A Covid-19 pode manifestar-se através de sintomas oculares? A resposta é sim. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dos 56.000 casos confirmados na China, 0,8% desenvolveu conjuntivites.
Rufino Silva, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e candidato à presidência da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, defende, com efeito, que "qualquer doente com conjuntivite deve ser olhado como podendo" ter sido infetado pelo novo coronavírus.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o também chefe da Secção de Retina Médica e Neuroftalmologia do Serviço de Oftalmologia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra abordou os impactos do teletrabalho na saúde ocular, deixando recomendações que visam estimular o conforto visual.
Atual vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, o médico de Coimbra candidata-se agora à presidência do órgão apresentando uma lista com o lema 'Construir o Futuro, Agora'. É seguro ir aos hospitais, mesmo no quadro que temos atualmente de recrudescimento do número de casos. Os doentes não devem evitar os tratamentos só porque têm medo de serem contagiados
Desde que a pandemia de Covid-19 chegou a Portugal, houve doentes com patologias oftalmológicas que suspenderam os tratamentos?
Sim. Essa situação começou a acontecer em março, altura em que havia um desconhecimento da patologia [provocada pelo SARS-CoV-2] e, como consequência do confinamento, os serviços hospitalares ficaram reduzidos à urgência. Durante aqueles três meses, muitos tratamentos ficaram suspensos, mas não propriamente por iniciativa do doente.
Depois disso, assistiu-se a uma reorganização dos serviços no que se refere a espaços de distanciamento, organização de circuitos e, neste momento, é seguro ir aos hospitais, mesmo no quadro que temos atualmente de recrudescimento do número de casos. Os doentes não devem evitar os tratamentos só porque têm medo de serem contagiados. É muito menos provável serem infetados nos hospitais pelas medidas que estão a ser tomadas. Aliás, as taxas de profissionais de saúde infetados não são superiores às da população em geral.
A DMI e a retinopatia diabética são as duas doenças que, na vida adulta, provocam mais perda de visão e mais cegueira em Portugal
Quais as consequências da suspensão de tratamentos? Há casos em que a falta de tratamento pode levar à cegueira?
A cegueira pode acontecer sobretudo no caso das doenças agudas. Mas, nestas, perante os sintomas como a perda de visão súbita, as pessoas recorrem à urgência. Falamos do caso do descolamento da retina ou do glaucoma agudo.
Depois há doenças crónicas que podem passar despercebidas e as pessoas não recorrem aos hospitais. Quando a doença se manifesta, já é tarde. Esse é o caso, por exemplo, da Degenerescência Macular da Idade (DMI).
Pessoas com mais de 55 anos têm maior probabilidade de terem a doença e quando notam uma distorção no campo da visão, devem consultar o oftalmologista em vez de ficarem em casa a ver se passa. Este é um sinal grave e quando a DMI é tratada logo no início, nas primeiras semanas, consegue-se conservar uma visão de leitura e de condução. Mas quando tratamos passados dois meses, nem a visão de leitura seguramos. Nestes casos, estabeleceu-se já um caráter mais avançado e irreversível.
A DMI e a retinopatia diabética são as duas doenças que, na vida adulta, provocam mais perda de visão e mais cegueira em Portugal.
Quanto à DMI, sendo uma das doenças que provoca maior perda de visão, qual o tratamento? Tem vindo a evoluir nos últimos anos?
O tratamento com injeções começou em 2005 e é dos melhores. Entretanto surgiu um terceiro medicamento aprovado e a parte boa é que permite preservar a visão com que a pessoa inicia o tratamento em cerca de 95% dos casos. Se o doente ficar três meses em casa, chega com uma visão de 1/10, o que nem permite ler, nem escrever. Mas se a pessoa consultar o oftalmologista ainda com visão de condução, tem a mesma probabilidade de 95% de a conservar.
É importante realçar que o tratamento não se faz só com uma injeção. Há casos em que são necessárias sete ou oito; é um tratamento continuado. Quando é interrompido, o doente perde visão que depois não recupera.
Teletrabalho tem impacto sobretudo no conforto [ocular]
Perante a evolução da crise pandémica, várias foram as empresas que se viram obrigadas a adotar o regime de teletrabalho. Esta forma de trabalho pode ter impacto na saúde ocular?
Tem impacto sobretudo no conforto [ocular]. Dizer que a pessoa vai contrair uma doença por estar a trabalhar no computador não corresponde à realidade. Não vai desenvolver nenhuma doença da córnea, ou da retina. O que vai ter é um grande desconforto se não estiver a fazer tudo adequadamente.
Há três aspetos que o trabalhador deve ter em consideração. O primeiro é a regra clássica do 20-20-20. Por cada 20 minutos de trabalho, a pessoa deve olhar 20 segundos para o horizonte. Outro aspeto que é esquecido diz respeito ao facto de a visão ter de estar bem corrigida para ver ao perto. Todos nós perdemos a capacidade de ver ao perto progressivamente a partir dos 40/45 anos. Quem não tiver a visão corrigida vai estar a trabalhar em esforço e vai ter os mesmos sintomas que têm as pessoas que não fazem esta técnica do 20-20-20 e que estão todo o dia a olhar fixamente para o computador, nomeadamente dores de cabeça, olho mais seco e lacrimejo.
O terceiro aspeto está relacionado com as pessoas que até têm óculos, mas que não estão adequados para o trabalho.
Qualquer doente que apareça com conjuntivite deve ser olhado como podendo ter Covid-19
Há algum sintoma de Covid-19 que se manifeste a nível ocular e tenha sido documentado pelas sociedades científicas?
Sim, as conjuntivites, embora sejam raras. O primeiro alerta mundial [para o novo coronavírus] foi dado, aliás, por um oftalmologista [Li Wenliang], na China, que depois morreu. Mas a percentagem de doentes que manifesta este sintoma é baixa, inferior a 1%. Ainda assim, qualquer doente que apareça com conjuntivite deve ser olhado como podendo ter Covid-19.
Os hospitais tiveram de se adaptar, mas há um conceito que já tínhamos de proteção em relação ao vírus. Por vezes, temos surtos de adenovirus que provoca conjuntivites muito exuberantes, com lacrimejo intenso, edema da pálpebra e olho vermelho e a transmissão é também feita pelas mãos e pelas secreções.
Sendo os olhos uma ‘porta de entrada’ do novo coronavírus, as pessoas que usam lentes de contacto devem continuar a fazê-lo?
Se tiverem cuidados de higiene, não há problema. E falamos de cuidados como não dormir com as lentes e as mensais devem ser colocadas no produto próprio. Penso que os cuidados diários são suficientes.
Enquanto investigador, integra uma equipa que foi recentemente galardoada com um prémio europeu. Em que se traduz esta linha de investigação?
A Sociedade Europeia da Retina, EURETINA, é a maior organização mundial de especialistas em retina e tem todos os anos tem um ‘research project’. Nós apresentámos um projeto de investigação, em março fomos selecionados para avançar para a segunda fase e em junho foram anunciados os dois projetos ganhadores. Nós ficámos em primeiro lugar, entre centenas de concorrentes.
Este é um projeto de investigação que temos em conjunto com a escola médica de Harvard, em que a investigadora principal é a Dra. Inês Laíns, e no qual abordamos a Degenerescência Macular da Idade (DMI). Em relação a esta doença, há coisas que não sabemos e que queremos perceber, como o motivo pelo qual as pessoas têm a doença e porque é que esta se manifesta de uma forma numas pessoas e de outra noutras.
Houve um avanço grande na genética, mas há vários genes e uns protegem e outros promovem a doença, sendo que isso não nos ajuda a perceber os mecanismos da doença. E este projeto distingue-se porque vai ‘buscar os produtos finais’. Ou seja, ao analisarmos a metabolómica [estudo científico que visa identificar e quantificar o conjunto de metabólitos], investigamos as pequenas moléculas que são o fim das cadeias metabólicas do organismo. Essas moléculas são o resultado dos genes, da formação de proteínas, da formação de outras moléculas e traduzem também a influência do ambiente. Tudo isto pode ser analisado através da metabolómica. Ao mesmo tempo, estamos a relacionar estas moléculas com a genética e isto é completamente inovador.
Enquanto candidato à presidência da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, o que pretende implementar num eventual mandato?
Estamos a viver momentos de exceção que exigem capacidade de adaptação, resiliência e a necessidade de transformar a inovação numa oportunidade. Temos uma equipa forte para a comissão central que apresenta os oftalmologistas mais diferenciados no país.
Felizmente, a oftalmologia portuguesa tem um nível científico muito bom e compete com o que se faz na Europa, na Ásia e nos EUA. E os oftalmologista desta equipa são pessoas de alto nível clínico e científico, do setor público e do privado, ligados à universidade e à atividade clínica, provenientes do norte a sul do país e das ilhas. É uma equipa forte, dinâmica e que é capaz de incutir uma imagem de estabilidade e de segurança, o que é muito importante nestes tempos.
Durante este mandato em que eu estou como vice-presidente, a Sociedade teve uma atitude excecional porque, mesmo antes do confinamento, pôs cá fora as normas pelas quais os oftalmologistas deveriam trabalhar de forma a preservar a sua segurança e a segurança dos doentes.
Num novo mandato, esta equipa pretende inovar ao nível da formação contínua dos membros da sociedade. Temos conteúdos próprios e prevemos disponibilizar conteúdos científicos online numa biblioteca digital, à distância de um clique. Para colmatar a eventual falta de algum conteúdo, serão feitas parcerias com plataformas internacionais.