“Estão a enviar-nos para esta guerra como 'kamikazes' numa ação suicida"

Médico do SNS denuncia falta de material de proteção para os profissionais de saúde e acusa o Estado de estar a "poupar" nos testes.

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© Facebook / José Belo Vieira

Natacha Nunes Costa
24/03/2020 09:01 ‧ 24/03/2020 por Natacha Nunes Costa

País

Coronavírus

Nos últimos dias, muitos profissionais de saúde invadiram as redes sociais com pedidos à população para acatarem as ordens das autoridades da saúde e cumprirem o Estado de Emergência, de forma a garantir que Portugal tem o menor número possível de infetados com o novo coronavírus.

No meio destes apelos, os médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde denunciam também a falta de material de proteção para quem está na linha da frente a combater este “inimigo invisível”, tal como apelidou Marcelo Rebelo de Sousa.

Hoje damos a conhecer o testemunho do médico José Belo Vieira, que trabalha num hospital público de Lisboa.

O profissional de saúde começa por dizer, numa publicação feita na sua página de Facebook, que o Estado português “não soube precaver-se e demorou a aceitar as sugestões dos técnicos” e que não quis aprender com a evidência “de quem sabe o que ‘isto’ é”, como é o caso da China, Itália e Espanha.

Mas José Belo Vieira vai mais longe, diz que os números de infetados por Covid-19 em Portugal não estão corretos porque não estão a ser efetuados testes suficientes para diagnosticar todos os casos.

“Os números de casos de Covid-19 que nos últimos dias têm sido publicados no país não são verdadeiros! Só ‘há’ caso se fizerem o teste. Se o Estado ‘poupa’ testes, colocando barreiras burocráticas e de comunicação aos médicos que, no terreno, atendem os doentes suspeitos, claro que ‘não há’ caso. Os números permanecem moldados às estratégias de comunicação e não refletem a realidade! Isto é o que tem acontecido nas últimas semanas”, acusa o médico.

Na longa ‘carta’ que escreveu aos amigos no Facebook, José Belo Vieira garante que “há muito que os profissionais de saúde do SNS se debatem com insuficientes condições para executarem com eficácia o que sabem e querem fazer: prevenir e tratar”. Há até, denuncia, quem tenha de levar de casa “papel higiénico, papel para impressoras, utensílios de trabalho” para conseguir passar receitas, exames, atestados, relatórios.

Contudo, lembra o médico, perante uma pandemia, as falhas de material é ainda mais notória e preocupante.

“Neste momento, não temos máscaras suficientes (e as que temos, rateadas, não protegem por serem inadequadas), solução de desinfeção, batas descartáveis, termómetros adequados, oxímetros, etc, etc. Estamos a improvisar as nossas próprias proteções. Pagamos do nosso bolso placas de acrílico para secretárias, calcorreamos lojas (como loucos à procura do pókemon) à procura de qualquer tipo de máscara, pesquizamos soluções de desinfeção. Alguns lavam as batas em casa (com perigo para os nossos) para garantir que nos dias seguintes temos bata lavada”, descreve José Belo Vieira.

E o que acontece devido a esta falta de material? “Nestas condições, estão a enviar-nos para esta guerra como ‘kamikazes’ numa ação suicida, que dizimará muitos de nós e consequentemente … muitos de vós”, recorda o médico.

Apesar das denúncias, o médico diz que “não é hora de acusações ou discussões inférteis” e que as “contas e balanços deverão ser feitas lá bem para a frente, quando os cidadãos do país estiverem a salvo”.

É sim tempo, para as pessoas permanecerem em casa e fazerem a sua parte. “Respeitem todas as indicações de proteção, desinfeção e vigilância. Protejam e ajudem os mais frágeis, com critério e de forma segura”, recorda.

Antes de terminar, José Belo Vieira faz ainda um apelo: “Se tiverem armazenado produtos de proteção (máscaras, desinfetantes) partilhem com as unidades de saúde. Se souberem onde desencantar batas descartáveis, viseiras, luvas, partilhem connosco. Se conhecerem (empresas, organizações) com meios para obter termómetros digitais sem contacto, oxímetros, partilhem connosco. Entre a nossas equipas, respiramos a inevitabilidade da infeção de muitos de nós. Mas o que nos angustia é que isso contribuirá para nos debilitar e amplificar o número de vós que não conseguiremos salvar… e choraremos duplamente as perdas”.

 

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