Termina esta quarta-feira o prazo alargado da fase de candidaturas da 8.ª edição do Prémio Maria José Nogueira Pinto, iniciativa que tem como presidente do júri Maria de Belém Roseira. A antiga candidata presidencial pelo Partido Socialista (PS), em entrevista ao Notícias ao Minuto, falou sobre a importância da responsabilidade social num contexto de pandemia, mas não só - “O Estado não chega a todo o lado e que a sociedade tem de se mobilizar porque somos todos interdependentes”.
A jurista aponta a pobreza como "o principal problema" de Portugal, sublinhando a desconsideração para com os efeitos deste fenómeno. "As pessoas ignoram o contexto onde as pessoas nascem e vivem, que hoje determina a qualidade da nossa vida".
A antiga líder do PS, que foi ministra da Saúde e para a Igualdade, e presidente da Assembleia-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), comenta também a articulação entre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e órgão da Saúde das Nações Unidas, durante a pandemia, numa relação com "hesitações naturais". "Só quem não tem problemas graves para gerir é que acha que poderia ter corrido tudo sobre rodas", disse, deixando críticas à posição que tem sido assumida pelos Estados Unidos. "Não se pode é ter a maior potência mundial com um desempenho desta natureza, é uma vergonha".
Depois de vários anos da política, Maria de Belém está agora completamente centrada na intervenção cívica, a forma que encontrou de canalizar a sua vasta experiência para o exercício da cidadania.
Prémio serve para ajudar a que projetos que são importantes possam ser concretizados e possam gerar mudanças positivas nessas comunidadesO Prémio Maria José Nogueira Pinto vai entrar agora na 8.ª edição. Que balanço faz do trabalho desenvolvido até ao momento?
Penso que o número de candidaturas que nós temos recebido anualmente - este ano é um ano atípico - foi sempre subindo, o que significa que as instituições apreciam este prémio e consideram muito o prestígio de o receber. Isso é muito importante, não só tendo em atenção o facto de estarmos a homenagear uma mulher grande da República Portuguesa como também por podermos ajudar organizações que fazem a diferença no terreno. Acho que isso é extraordinariamente importante.
A decisão de alargar o prazo de inscrição aconteceu porque...
Porque nós consideramos que era muito difícil cumprir os prazos normais. As organizações estão muito sobrecarregadas com o cumprimento das medidas de confinamento e de todo o conjunto de regras que agora têm que cumprir. É certo que a própria situação excecional pode levar a isso, pode levar a essa necessidade de surgimento de projetos específicos - no que se refere à contenção da Covid-19 ou a apoios especiais para as pessoas que foram mais atingidas pela pandemia -, mas o facto é que os quadros e as pessoas de cada instituição não deixam de estar mais sobrecarregadas. Achámos que alargar o prazo era uma questão de bom senso.
Teve de haver um esforço de adaptação à realidade.
Teve de haver um esforço de adaptação e uma perceção grande de que estas coisas significam uma grande sobrecarga nas instituições que se debatem com tanta falta de meios. Aliás, o prémio surge muito por isso. Para ajudar a que projetos que são importantes possam ser concretizados e possam gerar mudanças positivas nessas comunidades. Claro que se forem projetos replicados a nível nacional, melhor. Nós temos tido essa preocupação, não só porque é isso que consta no regulamento, mas porque achamos que quando um prémio é atribuído a um projeto muito criativo, uma das vantagens é, por um lado, atribuir mérito a quem teve a ideia e conseguiu concretizá-la, mas também permitir que outros beneficiem dessa criatividade.
Amplificar a ideia?
Exatamente. Amplificar a ação positiva de um projeto. Quando nós nos lembramos, por exemplo, num dos prémios que já atribuímos, de um alfabeto que permite o contacto entre pessoas que não têm capacidades para dominar a escrita, é evidente que isto promove a inclusão. E nós precisamos de projetos que ajudem à inclusão em todo o país, não é só naquela zona do país, do nordeste transmontano, onde o projeto nasceu.
Qual é a importância das iniciativas de solidariedade privadas, no contexto da pandemia, em Portugal?
Sabemos, e verificamos, que nesta pandemia o Estado não chega a todo o lado e que a sociedade tem que se mobilizar porque somos todos interdependentes. Portanto, nesta altura de crise, percebemos que uma comunidade faz-se também através da sua sociedade civil. Nós somos todos comunidade, estamos todos relacionados, e portanto é bom que não sejamos indiferentes àquilo que acontece ao nosso lado porque o que acontece ao nosso lado tem impacto sobre nós e sobre as nossas vidas.
Como somos um país com salários médios/baixos, as pessoas que caem no desemprego têm ainda níveis piores de pobreza, é difícil sair delaA dra. Maria de Belém está associada a outras causas sociais, é embaixadora, por exemplo, do programa abem [fundo de emergência para ajudar quem não consegue comprar medicamentos]. À luz da sua experiência nesta área, onde acredita estarem as principais ausências do Estado, nesta crise pandémica?
Penso que o principal problema do país é a pobreza (não somos os únicos, se formos ver os relatórios europeus também há pobreza nos países mais ricos). O problema aqui, em Portugal, é que nós temos bastante pobreza e como somos um país com salários médios/baixos, as pessoas que caem no desemprego têm ainda níveis piores de pobreza, é difícil sair dela. Sabemos hoje que a principal determinante do estado de saúde de uma população é, também, o seu estado de pobreza.
A pobreza afeta a satisfação das nossas necessidades básicas primárias, como o teto e a comida. O trabalho, também - mas não um trabalho qualquer, um trabalho que perspetive alguma segurança, porque um projeto de vida não é um projeto que se constrói só para amanhã, é para vida inteira: o número de filhos que quero ter, a vida que lhes quero proporcionar... A pobreza afeta tudo, não só a saúde física - quem é pobre tem uma alimentação com menos qualidade, não tem tantos momentos de lazer, consome muito tempo em transportes para a deslocação para o trabalho, portanto, um conjunto de coisas negativas que se somam e que pressionam muito mais aquelas pessoas - como a saúde mental.
E recorde-se que, quando aconteceu a crise financeira, a receita que foi aplicada aos países com mais dificuldades não ajudou a que as pessoas saíssem da pobreza. Fez, sim, com que as pessoas pobres ficassem ainda mais pobres. Isto não é a forma civilizada de atuar.
O que quer dizer?
Quando os programas de ajustamento financeiro implicavam diminuição das prestações sociais, cortes nas despesas públicas - que tiveram um impacto muito grande quer na educação quer na saúde quer na própria Segurança Social -, como é evidente, as pessoas que precisavam de mais apoio ficaram pior. É verdade ou não? Isto só passa pela cabeça de algumas pessoas que não têm problemas na vida e que não têm capacidade para perceber o que se passa. E depois há aqui outro fator, bastante hipócrita, que é o pensamento de que as pessoas são pobres porque são preguiçosas e porque não querem sair da pobreza. Que quem é pobre tem a culpa de ser pobre.
As pessoas ignoram o contexto onde as pessoas nascem e vivem, que hoje determina a qualidade da nossa vida, como nós sabemos. Pessoas que nascem num ambiente mais evoluído, mais saudável, mais culto, têm muito mais oportunidades que as outras. E ignoram que muitas das pessoas que estão bem colocadas na sociedade, assim o estão porque têm uma boa rede de contactos. Os pobres normalmente não têm essa rede, não têm as mesmas oportunidades. Mesmo quando conseguem sair da pobreza e conseguem distinguir-se pelas suas qualidades, de inteligência, de trabalho, depois não têm as mesmas oportunidades que os que estão bem relacionados. As pessoas que não se esqueçam nunca disso. Por isso é que nós devemos estar atentos, para que a sociedade seja mais justa. Uma sociedade civil que tenha capacidade crítica - de crítica positiva, aquela faz que avançar o país e que melhora as instituições e que melhora a vida em comunidade - é muito importante.
O SNS é fundamental, é a instituição mais estimada dos portugueses e não é por acaso. O SNS é o que nos vale
Ainda relativamente ao novo coronavírus, acredita que o SNS esteve à altura deste inesperado desafio?
O SNS é fundamental, é a instituição mais estimada dos portugueses e não é por acaso. O SNS é o que nos vale. É evidente que tem estado à altura por causa do esforço, eu diria, hercúleo dos seus profissionais. Não nos podemos esquecer das pessoas que há meses não abraçam os seus filhos. Agora precisamos que o SNS, para além da Covid, faça o resto e não abandone a atividade programada, para não assistirmos ao não diagnóstico de doenças que devem ser tratadas ou ao agravamento de doenças que já foram diagnosticadas e que devem ser seguidas.
Todos precisamos de apoiar o SNS, de cumprir as regras que estão definidas em relação à Covid-19, porque é a melhor maneira de nós reconhecermos o trabalho dos profissionais de saúde. Se não nos comportarmos de maneira a diminuir a transmissão da infeção, vamos pressionar o SNS e esgotar os nossos recursos humanos. Portanto, como cidadãos também temos que nos comportar à altura.
O SNS foi sempre funcionando em articulação com a Organização Mundial de Saúde (OMS)...
Nós temos uma grande tradição de articulação com a OMS, mas estamos a todos a viver uma situação nova, portanto houve hesitações, o que é natural. Só quem não tem problemas graves para gerir é que acha que poderia ter corrido tudo sobre rodas. É evidente que todos queremos sempre melhor, há medidas que deviam ter sido adotadas mais cedo. Agora o que é importante é que afinemos caminhos e que cada um cumpra o seu papel.
Aqueles que culpam a OMS de tudo estão a tentar libertar-se de culpas A pandemia expôs de forma decisiva a veia nacionalista e populista de alguns governos internacionais, que dirigem ataques constantes ao órgão da Saúde das Nações Unidas. Poderá a OMS ter falhado de alguma forma na comunicação que fez ao longo de todo o processo?
Essa situação é uma situação que decorre da interdependência global do mundo de hoje. Aqueles que culpam a OMS de tudo estão a tentar libertar-se de culpas. Nós podemos olhar, por exemplo, para os Estados Unidos. Porque é que os Estados Unidos têm este desempenho relativamente à pandemia? Não têm um serviço de saúde universal, portanto há muita gente que não pode tratar-se. E ao não receber tratamento são bombas transmissoras da doença. Fica aqui claramente demonstrado para todos aqueles que querem repensar o modelo social europeu que, independentemente das falhas que aconteceram, os sistemas do modelo social da Europa funcionaram muito melhor que os dos Estados Unidos.
Uma situação que é análoga à do Brasil, não é?
Com certeza, com certeza. O Brasil é mais pobre e é menos desenvolvido. O que não se pode é ter a maior potência mundial com um desempenho desta natureza, é uma vergonha. Porquê? Porque não só não têm aquilo que é básico - garantir que qualquer pessoa atingida pela doença tem acesso a tratamento adequado - como depois tem uma liderança que é infantil. “A culpa não é minha, é do outro menino”. Parecem as crianças. Então faz-se um comício onde se diz para não usar máscaras e põe milhares de pessoas em contacto, sem a proximidade adequada, sabendo nós que a própria respiração transmite a doença? Há falta de liderança e a liderança que houve foi desadequada e não foi por falta de conselho especializado. Os Estados Unidos têm pessoas altamente preparadas para emitir as orientações adequadas numa situação destas.
Está-se a demonstrar total incapacidade e impreparação das lideranças para defender a vida dos cidadãos, que é o bem maior É uma liderança com agulha direcionada para outros aspetos que não a saúde pública?
Tem a agulha direcionada para os objetivos eleitorais e julgaram que isto era fácil. Mas, como é evidente, não é fácil e está-se a virar o feitiço contra o feiticeiro. Está-se a demonstrar total incapacidade e impreparação das lideranças para defender a vida dos cidadãos, que é o bem maior. Ao mesmo tempo, comprometem a economia porque estas duas coisas têm que andar lado a lado. Não podemos destruir a economia, porque sem economia também morremos, não temos acesso aos bens essenciais, mas temos que ter em atenção qual é a abertura necessária para garantir a economia sem pôr em causa a vida das pessoas.
É possível falar um pouco sobre as presidenciais, que se estão a aproximar?
Quando chegar a altura que considere adequada falarei, mas ainda não é essa altura.
A dra. Maria de Belém foi das personalidades políticas em 2016, juntamente com Marisa Matias, a dar uma novo empurrão à porta entreaberta por Maria de Lourdes Pintasilgo, em 1986, como primeira mulher a candidatar-se à presidência da República - facto que foi descrito, na altura, como “um momento de viragem”. Poderá uma eventual candidatura de Ana Gomes vir a estalar esse telhado de vidro na democracia portuguesa?
Como disse, não vou pronunciar-me sobre isso. Eu fiz o que achei que devia fazer, na altura. Também o fiz porque acho que as mulheres devem avançar muito neste contexto, mas os ataques de que fui alvo mostram que o telhado de vidro existe e não vale dizermos que não existe. Eu sempre disse que a questão da Igualdade, para mulheres e homens, é uma questão de direitos humanos e enquanto as mulheres e homens não se juntarem para o defender não vamos muito longe. Mas não digo mais do que isto.
Gostaria muito é que a Covid-19 e o seu impacto em termos de emprego não significasse um retrocesso para as mulheres Como antiga ministra para a Igualdade que prioridades apontaria para o país?
O que eu gostaria muito é que a Covid-19 e o seu impacto em termos de emprego não significasse um retrocesso relativamente aos objetivos que existem, no emprego, na remuneração e nas oportunidades das mulheres, para elas terem a sua vida em função das suas escolhas. É esse o meu desejo. Nós sabemos que quando se reduz - estamos a ouvir falar em subidas extraordinárias no desemprego -, nessas circunstâncias, são normalmente as mulheres que ficam outra vez para trás. Portanto, eu desejaria que houvessem políticas públicas que o impedissem e que evitassem esse efeito recorrente e sistemático.
A política é uma pasta completamente encerrada para si?
Com certeza. Eu considero que devo fazer aquilo que sempre fiz, que foi intervenção cívica, que é uma forma, também, de fazer política. A política são os assuntos da pólis [cidade-estado]. Uma coisa é ter lugar na estrutura política, outra coisa é exercer a cidadania, que tem sempre impacto na pólis. É isso que eu tenciono fazer, é aquilo que eu faço e faço com muito interesse. Porquê? Porque tive tantos anos de vida pública, aprendi tanto, esforcei-me tanto, fiz tanta coisa, que realmente acho que todo esse capital de experiência me deve levar a partilhar aquilo que deve ser o caminho com as pessoas que me quiserem ouvir e acompanhar.
Sente que é mais gratificante?
É muito gratificante, porque as pessoas reconhecem esse esforço. Ajuda-se muita gente que precisa de ajuda, gente anónima. E faz-se isso de uma maneira que é, digamos, um investimento que tem retorno do ponto de vista social. Sente-se que se está a fazer algo que faz bem às pessoas, que as liberta de algumas preocupações, que as ajuda a viver com mais dignidade, que as ajuda a olhar para o futuro dos seus filhos de uma maneira mais risonha. Ou que as ajuda, também, a absorver ensinamentos no sentido da sua própria capacitação enquanto pessoas, para poderem viver tendo em atenção as ameaças que hoje existem e cujo controlo necessita do contributo de todos. Seja para capacitar as pessoas no domínio ambiental, que é muito importante, seja para ajudar as pessoas a terem acesso àquilo que são bens essenciais ou fundamentais, ou identificar projetos que, às vezes, com um pequeno empurrão, podem trazer a felicidade, segurança e dignidade a muita gente. Acho que não há melhor do que isso.