'Caronte à espera' ou a busca de um sentido para a vida

'Caronte à espera', primeiro romance da escritora portuguesa Cláudia Andrade, desenrola-se a partir da história de um homem que se quer suicidar, tema recorrente na autora, que gosta de "pôr em causa o sentido objetivo da vida".

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Lusa
19/07/2020 11:20 ‧ 19/07/2020 por Lusa

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Artur é um homem reformado e enfastiado que sente ter perdido o interesse na vida e decide suicidar-se, até que a descoberta de um rosto desconhecido numa fotografia do casamento semeia dúvidas e inquietações no seu espírito, levando-o a adiar a sua intenção de pôr fim à vida, para descobrir quem é aquele homem.

O tema da morte e do suicídio já tinha marcado forte presença no livro de contos que publicou anteriormente, também na Elsinore, "Quartos de final e outras histórias", obra de estreia da autora.

"Eu diria que o eixo, a minha mania literária por assim dizer, será pôr em causa o sentido objetivo da vida. E o suicida é aquele que por algum motivo passa a recusar-se a jogar o jogo (obrigatório para todos nós, viventes) de inventar sentidos para a vida. Daí o tema do suicídio", disse, em entrevista à Lusa.

Cláudia Andrade acredita, como "alguém disse", que "só existem três temas: a vida, o amor e a morte", esta última, em particular, "é um grande tema para toda a gente, seja atraído ou repelido por ele", porque inspira sentimentos, como "terror, alívio, curiosidade, obsessão, humor ou temor religioso".

Mas nas suas histórias trata o tema da morte com humor negro e alguma comicidade, porque "a capacidade de aceder ao humor frente à adversidade, ou mesmo ao término da vida, é o que anda mais perto de uma centelha de sagrado".

Aludindo a um episódio da sua vida, Cláudia Andrade recorda que quando o avô estava a morrer no hospital, alguém "fez uma tentativa algo absurda de o consolar negando o óbvio" e "disse: 'Vá, coragem! Não tarda nada está fora daqui'. 'Eu sei', disse ele a sibilar, todo cheio de tubos, 'O mais tardar para a semana estou no Alto de São João (cemitério)'".

Apesar de serem recorrentes na sua escrita temas como a fragilidade do corpo, a morte, a velhice, a solidão, o desapego pela vida, a monotonia das relações, a dialética interior, a pulsão sexual, ou o peso do passado, Cláudia Andrade afirma que não escolhe os temas, são os temas que a escolhem a ela, "ao imporem-se como interessantes".

"Qualquer tema é bem vindo, se funcionar e me galvanizar. Mas gosto particularmente de situações em que a realidade se demonstra mais complexa do que o estereótipo, em que a razão vence a alucinação coletiva do lugar comum", afirma.

A presença destes temas em 'Caronte à espera' relaciona-se "com o tal jogo de atribuir à existência sentido, ou melhor, sentidos, enquadramentos que se vão transformando ou mesmo substituindo ao longo da vida, e que vão conferindo ao indivíduo a noção de propósito que ele precisa para prosseguir vivo".

"De vez em quando as minhas personagens olham em volta e não destrinçam qualquer esperança de um enquadramento de vida satisfatório. Isso é um tremendo problema, que eu considero muito literário", acrescenta.

O título do romance alude ao barqueiro da mitologia grega que carrega os mortos e, no livro, Caronte está à espera de Artur -- "e de todos nós", segundo a autora.

Na verdade, a viagem de Artur à descoberta do homem misterioso na fotografia, acaba por ser uma viagem interior, ao conhecimento de si mesmo, uma visita aos seus "fantasmas".

Em 'Caronte à espera' há uma figura misteriosa, Ivan, uma espécie de mentor, de confidente, de Artur, cuja existência real não é percetível ao longo do romance.

Sobre essa personagem, Cláudia Andrade diz ter terminado o livro sem se decidir quanto a esse facto: "Então, Ivan existe ou é apenas uma construção onírica, consoante o leitor somou mais pistas numa, ou noutra direção".

Quanto ao homem do retrato que Artur perseguia, a autora explica que mais não é do que "um falso subterfúgio, um gambuzino a caçar para entreter a existência".

"'A posteriori', vejo-o imbuído de significado. Acredito que grande parte da vida é feita exatamente da caça ao gambuzino", afirma.

Com uma escrita muito particular, entre o sombrio e o cómico, carregada de imagens e de riqueza vocabular, Cláudia Andrade diz que construiu uma "linguagem pessoal ao longo do tempo" (escreve com "empenho" desde a infância), ao "seguir as próprias vísceras, pelo prazer de escrever".

Atualmente está já a trabalhar num outro romance, "que se centra num indivíduo nómada e algo insano".

"De vez em quando afasto-me dele para ganhar perspetiva e, durante esse afastamento, dedico-me ao conto".

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