"Há pessoas que vão morrer se nós não fizermos alguma coisa"

Miguel Duarte é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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© Miguel Duarte

Melissa Lopes
12/07/2019 09:30 ‧ 12/07/2019 por Melissa Lopes

País

Miguel Duarte

Foi algures entre 2015 e 2016 que Miguel Duarte, agora com 26 anos, decidiu concretizar o sentido de missão e tornar-se voluntário para dar o seu contributo para resolver uma crise que, ao dar-se conta dela, o deixou "horrorizado".

A bordo do Iuventa, navio da Organização Não Governamental (ONG) alemã Jugend Rettet, o português ajudou a salvar cerca de 14 mil vidas. Por causa disso, em 2018, ele e nove elementos da tripulação foram constituídos arguidos por suspeita de auxílio à imigração ilegal por parte das autoridades italianas. Pode enfrentar uma pena de prisão de até 20 anos.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, fala de um misto de sentimentos por estar a ser alvo de uma "injustiça". Frustração, por um lado, e sentido de responsabilidade, por outro. 

Miguel Duarte acusa a União Europeia de ser, em boa parte, responsável pela crise dos refugiados e lamenta o crescimento de  partidos políticos com "mensagens venenosas anti-imigração". Portugal, diz, está "temporariamente a salvo" dessa onda que já inundou muitos Estados-membros. 

Estava à espera de que o seu caso gerasse uma onda de solidariedade tão grande?

Não, não estava. Estava à espera que houvesse muita gente solidária com isto, mas nunca pensei que houvesse uma mobilização tão grande. Não é só mensagens de apoio que recebemos, é o facto de a campanha de crowdfunding ter chegado a 10 vezes do valor inicial [a campanha termina hoje com quase 55 mil euros angariados] e é também a resposta institucional a que isso obriga. Não estávamos à espera nunca que houvesse uma resposta tão boa.

A nível político, tem tido o apoio que esperava?

Temos tido algum apoio. É muito bom que várias instituições do Estado tenham já manifestado publicamente uma opinião que é favorável ao nosso caso, tanto o Presidente da República como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e várias entidades da Assembleia da República se demonstraram solidárias connosco, isso é muito bom e uma ajuda muito grande. Agora, o que se vai fazer a partir daí, vamos ver.

Já se encontrou com que partidos?

Com Bloco de Esquerda e com o PS. Já me encontrei também com os membros portugueses do Conselho da Europa e com a Comissão Parlamentar para os Assuntos Constitucionais.

Já estamos, infelizmente, muito habituados a partidos populistas com mensagens muito venenosas anti-imigração 

Nas caixas de comentários, sobretudo nas redes sociais, vê-se também comentários depreciativos, nomeadamente acusando o Miguel de ser um criminoso. Já estava à espera disso?

Já. Na verdade já tínhamos recebido muito disso. Agora que temos um bocado mais de visibilidade, torna-se mais evidente. Mesmo quando não havia nenhum problema legal e estávamos simplesmente a fazer o nosso trabalho no mar, recebíamos muitas mensagens desse género, de pessoas que estão mal informadas e que têm uma opinião errada sobre o que se está a passar.

Essa desinformação parte de um desconhecimento, nomeadamente do direito internacional, e até de alguma ignorância?

Sim, é uma coisa muito profunda hoje em dia na política europeia. Já estamos, infelizmente, muito habituados a partidos populistas com mensagens muito venenosas anti-imigração que acabam por, de uma forma ou de outra, culpar os imigrantes pelos problemas económicos que o cidadão comum possa ter. Quando aparece o vice-primeiro-ministro italiano, Salvini, a dizer que nós contribuímos para o tráfico humano ou que as ONG’s trazem para cá gente e que essas pessoas contribuem para os problemas económicos que os italianos estão a sofrer. Quem acredita nisto acaba por não simpatizar com o nosso trabalho. Acaba por ser simplesmente o resultado sobre falta de informação sobre o trabalho que fazemos e sobre as leis internacionais em vigor que o protegem.

Acaba quase por ser uma escolha individual de que lado queremos estar

Quando é que despertou para este drama dos refugiados? Lembra-se do dia em que pensou ‘tenho de fazer alguma coisa’ por aquelas pessoas?

Em 2015/2016, como qualquer outra pessoa na Europa que veja notícias, estava horrorizado com o que se estava a passar nas fronteiras, tanto as pessoas que morriam afogadas no Mediterrâneo, como famílias inteiras que sofriam nos campos de refugiados de ambos os lados da fronteira. Na altura, estava a acabar os meus estudos e meti na cabeça que esta é uma responsabilidade de todos e que a chamada crise dos refugiados é a crise da minha geração e acaba quase por ser uma escolha individual de que lado queremos estar. Se um dia mais tarde queremos dizer aos nossos netos que vimos milhares e milhares de pessoas a morrer no Mediterrâneo e não fizemos nada, ou que vimos essas milhares de pessoas a morrer e fomos fazer alguma coisa, tentámos contribuir para que isso se assim não fosse.

Sentiu que tinha de fazer alguma coisa, e depois, como chegou ao Iuventa? O que é que fez para por em prática o sentido de missão?

É uma questão de procurar. Andei à procura de projetos que trabalhassem com refugiados onde me pudesse voluntariar e encontrei o resgate marítimo. Na altura ainda nem sabia que existia o resgate marítimo civil. E encontrei esta ONG, tinha acabado de começar a operar. Estavam à procura de tripulação, candidatei-me e convidaram-me.

Como é que funcionavam as operações de resgate?

Tínhamos uma base em Malta. Uma casa onde fazíamos as trocas de tripulações, o reabastecimento e o treino. Depois de alguns dias de treino e de preparação da missão e o do navio, navegávamos até à chamada zona de resgate que é ao largo da costa da Líbia em águas internacionais. Patrulhávamos essas águas sempre em coordenação com o centro de resgate marítimo, um órgão do Estado italiano. A esmagadora maioria dos casos de emergência que encontrámos foram-nos comunicados primeiramente pelo centro de coordenação. Diziam-nos onde é que havia uma situação de emergência, nós estávamos preparados para fazer o resgate, concordávamos, íamos, resgatávamos as pessoas (há diferentes procedimentos para diferentes situações, podemos encontrar muitas coisas diferentes). Depois comunicávamos de volta ao centro de coordenação que, na esmagadora maioria das vezes, enviava um navio maior, fosse da guarda costeira ou da marinha, para vir buscar as pessoas em alto mar e levá-las até ao porto italiano.

Notícias ao MinutoO português e mais 9 nove tripulantes do Iuventa podem enfrentar 20 anos de prisão© Miguel Duarte

Ou seja, o resgate era feito em estreita colaboração com as autoridades italianas.

Sempre. Todas as pessoas que resgatámos entregámos às autoridades italianas, como é natural e legal.

Isso não faz soar mais bizarro, digamos assim, este processo todo?

Precisamente. É mais uma razão para acharmos que isto é completamente político, como se faltassem razões para achar isso. É um caso sem cabimento nenhum, não faz nenhum sentido.

A própria justiça italiana se debate contra as intenções de Salvini.

Vamos ver o que vai acontecer.

Sinto que me lembro de quase todos os minutos que estive a bordo. São realmente sensações muito fortes que sentimosQue memórias guarda das missões de resgate? Há algum caso, mais doloroso ou não, que lhe tenha ficado especialmente gravado na memória?

Sinto que me lembro de quase todos os minutos que estive a bordo. São realmente sensações muito fortes que sentimos ali porque estamos em contacto muito próximo com o desespero, a morte e a esperança. Lembro-me, logo na minha primeira missão, de termos encontrado um barco furado a meio da noite e de haver já dezenas e dezenas pessoas dentro de água. Conseguimos resgatar a maior parte das pessoas nessa noite, 113. Mas depois apercebemo-nos que tínhamos chegado tarde demais para algumas, perdemos uma menina de três anos e a sua mãe, e várias outras pessoas que foram caíndo ante de conseguirmos chegar.

Muitas vezes chegam ao navio, [os migrantes] sentem-se pela primeira vez em segurança e adormecem no chão

Vinham de onde?

Não sei, não cheguei a conversar com as pessoas, porque foram transportadas para o navio gerido por outra ONG.

E o papel do Miguel nessa missão qual era?

Entrei primeiramente a fazer papel do que se chama deckhand, basicamente era mais um par de mãos no convés a gerir isto e aquilo, e a gerir as pessoas a bordo e também como tradutor, porque falo italiano e algum francês, e isso era necessário para falar com as autoridades em Itália e com as pessoas que conseguíamos resgatar. Nesse resgate em particular, tivemos algumas dificuldades na tripulação e acabei por sair como pessoa de contacto num dos semi-rígidos que temos, num dos barcos que são destacáveis do navio.

Não é medo por mim propriamente. Acaba por ser medo ou stress de ter vidas nas mãos. Há pessoas que vão morrer se nós não fizermos alguma coisaSentiu medo durante as missões de resgate?

Não. Não é medo por mim propriamente. Acaba por ser medo ou stress de ter vidas nas nossas mãos. Há pessoas que vão morrer se nós não fizermos alguma coisa, ou se nós fizermos aquilo que queremos fazer mas mal. É preciso manter a cabeça fria e é preciso não ceder a essa pressão e esse stress e tomar decisões racionais. Medo por nós próprios, não há muito. Há perigos certamente, nomeadamente no contacto com a guarda costeira líbia que tem tido atitudes muito perigosas em relação aos outros navios ali vizinhança. Mas nem há tempo para sentirmos medo, porque há simplesmente muita coisa para fazer, em que pensar e muitas decisões a tomar, e acabamos por sair um bocadinho de nós próprios durante o tempo em que lá estamos. Foi essa a minha sensação.

Notícias ao MinutoA bordo do Iuventa, Miguel Duarte ajudou a salvar 14 mil pessoas© Miguel Duarte

Qual a reação das pessoas que acabam de ser resgatadas? O que é vos dizem?

O que se vê primeiro na cara das pessoas é esperança porque muitas delas, se não a maior parte, achavam que iam morrer.

Choram?

Algumas sim. Em geral, estão muito agradecidas. Há uma coisa engraçada que muita gente faz, é uma coisa mesmo generalizada, é que muitas vezes chegam ao navio, sentem-se pela primeira vez em segurança e adormecem no chão. Achei isso curioso, porque mesmo numa situação de stress é estranho que uma pessoa simplesmente se encoste e adormeça. Mostra-nos um bocado o tipo de pressão em que estas pessoas vêm durante dias e dias, se calhar meses, em constante tensão, e que ali nós temos a possibilidade de lhes dar o sentimento de segurança pelo menos durante um bocado.

Estão a morrer pessoas porque os Estados europeus se recusam a criar um programa de resgate

Porque é a que a União Europeia como um todo ainda não conseguiu encontrar uma solução para a crise dos refugiados, ignorando até o problema? Se é que concorda …

Não concordo que ignore. Está a fazer muito pior do que ignorar. De facto, ao início penso que os Estados da UE viraram a cara para o outro lado quando começou esta crise humanitária. Hoje em dia o que vemos é uma criminalização ativa da solidariedade, da ajuda humanitária. Já é gravíssimo o facto de não haver um programa de resgate governamental como havia em 2013 e 2014. Estão a morrer pessoas porque os Estados europeus se recusam a criar um programa de resgate. Mas muito mais grave é quando os Estados europeus começam a criar ações legais contra as organizações da sociedade civil que tentam tapar esse buraco. E, como se ainda não bastasse, fazem acordos – como é o caso do acordo entre a Itália e a Líbia – de armamento e de outro tipo de equipamento para que os líbios não deixem passar as pessoas. O que vemos, infelizmente, é que as condições que são vividas nos campos de refugiados da Líbia são horrorosas. Estão reportadas violações de direitos humanos inacreditáveis.

Que tipo de sanções deviam ser aplicadas aos países que cometem esses atropelos aos direitos humanos?

Sinceramente, não sei a nível político o que é que a UE pode aplicar aos seus Estados-membros. Podíamos achar que isto é um problema só de Itália, não é. Tem a conivência da UE e dos vários Estados. É um problema generalizado, não há propriamente países bons e países maus.

Essa conivência parte dos interesses que há em manter, nomeadamente, os relacionamentos com a venda de armas para os países em conflito?

Essa é uma questão fundamental. Se quiséssemos, de facto, parar com o fluxo migratório, o primeiro passo seria deixar de vender armas a regimes autoritários, que é o que as maiores potências económicas da Europa fazem. Aliás, os maiores exportadores do mundo. A Alemanha, a França e o Reino Unido, por exemplo, de uma forma ou de outra, acabam por ser responsáveis por grande parte dos conflitos armados só pelo facto de venderem armas para zonas de conflito.

Nos últimos dias, caso da Carola, a capitã alemã que foi detida pelas autoridades italianas, encheu as páginas dos jornais depois da sua detenção. Para uns uma heroína, para outros uma criminosa.

Acaba por ser uma situação parecida [com a minha], embora com algumas diferenças. O que aconteceu com a Carola é que de facto o Sea Watch não tinha autorização para entrar em águas italianas mas a comandante viu-se obrigada a escolher entre o bem-estar das pessoas que tinha acabado de resgatar, que ela é obrigada a proteger por lei internacional, ou defender uma lei italiana que, para ela e para mim, é completamente injusta e contrária à defesa dos direitos humanos. E, portanto, a escolha que ela fez foi a única acertada. Felizmente a juíza decidiu libertá-la.

É preciso chamar a atenção para este caso e tentar travar esta luta com o maior número de aliados possível para que consigamos acabar com este tipo de injustiça

Era uma decisão que também tomaria, a de atracar sem autorização em Itália?

É impossível agora prever o que é que faria nessa situação, mas gostava muito de ter a coragem que ela teve ao fazer isso.

Apesar do processo em que está envolvido, pretende continuar a participar em missões de resgate?

Neste momento, enquanto o processo está a decorrer, não posso propriamente fazer missões de resgate. O nosso trabalho neste momento é comunicar. É preciso chamar a atenção para este caso e tentar travar esta luta com o maior número de aliados possível para que consigamos acabar com este tipo de injustiça e, enquanto fazemos isso, também iluminar um bocado esta crise humanitária que em boa parte é culpa dos Estados-membros europeus.

Estamos temporariamente a salvo do crescimento da extrema-direita. Não temos de facto um fluxo migratório muito grande. Acaba por haver menos combustível para o discurso incendiário Prevê alguma mudança neste novo ciclo político que se inicia agora na UE?

Tenho algumas dúvidas de que alguma coisa vá mudar significativamente. Temos um crescimento da extrema-direita no Parlamento Europeu, que é certamente preocupante em termos da defesa da ajuda humanitária. Não têm sido só partidos de extrema-ma direita a fazer este tipo de ações, mas esta narrativa é muito propagada por partidos como o do Matteo Salvini em Itália.

Por cá, considera que Portugal está imune a esse tipo de narrativa de extrema-direita?

Diria que estamos temporariamente a salvo desse crescimento. Não temos de facto um fluxo migratório muito grande, isso é importante notar. Acaba por haver menos combustível para o discurso incendiário da extrema-direita de outros países como a Alemanha e a Itália. Por essa razão, e certamente por outras – não é uma questão simples –, estamos para já a salvo desse crescimento da extrema-direita, mas quem é que sabe o que pode acontecer no futuro. Espero que não tenhamos de lutar contra isso em Portugal também. Será uma exceção se não tivermos de o fazer.

Um caso destes pode demorar muitos anos a ser resolvido. Fomos constituídos arguidos, ainda não houve uma acusação formal, não houve julgamento. Tudo pode acontecer  Com esta exposição pública que tem tido, as pessoas reconhecem-no na rua?

Sim, reconhecem, todos os dias [risos].

E o que é que lhe dizem?

Em geral dão palavras de apoio. É importante. Sinto-me bem recebido pelas pessoas e acho que isso dá alento para continuarmos a lutar contra esta injustiça. Não têm sido dias fáceis porque a pressão é muita mas é muito bom ver que tanta gente nos apoia.

Em que pé se encontra o processo em Itália?

Um caso destes pode demorar muitos anos a ser resolvido. Fomos constituídos arguidos, ainda não houve uma acusação formal, não houve julgamento. O caso pode arquivado ou seguir com acusação e julgamento. Tudo pode acontecer e não existem previsões realistas neste momento.

Sente algum medo em relação ao que possa ser o desfecho deste processo?

Medo não sinto. Sinto frustração por termos de estar a utilizar tantos esforços e tantos recursos em defesa da nossa liberdade pessoal, em vez de utilizarmos esses esforços e recursos para resgatar pessoas e salvarmos vidas, que é isso que sabemos e queremos fazer. E sinto também alguma responsabilidade. Como somos o alvo desta injustiça, acabamos por ter uma plataforma que nos permite falar mais alto sobre sobre o problema sub-jaz a isto tudo, que é esta narrativa anti-imigração e esta tentativa de culpar os imigrantes e de refugiados pelos problemas que temos. Neste momento, temos uma voz para falar sobre estas injustiças e para chamar à atenção do público sobre elas, isso é importante e incute-nos a responsabilidade de o fazer.

A haver uma parte boa deste processo todo, é esta?

Sim, diria que é a única parte boa disto tudo.

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