"Sento-me a escrever este texto neste dia 20 de março de 2020, data em que se celebra o Dia Internacional da Felicidade. Uma temática que me é muito cara, quer pela investigação científica em felicidade organizacional, quer como psicóloga em exercício há quase 20 anos (muitos 20´s neste texto!), quer como instrutura de yoga e meditação.
Nestes dias de Covid-19, estamos em casa, em teletrabalho, em isolamento, logo, os festejos do dia não serão muitos. Mas será que o iriam ser de qualquer forma? Não é feriado e muitas pessoas nem sabem deste dia: estaremos sintonizados para a felicidade?
Ultimamente, tenho refletido sobre vários dias comemorativos que estão no calendário atual, designadamente em Portugal, já não fazem sentido, pois já não são representativos da realidade que vivemos e do zeitgeist, nem representam a sociedade que queremos ser.
O que uma sociedade decide comemorar diz muito de quem ela é, a que é que dá valor, aquilo em que se deseja tornar nos próximos tempos.
Tenho aproveitado estes dias para escrever artigos científicos, preparar formação, supervisão de teses e a criação de alguns novos produtos para consultoria empresarial.
E, de vez quando, no brainstorming, surgem umas ideias de propostas de como poderão ser os dias realmente transformativos e comemorativos do futuro português.
A primeira data da minha reflexão é o recém comemorado Dia Internacional da Mulher. Eu evito sair de casa, pois este dia é altamente desmotivador para alguém que trabalhou em igualdade de género durante muitos anos. Este é um dia em que é comemorada a conquista de direitos iguais para trabalhadores (e do voto feminino), relembrando diversas tragédias, nomeadamente o incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist, que ocorreu em 1911 e matou 146 trabalhadores: 125 mulheres e 21 homens.
De notar que, por muito que nos custe admitir, a situação da Igualdade de Género não tem melhorado significativamente e tem piorado subtilmente (Havendo dados estatísticos que comprovam isso, porém, a situação é bem mais disfarçada e sublimada). Já não se assiste (talvez quotidianamente) à discriminação aberta: passamos à latência. Mas abertamente em 2017 ainda assistimos a estas afirmações no parlamento europeu:
“Women must earn less than men, because they are weaker, they are smaller, they are less intelligent and they must earn less: that’s all!” afirmou o deputado da Polónia, Janusz Korwin-Mikke.
Vale a pena ver o vídeo, olhar nos olhos deste deputado e observá-lo a afirmar estas atrocidades e, por fim, ver a resposta da eurodeputada espanhola, Iratxe Garcia-Perez.
Aqui, a festejar o Dia Internacional da Felicidade, isolada em quarentena, a trabalhar ativamente e relembro-me das afirmações desta pessoa: Como é possível alguém afirmar tal coisa?
Ora, esta data comemorativa já não representa a felicidade social, pelo contrário, parece estar a proliferar o famoso Cobra-effect. Pelo facto de continuarmos a chamar ao Dia da Mulher – APENAS Mulher, continuamos a imputar de alguma forma apenas a ela a responsabilidade pela luta pela igualdade. Além disso, matam-se flores em vão e fazem-se festejos sem qualquer fundamento só por se ter uma vagina. O sentido de toda a coisa perdeu-se. Festejo ser mulher todos os dias, e são muitos os homens e mulheres que me acompanham nesses felizes festejos. Neste dia, deveria festejar-se as conquistas de direitos por minorias, por exemplo.
Ou então, crie-se o Dia Internacional de Ser Humano, ou o Dia Internacional de Ser Homem, e já se equilibra a balança. Cabritinhos que cegamente, sem saber porquê, trazem oferendas a quem tem um canal vaginal, não, obrigado. Agora, rodriguinhos disfarçados para vender mais produtos e serviços, não. Para isso, já chega o dia de S. Valentim (sobre o qual não vou, de todo, dissertar).
Igualdade e felicidade caminham, na minha visão, de mãos dadas numa sociedade do futuro. São os valores fundamentais, são a base de tudo. A mudança estratégica de posição deve ser internacional, com a criação do Dia Internacional da Igualdade (De género, de oportunidades, de acesso, de raça, de tudo!).
Nestes dias COVID, também ouvimos ocasionais afirmações que revelam o início de processos de categorização: A categorização está na base de todos preconceitos e estereótipos: Categorizamos, a partir do momento que criamos duas categorias- nós e eles. A partir desse fenómeno grupal, tudo acontece. O sexismo, o racismo, a xenofobia, os clubismos e, agora, a categoria ‘estou infectado’ versus a categoria ‘não estou infectado’ e, pior, quando num discurso publico, Donald Trump afirma ‘esse vírus chinês’, como se o vírus tivesse passaporte e nacionalidade.
Categorizamos para tornar a realidade mais fácil de compreender, mas temos cérebros complexamente desenvolvidos para propor mudanças: temos neuroplasticidade. Mudamos todos os dias. O nosso cérebro muda e evolui, fisicamente (de notar que a descoberta da plasticidade neuronal tem poucas décadas e é importante relembrar que isto se aplica a qualquer cérebro normativo humano).
Continuando com as datas que não promovem igualdade nem felicidade, um outro exemplo claro nas comemorações portuguesas é o recém festejado dia do PAI – 19 de março. Enquanto a paternidade tem dia marcado, a maternidade tem dia mutável, porquê? Parece que se comemora a maternidade no primeiro domingo do mês?! Porquê? Não percebo. Imagino variadas explicações, mas não vou aqui levantar o véu delas. Não existe sequer igualdade nestas comemorações.
O facto de o Dia da Mãe ser um dia mutável pode causar que coincida em algum momento com o dia 1º de maio, que também já deveria ser reescrito e repensado. O Dia Internacional do Trabalhador, que foi a adoção em língua portuguesa, é tendencioso e gender-free, ao contrário do Inglês (Internacional Labor Day, apesar de ser conhecido como International Workers day, o que também não implica nenhum género).
‘Dia internacional do Trabalho’ quando na realidade, não queremos festejar o trabalho, mas sim, incentivar às boas praticas na vivência do trabalho humano por todos os envolvidos, certo? Logo, Dia Internacional da Felicidade no Trabalho, é uma nova proposta que aqui deixo.
Estamos a viver um momento em que constatamos que a qualidade de vida no trabalho (QVT) e a felicidade organizacional ainda têm muito caminho para percorrer, apesar de estarmos a assistir a evoluções gigantes. Com o COVID-19 a forçar todos a abraçar as vantagens do trabalho remoto (em regime de teletrabalho ou não), os grandes benefícios do e-learning, o reaprender a gestão do tempo e a conciliação profissional e familiar e as empresas a caminharem para uma gestão sustentável e uma Liderança mindful (Esperemos!).
Possivelmente, também as organizações evoluirão no sentido que já se pensa há tanto tempo: organizações positivas, aprendentes, com propósito, com causas, que não têm o lucro no seu core, mas sim, as suas pessoas e sua evolução e felicidade, fazendo crescer a probabilidade de toda a nossa narrativa de vida humana finalmente mudar. Tudo irá mudar e estaremos cá para abraçar a mudança, agora, desta vez, mais abertos, renovados: Sim, vem aí o ‘Crescimento pós-traumático’, também estudado recentemente pela ciência psicológica. E vamos nos reconstruir como sociedade e como humanos. Vamos reconstruir a nossa narrativa.
As palavras que usamos têm enorme peso, conduzem a sociedade e contam a nossa história e a estória que escolhemos contar. A linguagem estrutura todo o nosso pensamento, apesar de alguns velhos do Restelo, por vezes, ainda aparecerem a dizer que as palavras são irrelevantes. Já não há dúvidas em toda a comunidade científica, porém, ver a TEd Talk da Lera Boroditsky, denominada ‘Como a linguagem molda a nossa forma de pensar’ para relembrar estes temáticas, pode fazer sentido.
Além do repensar das palavras e das designações, há diferentes formas de comemorar datas, sendo uma das mais ‘fortes’ a declaração de um feriado nacional. Parar para refletir e pensar. Oferecer um dia de pausa aos cidadãos para interiorizarem a data. Incentivar a socialização e os festejos sociais. E assim chegamos a um momento difícil deste texto: Porquê é que, sendo um estado laico, ainda temos feriados religiosos? Se optamos por ter um feriado de uma determinada religião, porque não ter de outras? Ou o dia do ateísmo? Do agnosticismo? Onde está a igualdade, novamente? Que sociedade queremos criar a partir daqui?
O objetivo deste artigo não era abordar os feriados, mas sim reflectir sobre que sociedade queremos ser a partir deste Março de 2020. No 21 março foi dia da Árvore (ok, nada de errado com este!) e em breve comemora-se a primavera.
Este ano, Não há feriados no mês de março. No pós-covid, faz sentido criar uma data comemorativa. Nestes dias desafiantes, claro que se celebram os profissionais de saúde, a saúde pública, os investigadores, o legislador que compreende e tenta conduzir uma sociedade no melhor caminho, a família que cuida dos doentes (esquecemo-nos que mais de 80% dos infectados está em casa) e cada ser humano que está nesta planeta neste instante.
Mas, como sairemos das cinzas após o rescaldo? Queremos lembrar os valores da tolerância, da igualdade e da felicidade para que consigamos caminhar a partir daqui num caminho em que ‘somos todos um’…será pedir demais?...“Os sonhadores atuais são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro”(…) “Vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?! (Fernando Pessoa, In ‘Livro do Dessasossego)."