Tiago e João têm 20 anos de diferença e vidas distintas. Une-os o facto de padecerem de doenças incuráveis e, por isso, terem uma noção de finitude distinta de todos aqueles que, saudáveis, colocam a morte numa gaveta do pensamento que raramente é aberta, salvo sobressaltos próprios da vida. Une-os também serem a favor da despenalização da eutanásia que esta quinta-feira o Parlamento volta a discutir e a votar. Separa-os a certeza sobre se a querem para si.
Arthogripose Congénita Dupla. Foi com esta condição que Tiago Antunes nasceu há 32 anos. O diagnóstico, conhecido após o parto, apanhou todos de surpresa. A doença afeta-lhe as articulações e os músculos e, sendo degenerativa, não tem cura, nem tratamento. A única certeza é de que vai piorar com o tempo.
Tiago, natural de Ferreira do Zêzere, caminha com ajuda de ortóteses - uns aparelhos que coloca nas pernas todas as manhãs e tira todas as noites - e de uma bengala. Fez a sua primeira cirurgia aos dois anos, entretanto seguiram-se outras 16. Umas para corrigir a posição das pernas, outras experimentais, para ver se tinham resultado prático ou não. Algumas tiveram, outras não, conta em conversa com o Notícias ao Minuto.
Assistindo ao debate sobre a eutanásia que por estes dias pulula no espaço político e mediático, Tiago decidiu dar o seu testemunho. Fê-lo, primeiramente, através das redes sociais, dando corpo a um apelo: "Quando chegar ao fim da minha linha, gostava de poder escolher ir embora deste mundo, rodeado de família e amigos no meio de sorrisos e de uma conversa animada e não no fim de meses e meses preso a uma cama sendo apenas um inútil que só dá trabalho. Só vos peço isso, deixem-me ter essa escolha...". Tendo ainda um olhar crítico sobre a possibilidade de o assunto vir a ser referendado: "Gosto de ver as pessoas que não têm males nem doenças a fazer manifestações a favor da vida... Como podem vocês representar-me se nunca passaram pelo que tenho de passar diariamente? Como podem vocês saber o que é passar dias, semanas, meses presos a uma cama onde a única coisa que se mantém connosco é o sofrimento e a dor?" E desmistificando: "A eutanásia não é matar velhinhos só porque sim... Eutanásia é dar uma última escolha a alguém que chegou ao fim da linha... É deixar alguém partir com uma última gota de dignidade...".
Da infância inocente à adolescência cruel
Se no decorrer da infância Tiago não chegou a ter noção do impacto do que significava ser diferente, a adolescência trouxe-lhe o primeiro banho de realidade. "Na adolescência, com as hormonas, o corpo, o olhar para as raparigas... percebi, então aí, realmente o impacto de ser diferente". "Fui-me abaixo nessa altura, cheguei a tentar o suicídio", confidencia. Mas o amor da família e dos amigos alterou-lhe a rota. "Perceber que os amigos gostavam de mim sendo diferente" e "perceber que não era por ter um corpo diferente que ia ser pior pessoa e menos capaz" foram determinantes no processo para alcançar a maturidade e a paz de espírito para gostar de viver, bem como a determinação de saber o que deseja quando estiver "no fim da linha". O "fim da linha", estima, será daqui a 30 anos "se o universo, as estrelas, e os vossos deuses estiverem a meu favor".
Tiago e as duas irmãs © DR
Tirar a carta e comprar carro foram, também, passos marcantes na conquista de liberdade e autonomia. "Um boost de autoconfiança", diz. Guiado pelos pais, que o obrigaram a "ser independente", Tiago foi sempre ultrapassando obstáculos. "Mesmo quando eu chorava e gritava que não conseguia, os meus pais sempre me disseram que sim, que conseguia. 'Pensa lá numa maneira, tu consegues'".
Hoje, aos 32 anos, Tiago não aceitou a doença, mas já se resignou a ela e garante ser feliz. "Não há nada que eu possa fazer, a não ser aceitar e viver o melhor que consigo com isto". E consegue ser feliz? "Eu não consigo, eu sou feliz", responde, aproveitando para esclarecer quem possa ter ficado com a ideia de que, no testemunho partilhado no Facebook, estava a desistir da vida.
"Acho que ficou um bocadinho a impressão errada de que eu estava a desistir da vida e que queria a eutanásia já. Houve pessoas que entenderam e vieram apontar-me o dedo por causa disso. Adoro viver, bolas. Adoro o verde aqui do sítio onde moro. Adoro o céu azul. Adoro a praia. Adoro ser um exemplo para as minhas pestinhas, sobrinhos e sobrinhas. [risos]", assevera.
Tiago recorda que foi na última cirurgia, há cerca de 10 anos, que percebeu que a eutanásia era o caminho. "Foi uma cirurgia que correu mal, correu mal desde o início (...) Cheguei a ter 10 agulhas espetadas no meu braço à procura de uma veia sustentável para o soro e para todos os medicamentos". Nesse momento, "lembro-me de olhar para a minha mãe e ela estava a chorar, a sofrer com o que estava a ver. Eu jurei para mim próprio, se puder evitar que ela sofra desta maneira, vou fazê-lo".
Foi nessa altura que resolveu pesquisar sobre a eutanásia, falar com a Dignitas na Suíça, perguntar-lhes todos os aspetos do processo. "Informei-me bem antes de tomar a minha decisão", frisa. Mas, caso a lei da eutanásia não seja aprovada em Portugal, viajar para o estrangeiro para levar a cabo esse desejo esbarra num outro problema: a falta de condições económicas para o fazer. Se o sofrimento não escolhe ricos nem pobres, a possibilidade de optar pela eutanásia, nas atuais circunstâncias, só está ao dispor de alguns.
"Adorava que fosse em Portugal", diz, manifestando-se, contudo, desconfiado do debate político que está atualmente a ser feito no país. Tiago teme que se esteja a querer aprovar uma lei que depois, na prática, esbarre na burocracia e nas várias etapas inerentes. Apesar de concordar que têm de existir cautelas. "Não podemos aceitar que uma pessoa deprimida porque morreu o cão vá ao centro de saúde e tome um medicamento para se matar", ironiza. "Mas temos de ser pragmáticos. Há pessoas em sofrimento extremo que realmente precisam, e quanto mais célere e mais justo for o processo, melhor. Era importante definir prazos. Constituir a junta para analisar o caso? Em Portugal? Vai demorar meses".
Tiago acredita que chegou ao pico da sua forma e sente já as suas capacidades físicas a regredirem. Chegou a ter um emprego, mas acabou por desistir dele por ser a 50 km de casa. "Chegava à sexta-feira, deitava-me e só me levantava à segunda-feira, porque o meu corpo estava completamente partido", diz, lembrando que chegou a "fazer tudo e mais alguma coisa" - "cheguei a nadar, era DJ... se fizesse agora a vida que fazia aos 20 anos, não aguentava".
Pais dizem que a eutanásia "não é o projeto de Deus"
A decisão pela eutanásia é um assunto falado e divide opiniões em casa. As irmãs "estão bem com a decisão", os pais não. "Dizem que não é o projeto de Deus". Tiago nasceu numa vila muito católica, o que justifica que os pais, também por serem de outra geração, "tenham muito aquela mentalidade religiosa". Em todo o caso, se tudo seguir o curso natural, já não vão presenciar o momento. Não desejo a morte aos meus pais, e espero ainda ter 30 anos de vida. Se tudo correr bem, não vão estar cá para ver isso, o que me alivia um bocadinho".
Para explicar a decisão pela eutanásia, Tiago recorre a um exemplo. "Imagina que estás num hospital, num centro de cuidados paliativos, o teu corpo não funciona, mas a tua mente está lá toda, consegues perceber que as pessoas sofrem lá por ti. Não quero que a minha família deixe de ir à praia. Eles merecem ser felizes, merecem viver a vida deles. Quando for uma festa de anos, vão fazê-la lá no centro de cuidados paliativos? Não. E depois eles vão fazer a festa de anos noutro sítio qualquer e eu vou ficar sozinho no hospital? Não quero que eles passem por isso, nem quero eu passar por isso. Vai haver sempre sofrimento, seja meu prolongado ou seja deles pela minha partida. Sofrimento vai sempre haver, ou é um sofrimento curto da perda, ou é um sofrimento continuado de me ver ali a definhar um bocadinho mais".
E questiona: "Até que ponto queres prolongar o sofrimento de um ente querido apenas porque não queres sofrer a perda dele?"
Tiago sofre de uma doença degenerativa rara© DR
Aos políticos que hoje debatem o tema no Parlamento, Tiago pede que oiçam realmente quem interessa - os doentes. "Peço-lhes para não ouvirem as pessoas que fazem o dia a dia normal e que não têm problemas, para pararem de tentar agradar aos eleitores, e que se concentrem em quem realmente precisa, são esses que são importantes nesta lei. Esta lei é também para as pessoas saudáveis. Mas é sobretudo para nós, para nossa consciência, para nossa escolha".
Tiago decidiu que este era o momento de dar a cara. "Não estamos a ser ouvidos. ouve-se muito as farmacêuticas, ouve-se muita demagogia política, e quem nos ouve a nós? Ninguém. Não há nada que vá curar isto, nem Deus, nem medicamento, nem Ciência". Depois de ter dado o seu testemunho, houve quem viesse dizer "abre-te a Deus, reza a Deus". "Desculpe? Isto é genético, não há nada que vá curar isto".
Lamentando a desinformação que há em torno do tema, Tiago manifesta-se um defensor da vida, apesar da decisão que tomou para si. "Quem quer viver, que tenha os melhores cuidados possíveis. Deem-lhes as melhores condições possíveis, tratem deles o melhor que conseguirem e o melhor que a Ciência permitir, mas deem-nos a nós a oportunidade de simplesmente sair", pede, por fim.
Desvalorizar os cuidados paliativos? "Isso é falacioso"
João Cainé tem 52 anos, é enfermeiro e professor na Universidade do Minho. Foi-lhe diagnosticado um cancro na próstata sem cura. Tem dado a cara em defesa pela despenalização da eutanásia e espera que esta quinta-feira pelo menos um dos cinco projetos de lei em discussão seja aprovado.
João olha para a iniciativa de tentar referendar o tema como "uma última tentativa de adiar o problema". "Não me parece que faça muito sentido a existência de um referendo para legislar sobre este assunto. Temos uma democracia representativa, sinto-me perfeitamente representado por aqueles deputados, julgo que têm mandato para isso".
João Cainé foi diagnosticado com cancro na próstata incurável© DR
No seu entender, colocar a despenalização da morte assistida em oposição aos cuidados paliativos não tem cabimento. "Muita da argumentação que tenho ouvido e lido daqueles que são contra assenta nesta questão de que ao despenalizar a morte assistida estamos a desvalorizar os cuidados paliativos e a qualidade de vida das pessoas em fase terminal. Na minha opinião isso é falacioso", diz, sublinhando ser a favor de cuidados paliativos de qualidade e, ao mesmo tempo, a favor da despenalização da morte assistida.
João lembra, no entanto, que apesar da evolução dos cuidados paliativos e de estes garantirem uma boa qualidade de vida a quem está numa fase terminal, "não podemos garantir com 100% de certeza que funcione em todos os casos". E é mais concretamente para esses que a lei se aplicará.
"Aquilo que se está a permitir é que as pessoas, por muito poucas que sejam, para as quais os cuidados paliativos possam já não ser uma solução, possam ter aqui uma outra saída no direito do exercício da sua autonomia, que é fundamental, e que possam, a pedido e com ajuda, antecipar a morte.
"A ideia de que se andam a matar velhinhos nos hospitais é um bocadinho delirante"
João posiciona-se a favor da despenalização da morte assistida e da eutanásia, mas isso não significa que o queira para si, e o mesmo se passará com a grande maioria dos doentes. "Numa fase avançada, terminal, não sei se quero a eutanásia ou morte assistida. Provavelmente, nessa fase, nem quero", esclarece. Isso não o impede de considerar que seja dada essa possibilidade "às pessoas que estão em fase terminal, em condição de sofrimento extremo e em condições de o poder decidir".
O que está em causa, reforça, "é garantir essa possibilidade em situações para as quais existe sofrimento extremo e não existem respostas terapêuticas adequadas".
Como profissional de saúde, João já assistiu ao final de vida de muitas pessoas e, na maior parte dos casos, "aquilo que acontecia era uma obstinação terapêutica, ou seja, uma tentativa de prolongar a vida das pessoas". Por isso, "a ideia de que se andam a matar velhinhos nos hospitais é um bocadinho delirante", desmistifica. Assim como despenalizar a morte assistida não significa que as pessoas passem a "fazer fila para morrer".
"O processo é de tal maneira complexo, envolve a opinião de tanta gente e é tão garantizante no sentido da decisão oficial, que não vamos ter aí as pessoas em fila para morrer", aponta, argumentando que "havendo outro tipo de respostas", obviamente essa situação [de querer a eutanásia] não se vai colocar" à maioria das pessoas. "Mas temos de pensar que pode haver uma minoria, por muito pequena que seja, que nalgum momento o possa solicitar. Temos de garantir um processo de atender essa solicitação e responder dentro daquilo que for legalmente possível e dentro daquilo que for a vontade da pessoa".
Acreditando que um dos projetos de lei seja aprovado, João fala de um dia "importante", a partir do qual "nada será o mesmo".
A Assembleia da República, recorde-se, vota esta quinta-feira cinco projetos de lei sobre a despenalização da eutanásia (PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal). PCP, CDS e Chega são contra, PS e PSD dão liberdade de voto aos deputados. Se algum dos projetos for hoje aprovado, seguir-se-á a discussão na especialidade e votação final. O diploma comum tem como paragem seguinte Belém e caberá a Marcelo Rebelo de Sousa a última palavra. Ou penúltima, se optar por enviar o articulado para o Tribunal Constitucional.