucesso.

Foi secretário de Estado no Executivo de Passos Coelho num tempo em que se tornou claro que governar Portugal pode passar tanto por Lisboa como Bruxelas. Quão diferente é o poder em Lisboa e Bruxelas? 

O meu trabalho como secretário de Estado dos Assuntos Europeus era muito o de ligar Bruxelas a Lisboa. É evidente que há uma elite política em Bruxelas que está sempre forçada a representar os interesses da União Europeia (UE). Em muitos casos esses interesses coincidem com os interesses dos países, mas há áreas de alguma tensão. Temos de reformar o sistema da UE para tornar esse equilíbrio mais fácil. Um político em Bruxelas tem de ser simultaneamente um político europeu e um político nacional e esse equilíbrio é muito difícil.

Temos de estar sempre atentos às manipulações, às mentiras, a esse jogo de paixões, contra estrangeiros, contra quem está de fora. Mas vai ser uma batalha permanente. E difícil

Explicar à população essa diferença é um exercício que a Europa tem conseguido fazer?

É um exercício muito difícil. Acho que o momento em que vivemos é um em que a opinião pública tem uma enorme desconfiança em relação às elites e a solução é difícil porque o modo de provar essa lealdade leva a extremos como Trump. Não há modo mais fácil de se provar que se é português do que tendo um discurso anti-estrangeiro. Como é que resolvemos isto? Temos de continuar a explicar e a mostrar como os interesses portugueses estão diretamente ligados aos interesses de outros países da UE e em como não ganhamos nada nesse confronto. Temos também de ser capazes de ter um discurso mais agressivo em relação aos populismos, que em muitos casos assentam numa manipulação muito óbvia dos sentimentos das pessoas. Temos de estar sempre atentos às manipulações, às mentiras, a esse jogo de paixões, contra estrangeiros, contra quem está de fora. Mas vai ser uma batalha permanente. E difícil.

Há aqui uma viagem de seis meses com o conceito de Eurásia como base. Partiu para a viagem com o intuito de confirmar o que já tinha estudado ou a viagem em si é que fez o livro?

Nunca gostei muito da abordagem das universidades, em que fechados num escritório é suposto percebermos o mundo. Acho que os alunos que estudam relações internacionais fazem-no porque estão interessados no mundo, noutros países, em viagens. E depois descobrem a contradição de chegarem à universidade e tudo aquilo se revela uma teoria muito abstrata.

O meu livro tenta fazer o oposto: tenta recuperar esse interesse original pelo mundo, pelas viagens, pelo exotismo, e depois ligar esse elemento a uma espécie de tentativa de entender o mundo, oferecendo conceitos e explicações, mas sempre partindo de viagens, de conversas com as pessoas, de conhecimento prático.

O livro é um híbrido entre ensaio político, livro de viagens e até reportagem. Era a única forma de resultar?

Era a única forma de estar a falar verdadeiramente do mundo e não apenas de teorias abstratas. Mesmo quando há reflexões mais teóricas no livro, estas partem sempre de um episódio prático: um sítio, uma pessoa com quem falei. Depois há uma tentativa de transformar essa experiência em algo mais elaborado, mas sempre com os pés assentes nos países que visitei.

Vivo em Pequim e quando volto de Pequim para a Europa nalguns casos parece que estou a recuar no tempo e não a avançar, como costumava serEurásia. Olhando para o mapa parece fácil perceber o conceito mas depois pensa-se na China, na Rússia, na UE e há história, culturas, sistemas políticos e económicos diferentes. Como é que estes blocos poderiam trabalhar em conjunto?

As diferenças são muito menores hoje do que eram há 100 ou 200 anos. Nessa altura, um europeu que chegasse à Ásia entrava num universo completamente diferente. A Europa era um continente avançado, com tecnologia, com este movimento de progresso e transformação permanentes, enquanto a Ásia era um continente rural, parado no tempo, retrógrado. Isso acabou. Hoje em dia acontece mais facilmente o oposto. Eu vivo em Pequim e quando volto de Pequim para a Europa nalguns casos parece que estou a recuar no tempo e não a avançar, como costumava ser.

Isto tecnologicamente falando?

Sobretudo na tecnologia. Em Pequim não uso nem dinheiro nem cartões de crédito. Trato de tudo com telemóvel, em qualquer loja. E há outros exemplos: o uso da inteligência artificial no dia a dia. Em breve julgo que teremos carros autónomos em muitas cidades chinesas e na Europa vai demorar mais tempo. Essa ideia antiga de que a Europa é avançada e a Ásia atrasada acabou. E desse ponto de vista hoje vivemos num mundo mais ou menos comum.

Temos ideias políticas diferentes sobre como organizar este mundo e essa é uma das questões centrais do meu livro: a disputa e a rivalidade entre projetos diferentes. Mas a verdade é que todos nós, embora tenhamos ideias diferentes, estamos a tentar organizar este espaço da Eurásia.

O que se fala sempre, e em Portugal também, é criar um ministro das Finanças europeu. Acho isso uma ideia péssimaA última década da UE tem sido marcada por esta dificuldade em falar a uma só voz. Como é que se pode pensar nesta UE a negociar com uma China ou uma Rússia quando tem dificuldade em ter uma voz comum?

Precisamos de algumas reformas profundas. O que se fala sempre, e em Portugal também, é criar um ministro das Finanças europeu. Acho isso uma ideia péssima. O ministro das Finanças europeu será alguém que vai interferir permanentemente na vida dos cidadãos, vai criar desconfiança sobre os objetivos que está a prosseguir, que vai ter o mesmo modelo para 27 países diferentes. Imagine o que seria um ministro das Finanças sentado em Bruxelas a decidir sobre cortes das pensões em Portugal. Tivemos um pouco dessa experiência – ou pelo menos essa perceção – em 2011 e isso não funciona.

O que precisamos é de um ministro de Negócios Estrangeiros europeu, porque é precisamente nas relações com os gigantes como a China, Índia e Rússia que uma voz unida da Europa é útil e necessária. É na política externa que precisamos na Europa, não na política orçamental. A minha sugestão é transportar os Negócios Estrangeiros das capitais para Bruxelas. É criar um ministro dos Negócios Estrangeiros europeu ou um Conselho de Negócios Estrangeiros europeu, com 27 ministros, que decidam em conjunto, por maioria. 

Uma das ideias base identitárias da UE era a questão de haver democracias coligadas, por oposição a sistemas que, por padrão, têm outros valores. Como é que diplomaticamente se enquadra isto?

É uma ideia que nunca me atraiu porque as coisas são menos claras no mundo real. Não há uma lista de democracias e uma lista de autoritarismos. Existe um espectro que vai de um extremo ao outro. Nas minhas viagens foi claro que num Azerbaijão temos um país com um presidente autoritário, mas que não interfere demasiado na vida das pessoas, desde que elas não tenham ambições políticas. No Turquemenistão temos um regime muito semelhante ao da Coreia do Norte. No Uzebequistão tínhamos até há pouco tempo um regime extraordinariamente violento, onde supostamente o presidente cozia vivos os seus adversários em água a ferver. No Cazaquistão temos um regime muito mais aberto ao exterior, e com mais liberdades. Ou seja, não é possível pegar nestes regimes todos e colocá-los em caixas: ‘este é uma democracia, aquele não é’.

Temos de conviver com um mundo mais complexo. Por isso a ideia de que as democracias se vão unir todas contra todos os autoritarismos pode fazer algum sentido nos bancos de universidade mas não no mundo real.

Portugal sempre teve alguma dificuldade em ser 100% europeu. A nossa história sempre foi de estarmos mais virados para o mundoE no caso de Portugal. Falamos de um país por vezes já geograficamente pequeno e periférico em relação a Bruxelas. Não há um risco acrescido em ter um centro de poder que se desloque ainda mais para Oriente?

É uma maneira de ver as coisas mas eu prefiro pensar que Portugal sempre teve alguma dificuldade em ser 100% europeu. A nossa história sempre foi de estarmos mais virados para o mundo, de ter um pé na Europa e outro fora. Se o sistema para que caminharmos for um em que a Europa tem de conviver no mesmo plano com outros países, talvez Portugal tenha algumas vantagens e uma abertura ao mundo que outros países não têm. Pela sua história e cultura, Portugal tem um pouco mais conforto em fazer isso. E, neste mundo mais dividido entre diferentes polos, pode ser bem sucedido.

No livro fala de Singapura e Hong Kong como cidades que conseguiram fazer esse cruzamento entre Oriente e Ocidente, ligando culturas e economias. Mas a história diz-nos que há casos de sucesso e casos que terminam em tragédia. Há algum fator característico nos casos de sucesso?

Boa pergunta e acho que há. Mas deixe-me dizer que Hong Kong e Singapura funcionaram como inspiração para o livro porque há uma espécie de mistério sobre estas duas cidades, que são das grandes histórias de sucesso do século XX. E acho que é esta combinação entre qualidades da Ásia e da Europa que as ajudou a ser um enorme sucesso económico. O que é que fizeram bem que outros não fizeram? Por exemplo a Síria e o Iémen também são combinações de cultura e a história não foi igual. Acho que a adoção sistemática de tecnologia conta.

São cidades tecnológicas, onde a paixão, o apetite pela transformação tecnológica está presente em tudo o que encontramos. E a verdade é que vivemos num mundo tecnológico onde quem estiver na fronteira tecnológica sobrevive e tem sucesso e quem perder o contacto com essa fronteira tem dificuldades. Numa palavra, o segredo do mundo moderno é a tecnologia.

Trump introduziu uma modificação que acho que é útil: em vez de tentar converter a Rússia e a China a um modelo ocidental, procura competir

E esta América de Trump, como se enquadra em relação à ideia de Eurásia? 

Trump introduziu uma modificação que acho que é útil: em vez de tentar converter a Rússia e a China a um modelo ocidental, procura competir. Isso é uma diferença fundamental. Acho que tivemos sempre a ideia de que a Rússia e a China se tornariam como nós e a política externa em relação a estes países  era sempre um modo de os tentar empurrar nessa direção. E acho que nos últimos cinco anos abandonámos essas ilusões. No caso da Rússia com a Ucrânia, no caso da China com o reforço do poder do partido. Por isso a resposta de Trump, desse ponto de vista, parece-me adequada.

É evidente que haverá sempre competição, mas tem de ser uma competição que parta do pressuposto de que são países diferentes, que nunca vão convergir com o modelo ocidental. A competição será permanente mas por outro lado as nossas ambições devem ser mais limitadas. Nós não temos de transformar a Rússia e a China, temos de conter o expansionismo russo e chinês para proteger os nossos interesses e os nossos valores. Nesta questão, a política externa de Obama e a de Trump são extremos opostos.

É razoável temermos um maior risco de conflitualidade?

Vi no outro dia que uma sondagem entre militares norte-americanos que é feita regularmente e em que se pergunta se há uma possibilidade de conflito militar de grandes dimensões nos próximos cinco anos. A resposta afirmativa era sempre à volta de cerca de 5%. Subitamente, 45% respondem que sim a um possível conflito de grandes dimensões, ou seja, na prática falamos de uma guerra mundial. Claramente alguma coisa mudou nos últimos tempos e temos muito mais consciência de que estamos mais próximos desse risco.

No livro fala de Yiwu, uma cidade chinesa que é 'fábrica' mundial de decorações, brinquedos e bandeiras. Ali, pelo número de encomendas, a vitória de Trump sobre Hillary Clinton era esperada muitas semanas antes das eleições. Este tipo de fenómeno reflete outro lado da globalização?

Sim. O que é muito curioso em Yiwu é que vemos a globalização à chinesa. A China está hoje ligada ao mundo tão profundamente que consegue receber sinais vindos de várias partes, é quase como se fosse já um centro nervoso do sistema mundial. Nalguns pontos de vista este sistema pode ser já considerado mais profundo do que o da globalização ocidental, que está em crise.

Yiwu tem ligações férreas com Londres, com Madrid. Infelizmente não com Lisboa. O comboio entre Madrid e Yiwu, que é hoje em dia a ligação férrea mais longa do mundo, poderia terminar em Lisboa mas infelizmente termina em Madrid. Talvez algo se possa modificar. Mas é o centro de um sistema económico chinês que pode ser visto por aquela cidade, que até é relativamente pequena para os padrões chinesas.

O livro vai sendo povoado por personagens com quem falou. Há o espião russo, a designer de moda, as modelos circassianas. Porque é que são úteis, estes detalhes?

Estava a tentar fazer várias coisas: por um lado, mostrar que muito está a acontecer nestas regiões, que há pessoas com – nalguns casos – sonhos e ambições maiores e mais radicais do que os nossos e que estão a construir um mundo novo e têm de ser levadas a sério. Quis sugerir que, de alguns pontos de vista, o 'centro' do mundo ainda é na Europa e nos EUA, mas há outros centros a aparecer e vidas extraordinárias que podem ser conduzidas em sítios que não imaginávamos. Há esta sobranceria ocidental na ideia de que vivemos vidas repletas de significado e alguém no Cazaquistão não poderia viver uma vida repleta de significado. Quis quase que dar uma abanão no leitor e mostrar que temos aqui grandes histórias, grandes vidas. E num certo ponto de vista até vidas mais viradas para o futuro do que as nossas.

O livro foi agora apresentado em Portugal mas já teve oportunidade de falar do livro lá fora. Como é que têm sido as reações a esta ideia de Eurásia?

Já falei sobre o livro na Índia, na China, na Rússia e no Cazaquistão e nesses países há um entusiasmo maior. Na Europa há uma certa desconfiança. As pessoas pensam: 'bom, se nos vamos tornar eurasiáticos deixamos de ser europeus'. E apesar de tudo as pessoas têm um enorme orgulho em ser europeus. Nalguns casos esse orgulho não é inteiramente saudável; tem que ver com um certo sentimento de superioridade quanto a outras regiões e raças.

Há um certo saudosismo em relação a outros séculos?

Sim. Muitas vezes há um racismo disfarçado. Mas julgo que isso está em modificação. No último ano já vi muitos europeus dizerem-me que o livro talvez há pouco mais de um ano parecesse um pouco bizarro, mas que os acontecimentos do último ano se movem na mesma direção que o livro se move. Espero que daqui a mais um ano ou dois muitas das coisas que ali pareciam futuristicamente excessivas já façam parte do dia a dia.

Por que não imaginar daqui a 50 anos haver um mundo em que há turistas que passam férias no Ártico?

Uma dessas possibilidades futurísticas de que fala é a cidade russa de Murmansk, no Ártico atualmente ainda gelado, mas que com as alterações climáticas poderia ser mais ameno e ter outra relevância. Que papel poderão ter as alterações climáticas neste contexto?

Há países, e julgo que a Rússia é o melhor exemplo, que veem no aquecimento global uma oportunidade. Se o Ártico descongelar não tenho dúvidas de que será utilizado como uma rota principal de transporte, porque é mais rápido e mais curto do que o canal do Suez. E a Europa deveria estar preocupada em começar a desenvolver ligações, para que elas não sejam inteiramente controladas pela China e pela Rússia. Por exemplo construir uma linha de comboio rápido entre a Europa Central e o Ártico, na Noruega.

O que sugiro no livro é que a partir de certa altura muitas coisas se tornam possíveis. Por que não imaginar daqui a 50 anos haver um mundo em que há turistas que passam férias no Ártico, na praia, onde o sol brilha durante 24h no verão e onde as temperaturas já são agradáveis? Novas cidades podem florescer quando há ligações comerciais intensas. Gosto muito da ideia – que é central no livro – de imaginar novos mundos e novas geografias, um pouco à imagem do ‘Senhor dos Anéis’ ou do ‘Guerra dos Tronos’. E mesmo que estejamos errados, o exercício é sempre muito útil. Mas julgo que na maior parte dos cenários que imagino no livro não estou errado e os próximos anos vão mostrar isso.

E não será perigosa a mistura entre quem nega as evidências científicas das alterações climáticas e quem possa olhar para elas já a pensar como algo rentável?

Nós estamos a lidar muito mal com a questão das alterações climáticas. Faltam mais vozes a apontar para soluções diferentes em vez de um certo seguidismo, como no Acordo do Paris, que é apresentado como uma verdade revelada. Eu tenho algumas reservas que o Acordo de Paris seja eficiente. E dou-lhe um exemplo: tanto quanto sei, o primeiro país que vai cumprir as metas será os EUA, que abandonou o acordo.

É uma dinâmica que já escapava ao tratado?

É uma dinâmica que não é imposta pelo tratado e que tem a ver com as empresas e a opinião pública americanas. Mas há algo de errado com um acordo que aparentemente funciona melhor para os países que não fazem parte do acordo do que para os que fazem.

Precisamos de novas instituições, de novos modos de lidar com o aquecimento global. Fiz parte das negociações do Acordo de Paris quando estava no Governo português e é um acordo débil, com metas que não são vinculativas, que não são coercivas, que os países se comprometem vagamente a atingir.

Nós podemos ser muito claros e ambiciosos quanto a resolver o problema das alterações climáticas e ser criativos quanto aos métodos. Não é preciso haver uma religião do aquecimento global em que não é possível ter uma opinião diferente sobre os métodos, mesmo quando estamos de acordo quanto aos fins.

É um mundo muito mais perigoso porque é muito mais desorganizado. Não há uma hierarquia de poder internacional tão clara e não há uma hierarquia de poder interna tão clara

O tema não é tão explorado neste livro mas como se enquadra o Médio Oriente em relação a esta Eurásia?

O que temos visto no Médio Oriente julgo que se enquadra no que descrevo no livro. Temos visto uma espécie de recuo da hegemonia ocidental e americana que abre margem para países se afirmarem como mais autónomos e abre espaço para esses países se abrirem internamente, com novos grupos sociais a serem capazes de lutar pelo poder. Estas duas dinâmicas, de países mais autónomos da supervisão americana e países mais divididos internamente, tem criado mais conflitos. Temos assistido a uma Turquia que deixou pura e simplesmente de seguir as orientações de Washington. Vemos uma Arábia Saudita, como este caso [morte do jornalista Jamal Khashoggi] mostra, que parece ter perdido qualquer tipo de receio sobre os meios que entende adequados para os seus fins.

É um mundo muito mais perigoso porque é muito mais desorganizado. Não há uma hierarquia de poder internacional tão clara e não há uma hierarquia de poder interna tão clara. 

Este caso do jornalista, para lá dos detalhes sórdidos, trouxe-nos uma Turquia de Erdogan, que preocupava pela falta liberdade de expressão, a assumir a defesa do caso. Já os EUA, que tinham na liberdade de expressão uma ‘bandeira’, são parceiro saudita.

Este caso mostra algumas das tendências mais recentes. Por um lado, não se pode ignorar o poder das redes sociais. Casos que há 10 ou 20 anos seriam rapidamente esquecidos hoje em dia permanecem. Depois há muita geopolítica neste caso. Nos últimos meses, todo este sistema de alianças estava em grande agitação: a tensão entre EUA e Turquia, a ‘guerra fria’ entre a Arábia Saudita e o Irão. Os EUA tentaram criar uma coligação contra o Irão onde a Arábia Saudita era parte principal e não estão inteiramente inclinados a abandonar os planos que tinham de confrontação com o Irão, e para isso não podem a abandonar a aliança que têm com os sauditas.

A China e a Rússia veem aqui uma oportunidade de dividir os EUA da Arábia Saudita. Há muita geopolítica misturada. É paem perrte deste mundo por um lado mais dividido, mais complexo, mas também mais conflitual, onde há uma espécie de grande batalha pelo futuro da Eurásia, com alianças a serem desenhadas e redesenhadas manência. Mais uma vez, para usar uma analogia que já usei, faz lembrar a ‘Guerra dos Tronos’.

Por um lado as redes sociais fomentam ativismos onde antes se calhar mal havia, por outro criam ruído onde antes não havia. Que riscos trazem?

É uma situação um pouco ambígua. Por um lado agrada-me que toda a gente participe nestas questões. Tornou-se quase que uma espécie de emprego em part-time, de acompanhar as grandes questões mundiais. No Twitter em particular vemos pessoas que numa semana são especialistas na política da Arábia Saudita, depois na semana seguinte são especialistas em armas nucleares, e depois em armas químicas. E isso não é desagradável porque acho que aprofunda a democracia.

E não pode trazer aquele risco de erosão da opinião especializada?

Nunca respeitei muito a opinião especializada, não me preocupa tanto. Preocupa-me mais uma espécie de fanatismo que as redes sociais estão a criar. Pessoas que tendem a exibir uma espécie de comportamento de grupo, que se fecham dentro desse grupo e que tentam defender opiniões cada vez mais extremas, porque é o único modo de essas opiniões terem ressonância. Faz lembrar os fenómenos de multidões. Dantes passava-se nas ruas, agora passa-se nas redes sociais e é mais intenso por causa disso. Mas há uma velha tradição de pensamento político que nos diz que a democracia e a multidão de rua são duas coisas contraditórias. Nesse ponto de vista, a multidão do Twitter e a democracia também são contraditórias.

Foram seis meses em territórios onde ocidentais não costumam passear como turistas. Como foi? Sentiu algum risco, algum local que teve mesmo de evitar?

Foi fácil. Muito barato. As pessoas às vezes ficam surpreendidas quando digo que é possível viajar pelo mundo gastando quatro mil euros por mês. Na verdade hoje em dia em Lisboa também se pode gastar quatro mil euros facilmente. E não foi particularmente perigoso porque muitos destes países mais exóticos são extraordinariamente estáveis e seguros. É evidente que temos que evitar um ou outro país, como o Afeganistão e a Síria, mas isso não nos limita muito as possibilidades de descobrir países desconhecidos.

Hoje em dia a Internet torna muitas destas coisas muito mais fáceis. É possível consultar informação, ver mapas, ter acesso a todo o tipo de serviços, de reserva, alojamento, etc. Há wifi em todo o lado. Não tive problemas em ter wifi mesmo na fronteira entre o Iraque e o Irão. Em cima da fronteira havia um pequeno restaurante com wifi, ou seja, é muito mais fácil do que as pessoas pensam.

Precisamos de tentar convencer as pessoas de que o mundo é maior do que a meia dúzia de destinos habituais

Algumas das cidades que visitou, como Baku, no Azerbaijão, sugere que poderão ter uma importância primordial no futuro. Hoje em dia Baku é um destino que ouvimos mais falar quando uma seleção lá vai jogar.

A mim surpreende-me sempre como é que o turismo, que é cada vez mais importante, continua a ser tão centralizado e regulado. Muito poucas atividades têm esta incapacidade de encontrar coisas novas. Um automóvel todos os anos tem inovações. No turismo vemos que são sempre os mesmos destinos todos os anos. As pessoas até gostam de os repetir quando há tantos sítios que são seguros, novos e aliciantes. O Azerbaijão é um deles. É um país sem o mais pequeno problema de segurança, que está agora a começar a abrir-se ao turismo, com vistos mais fáceis, um país absolutamente fascinante, o único que acho que está completamente dividido a meio entre a Europa e a Ásia.

Precisamos de tentar convencer as pessoas de que o mundo é maior do que a meia dúzia de destinos habituais para turistas. Isso também ajudava essa meia dúzia de destinos habituais a tornarem-se um pouco menos insuportáveis.

Dedica o livro à Senhora das Sugestões. Esta viagem acabou por não ser apenas académica mas também muito pessoal.

Sim, encontrei a minha mulher durante a viagem, conhecemo-nos durante a viagem, aliás refiro-a de passagem numa das páginas do livro. E, bom, mostra que de facto viajar pode ser muito agradável e até muito produtivo. Não só acabei a viagem com um livro feito mas com um casamento feito também.

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