Apesar de nas últimas semanas terem surgido na imprensa e nas redes sociais críticas a um suposto sobredimensionamento da resposta para os números da passagem do vírus SARS-CoV-2 nestes três meses, associando ainda o impacto dessas medidas na economia e nas contas públicas, o consenso médico aponta para uma clara mitigação da mortalidade por oposição a um cenário sem restrições ou confinamento.
"Todas as intervenções estão sujeitas a críticas. Seguramente, houve coisas que foram bem feitas e outras nem por isso. Agora, fazer prognósticos depois do jogo é mais fácil. As medidas que foram tomadas foram aquelas que, perante a informação que tínhamos nesse momento, pareceram as mais adequadas", afirma Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP).
Sublinhando a contenção do "crescimento exponencial que se verificou noutros contextos, como Espanha, Itália, EUA ou Brasil", Ricardo Mexia admite o "impacto importante" na economia e os custos de uma crise na saúde das pessoas. Contudo, o especialista em saúde pública lembra o contexto de incerteza e a necessidade de ações que, segundo um princípio de proporcionalidade, possam responder a uma "escala tão grande" quanto o cenário.
"Se olharmos friamente para os números, não parecem ser muito expressivos. Mas não podemos ignorar que esses são os números perante medidas muito significativas e que, se não tivéssemos implementado essas medidas, seriam seguramente diferentes", nota, acrescentando: "Se não as tivéssemos implementado, poderíamos estar agora a lamentar o desfecho, achamos que a situação teria sido pior".
Por sua vez, o pneumologista Filipe Froes rebate as críticas que têm surgido, apelando a análises com comparações "em igualdade de circunstâncias" e que equiparem a realidade atual do país com o que teria acontecido sem a adoção do confinamento da população.
"Perante um cenário de uma pandemia, o grande desafio é liderar e decidir na incerteza. E perante a incerteza, o imprevisto e o desconhecido, temos de estar sempre preparados para o que pode acontecer. Nessa perspetiva, é um dever das autoridades e dos profissionais prepararem o Serviço Nacional de Saúde e o país para qualquer eventualidade que possa pôr em causa a saúde pública e a saúde individual de Portugal", refere.
De acordo com o membro da 'task force' da Direção-Geral da Saúde, a exigência colocada pela propagação do novo coronavírus e os efeitos que já eram visíveis noutros países reforçavam a importância de conseguir a melhor preparação possível e a defesa da confiança das pessoas nas autoridades sanitárias.
"Era como nos prepararmos para um sismo e só nos prepararmos para os primeiros dois ou três graus da escala de Richter, convencendo-nos de que estávamos preparados. E isso não é preparação, isso é ilusão", explica Filipe Froes, recuperando uma velha máxima: "Temos de nos preparar para o pior e esperar o melhor".
Já o virologista Pedro Simas assinala que "nenhum país no mundo estava preparado" para a pandemia de covid-19 e que o "isolamento funcionou" sem, todavia, resolver o problema. Para o investigador do Instituto de Medicina Molecular, a estratégia adotada permitiu a Portugal "ganhar algum tempo" e evitar uma vaga demasiado grande.
"Se não tivéssemos feito nada, a gravidade era igual à de outros países, porque o vírus é igual e as sociedades são mais ou menos iguais. Em todos os países em que não houve restrições, ou estas foram muito tardias, houve muitos casos e muitas mortes. São factos", sintetiza, realçando a impossibilidade de controlar "um fenómeno natural" como este novo coronavírus e a dificuldade colocada aos decisores políticos por uma "sociedade muito complexa".
Porém, Pedro Simas não esconde que está "apreensivo" com o futuro e alerta que "o potencial pandémico é maior agora do que há três meses", uma vez que não existe apenas um foco localizado de infeção e o vírus já se espalhou por todo o mundo. O virologista observa, por isso, que "o medo não é solução" e que é necessário avançar na construção da imunidade de grupo sem expor as pessoas mais vulneráveis ao SARS-CoV-2.
"As pandemias só se resolvem quando houver imunidade de grupo e isso pode ser construído de duas formas: ou com vacina ou com infeção natural. Não temos vacina, podemos jogar de forma inteligente com essa infeção natural para ir construindo a imunidade aos poucos, mas temos de proteger os grupos de risco, porque, senão, há uma calamidade. Portanto, é preciso ter medidas inteligentes", conclui.
Em Portugal, morreram 1.396 pessoas das 32.203 confirmadas como infetadas, e há 19.186 casos recuperados, de acordo com a Direção-Geral da Saúde.
A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou mais de 364 mil mortos e infetou mais de 5,9 milhões de pessoas em 196 países e territórios. Mais de 2,4 milhões de doentes foram considerados curados.
Portugal entrou no dia 03 de maio em situação de calamidade devido à pandemia, que sexta-feira foi prolongado até 14 de junho, depois de três períodos consecutivos em estado de emergência desde 19 de março.
Esta fase de combate à covid-19 prevê o confinamento obrigatório apenas para pessoas doentes e em vigilância ativa e o uso obrigatório de máscaras ou viseiras em transportes públicos, serviços de atendimento ao público, escolas e estabelecimentos comerciais.
O Governo aprovou sexta-feira novas medidas para entrarem em vigor em 01 junho, com destaque para a abertura dos centros comerciais (à exceção da Área Metropolitana de Lisboa, que continuarão encerrados até, pelo menos, 04 de junho), dos ginásios ou das salas de espetáculos. Estas medidas juntam-se às que entraram em vigor no dia 18 de maio, entre as quais a retoma das visitas aos utentes dos lares de idosos, a reabertura das creches, aulas presenciais para os 11.º e 12.º anos e a reabertura de algumas lojas de rua, cafés, restaurantes, museus, monumentos e palácios.
No sábado regressaram as cerimónias religiosas comunitárias enquanto a abertura da época balnear acontecerá em 06 de junho.