Henrique Veiga-Fernandes tornou-se, nos últimos tempos, num dos rostos mais reconhecidos pelos portugueses no estudo (e explicação) da imunidade conferida pelo novo coronavírus. Contudo, antes da pandemia, já o investigador em imunologia, que é também codiretor da Champalimaud Research, fazia sucesso entre os seus pares e era reconhecido internacionalmente pelo estudo que mostrou as ligações entre o Sistema Nervoso e o Sistema Imunológico, nunca anteriormente demonstradas.
O estudo, conduzido pelo cientista a partir do Centro Champalimaud para o Desconhecido, foi premiado, recentemente, pela Fundação Chan Zuckerberg (mulher do fundador do Facebook e pediatra de renome).
Antes, já a mesma investigação, que já está a mudar a luta a contra várias doenças, tinha sido distinguida com 1,5 milhões de euros. Henrique Veiga-Fernandes tornava-se assim no primeiro português a receber o prémio Allen Distinguished Investigator.
Entretanto, surgiu a pandemia e os esforços estão, essencialmente, concentrados na luta contra o novo coronavírus. Mas também nesta área o imunologista da Fundação Champalimaud já deu cartas.
O seu Laboratório de Imunofisiologia é o responsável pelos primeiros levantamentos serológicos no país que demonstraram que "havia 10 vezes mais pessoas infetadas do que aquilo que tinha sido diagnosticado".
Numa conversa por telefone com o Notícias ao Minuto, Henrique Veiga-Fernandes explicou tudo sobre a imunidade que uma infeção por coronavírus nos confere e como devemos preparar o nosso corpo para um eventual diagnóstico positivo.
Houve ainda tempo para refletir sobre o que falhou na preparação para a segunda vaga da pandemia, em Portugal (e não só) e para deixar um apelo: "A imunidade existe e não só existe como é eficaz [...], mas não é por estarmos imunes que devemos alterar os nossos comportamentos".
Vamos começar por aquela pergunta à qual todos querem ouvir a resposta. A imunidade à Covid-19 é ou não real? É que várias pessoas voltaram a testar positivo, depois de terem sido dadas como curadas, e a OMS tem dado respostas dúbias quanto a este tema…
O que sabemos atualmente é que, após uma infeção pelo novo coronavírus, há de facto estabelecimento de uma resposta imunitária muito forte. Esta resposta envolve os dois grandes braços do sistema imunitário a que nós chamamos inato e adaptativo. O sistema inato é ativado quando há uma infeção. Não vai ter uma resposta direcionada especificamente ao coronavírus, será semelhante para o coronavírus como para o vírus da gripe ou para qualquer outro vírus e é muito eficiente. Já o sistema adaptativo, que é mediado pelos glóbulos brancos, tem, essencialmente, duas funções: Produzir anticorpos, através dos linfócitos brancos B, e dar imunidade celular, que responde às infeções, através dos linfócitos T.
Estas duas componentes são absolutamente críticas no contexto de todas as infeções virais porque os anticorpos vão bloquear a capacidade infeciosa do vírus para infetar novas células no nosso organismo. Os linfócitos e torócitos vão identificar as células que estão infetadas, destroem as células, matam essas células e ao fazerem isso o vírus não tem células para poder replicar e sem poder replicar não há propagação da doença a outras células do nosso organismo. Tudo isto que eu acabei de descrever acontece na infeção por SARS-CoV-2, ou seja, em indivíduos que desenvolvem Covid-19, sejam eles assintomáticos ou sintomáticos. Nos indivíduos sintomáticos toda esta resposta é mais marcada, ou seja, há uma resposta imunitária mais marcada, com níveis de anticorpos mais elevados.
A imunidade existe e não só existe como é eficaz. As células do sistema imunitário que foram treinadas, quer por infeção natural ou por uma vacina - que iremos ter em breve -, conseguem manter a sua função durante algum tempo. Não sabemos quanto, mas sabemos que pelo menos sete mesesE isto quer dizer que...
Esta contextualização é importante porque o que isto demonstra é que há não apenas uma resposta imunitária como já sabemos. O resultado da resposta imunitária, seja pela presença de anticorpos depois de eliminar a infeção ou de glóbulos brancos T, mantém-se muitos meses após eliminação do vírus. Sabemos, por exemplo, que no caso dos anticorpos, pelo menos até sete meses continuam em circulação, apesar de reduzirem, continuam em circulação e sabemos que em termos de imunidade celular ela mantém-se, pelo menos, até sete meses.
É, então, uma boa notícia...
Sim, e também me parece interessante que as primeiras infeções que existiram com o primeiro SARS, em 2003, já lá vão 17 anos, as pessoas testadas para esse SARS, agora, em 2020, ainda têm imunidade celular. Não quer dizer que com o SARS-CoV-2 seja igual, mas a probabilidade é que seja muito parecida.
Portanto, a imunidade existe e não só existe como é eficaz. As células do sistema imunitário que foram treinadas, quer por infeção natural ou por uma vacina - que iremos ter em breve -, conseguem manter a sua função durante algum tempo. Não sabemos quanto tempo será, mas sabemos que pelo menos sete meses e que poderá ser mais logo. E isto é importante porque, quando voltarmos a ter contacto novamente com o vírus, o nosso sistema imunitário vai estar preparado de tal forma que consegue ou impedir que haja desenvolvimento da doença (a pessoa pode testar positivo, mas não tem doença, é totalmente assintomática) ou ter doença com sintomas muitíssimo mais fracos.
Não é surpreendente que venhamos a ter casos em que as pessoas tiveram uma reinfeção. Podemos ter casos repetidos da infeção, mas a norma seria que, numa segunda infeção os sintomas fossem ou mais ligeiros ou não houvesse sintomas de todo. Mas isso não quer dizer que não haja exceçõesE não contagia nestes casos?
Depende das condições. Pode ser contagioso se, de facto, houver títulos virais elevados e a pessoa desenvolver ainda sintomas e serem sintomas elevados, mas pode não contagiar. Tudo isto vai depender do nível de infeção. O que é extremamente importante é que a imunidade não é sinónimo de estoicidade, não quer dizer que a pessoa não possa ser novamente infetada. A pessoa pode ser infetada, passa é a estar muitíssimo mais protegida. Ou não desenvolve doença – assintomática - , ou desenvolvendo a doença é uma doença muitíssimo mais ligeira. Isto não é uma especificidade do SARS-CoV-2 ou da Covid-19, isto acontece em todas as doenças infecciosas. Aliás, qualquer vacina faz justamente este processo. Por vezes a pessoa pode ser infetada e desenvolver a doença também, mas a doença será sempre muitíssimo mais atenuada do que se não houvesse uma imunidade anterior.
E as pessoas que voltaram a ter a infeção depois de terem sido dadas como curadas?
Não é surpreendente que venhamos a ter casos em que as pessoas tiveram uma reinfeção, sobretudo agora, com o decorrer do tempo. Já passaram 7, 8, 9 meses, dependendo das latitudes e longitudes das pessoas que contactaram com o vírus. Podemos ter casos repetidos da infeção, mas a norma seria que, numa segunda infeção os sintomas fossem ou mais ligeiros ou não houvesse sintomas de todo. Mas isso não quer dizer que não haja exceções, pode haver exceções de pessoas que têm a doença igual ou até mais grave, mas isso são exceções.
Um historial anterior com outros coronavírus confere-nos algum grau de proteção A regra geral é que, ao desenvolvermos uma imunidade, neste tipo de infeções virais, esperaríamos que uma segunda infeção, ao acontecer, tivesse ou sintomas extraordinariamente mais ligeiros ou que nem se quer nos apercebêssemos que estávamos positivos, porque não desenvolvemos sintomas de todo. E há ainda outra coisa que sabemos agora e que antes não sabíamos. Entre 30% a 50% da população humana tem imunidade dada por outros coronavírus, que causam constipações normais. O que foi publicado muito recentemente, há sensivelmente um mês, é que se verificou que os indivíduos que têm esse tipo de imunidade para outros coronavírus, chama-se a isso imunidade cruzada, conseguem ter uma resposta imunitária mais eficaz contra a Covid-19. Os indivíduos que têm essa imunidade têm sintomas, quando são infetados, muitíssimo mais ligeiros do que os que não tinham essa imunidade.
Na realidade, temos aqui um certo nível de proteção, o que não quer dizer que não tenhamos infeção e não fiquemos sintomáticos, mas um historial anterior com outros coronavírus confere-nos algum grau de proteção.
Quanto mais fortes forem os sintomas, mais altos serão os níveis de anticorpos e da chamada imunidade celularE a imunidade depende mesmo da gravidade dos sintomas?
Absolutamente. O que sabemos é que na infeção pelo SARS-CoV-2, no contexto da Covid-19, é que aquilo que chamamos de imunidade por linfócitos D, ou seja, com produção de anticorpos, e também imunidade celular. Quanto mais fortes forem os sintomas, mais altos serão os níveis de anticorpos e da chamada imunidade celular. Agora, em situações em que um indivíduo foi infetado e nem desenvolveu sintomas, quer dizer que o organismo e o sistema imunitário foi capaz de lidar com essa infeção de uma forma muito eficiente mesmo sem ter níveis de anticorpos muito elevados.
Portanto, há esta panóplia de traços e formas do sistema imunitário agir que têm todas elas muitas funções. Quem nem se quer chega a desenvolver sintomas é porque, de facto, conseguiu lidar com o vírus de uma forma extraordinariamente eficiente e acaba por debelar completamente a infeção.
Como é que funcionam os testes de imunidade? Dão a percentagem de imunidade? O tempo que ela vai durar? Ou só indicam se a pessoa em questão teve ou não Covid-19?
Depende daquilo que queremos medir. Se quisermos medir os anticorpos são os chamados testes serológicos, ou seja, o que vamos medir é a presença de anticorpos, especificamente, dirigidos ao SARS-CoV-2. Com estes vamos não só determinar a presença dos anticorpos, como também, a classe dos anticorpos específicos para o SARS-CoV-2, mas são de classes diferentes e aparecem em fases diferentes da resposta imunitária. São testes feitos de uma forma relativamente rápida.
Existem testes que são os chamados testes rápidos, muito próximo daquilo que é um teste de gravidez ou testes de laboratório, que conseguem dar uma classificação mais precisa. Quanto à quantificação e medida da imunidade celular estas são obtidas através de um teste bastante mais complicado. Não é possível fazer num laboratório de análises clínicas normais, porque estes não estão equipados para isso. Faz-se num contexto mais de investigação, é mais moroso.
Não é por estarmos imunes que devemos alterar os nossos comportamentos. Na realidade, mesmo com proteção, nada nos garante que não sejamos infeciosos para terceiros e propagar a infeçãoMas através do teste serológico é calculado o tempo que vai durar a imunidade e a percentagem que temos desta?
O que se sabe é que, pelo menos, em casos de indivíduos que tiveram doentes com grandes tipos de anticorpos, ou seja, sintomas elevados, os níveis detetáveis de anticorpos mantêm-se, pelo menos, durante sete meses. Se calhar é mais, mas só tivemos sete meses para avaliar isso. O que também sabemos é que esses níveis de anticorpos caem cerca de dois terços ao fim de três meses. Portanto, começa a haver uma perda.
Agora, não quer dizer que não haja imunidade, porque, primeiro, os anticorpos são apenas uma parte da imunidade, segundo, mesmo que não haja anticorpos, pode haver aquilo que nós chamamos de células de memória que são capazes, quando somos reinfetados, de produzirem muito rapidamente e de forma muito eficiente mais anticorpos e depois existe a outra componente que é a imunidade celular, que, neste caso, não estamos a usufruir. Os anticorpos dão-nos uma indicação, mas, ao não ter anticorpos, não quer dizer que não tenhamos imunidade.
E quem tiver imunidade pode descontrair?
De forma alguma. Não é por estarmos imunes que devemos alterar os nossos comportamentos. Na realidade, mesmo com proteção, nada nos garante que não sejamos infeciosos para terceiros e propagar a infeção. É provável que isso não aconteça, porque quando tivermos um número muito elevado de indivíduos que tenha essa imunidade, seja por via natural ou a combinação que todos nós queremos - que é a imunidade natural e a imunidade conferida pela vacina - atingiremos aqui um palavrão, que foi mal compreendido durante algum tempo, que é a imunidade de grupo.
A imunidade de grupo na realidade é o resultado da imunidade individual de cada um de nós e que, quando atinge uma determinada proporção, atrasa de tal forma a propagação do vírus de indivíduo para indivíduo que o vírus acaba a ser transmitido de uma forma tão pouco eficaz, ou seja, o R baixa de tal forma, que acaba por desaparecer e se tornar endémico na população. Isso é o que nós queremos, ter um vírus que acaba por não conseguir propagar de uma forma eficiente porque não tem terreno fértil, ou seja, quando vai passar de um indivíduo para outro, vai encontrar indivíduos com um sistema imunitário que já está preparado para esse vírus.
O que é que pode ajudar na imunidade?
Há um fator que nós já sabemos, mas que não é específico para a Covid, é transversal a todas as doenças infeciosas, que é a idade. Pessoas mais idosas, normalmente, têm respostas imunitárias menos robustas. Sabemos também que alterações metabólicas que possam existir, doenças metabólicas como a obesidade, estão associadas também a respostas imunitárias mais fracas. E depois há uma quantidade de componentes que nós sabemos que são importantes para o sistema imunitário saudável que são componentes de uma vida saudável, não são específicas do sistema imunitário. Uma dieta saudável, rica em vitaminas, em alimentos frescos, não haver um excesso de calorias, práticas regulares de exercício físico, mas que, mais uma vez, não são especificas desta doença em concreto, têm a ver com um estilo de vida saudável.
O que é neste momento é absolutamente prioritário é conseguirmos, de uma forma muito rápida, identificar os indivíduos que estão infetados e que são infeciosos e termos equipas de saúde pública que possam fazer rastreamentos e possam identificar os contactos das pessoas que estão infetadasÉ verdade que há vitaminas que ajudam a dar mais imunidade à Covid-19?
O que está cientificamente provado é que as vitaminas são importantes para um desenvolvimento e uma função correta de certos tipos de células do sistema imunitário. Isso está provado. Agora, o que não está provado ou é debatível é se suplementos vitamínicos melhoram a resposta imunitária porque alguém que tenha uma dieta equilibrada não necessita de suplementos alimentares nenhuns. Os suplementos só são necessários quando já há um desequilibro à partida. Alguém que tenha um estilo de vida saudável, coma de uma forma equilibrada, não precisa entrar num extremismo, desde que consuma legumes e fruta fresca, não tem qualquer necessidade de suplementos vitamínicos.
Agora, de facto, essas vitaminas são importantes para o desenvolvimento de um sistema imunitário saudável, mas entra tudo nesse bom senso que é o manter um estilo de vida saudável e com alimentação equilibrada, para lidar com esta doença e outras, não é uma especificidade da Covid.
Voltando aos testes serológicos, acha que estes deviam ser gratuitos? E os testes rápidos? Deviam ser disponibilizados em massa?
Os testes serológicos tiveram uma importância fundamental nos primeiros meses da pandemia porque permitiram perceber muito rapidamente que o número de pessoas que estavam a aparecer com sintomas eram uma minoria face às pessoas que estavam infetadas. Aliás, nós no fim do verão fizemos os primeiros levantamentos serológicos no país e verificamos que havia 10 vezes mais pessoas infetadas do que aquilo que tinha sido diagnosticado, porque essas pessoas nunca tinham tido sintomas. Foi muito importante, para percebermos o comportamento da pandemia. Concluímos que a maioria das pessoas que são infetadas não têm sintomas ou são de tal forma ligeiros que ninguém valoriza.
Agora, obviamente as coisas vão evoluindo e, atualmente, estamos numa segunda vaga, que está a ter dimensões superiores àquilo que foi a primeira vaga. O que é neste momento é absolutamente prioritário é conseguirmos, de uma forma muito rápida, identificar os indivíduos que estão infetados e que são infeciosos e termos equipas de saúde pública que possam fazer rastreamentos e possam identificar os contactos das pessoas que estão infetadas. Os testes por zaragatoa, os PCR, são um teste de diagnóstico, o mais sensível que existe, mas tem, no essencial, dois problemas: é um teste caro e é demorado. Surgiram, entretanto, outras alternativas, como por exemplo os chamados testes rápidos, de antigénio. Apesar destes precisarem ainda de uma zaragatoa vão, em vez de identificar o material genético do SARS-CoV-2, identificar proteínas e essa reação ou esse teste é muitíssimo mais rápido. Conseguimos ter uma resposta em 15 minutos, ou seja, estes testes permitem de uma forma muito eficiente identificar pessoas infetadas e infeciosas porque, normalmente, se existe proteína, existem vírus viáveis. Ou seja, à partida, um teste positivo, quer dizer que a pessoa está não só infetada, mas poderá ser infeciosa para terceiros.
Outro aspeto importante é que custam uma fração do preço que custam os PCR clássicos. É mais barato, mais eficiente e com uma eficiência bastante elevada se for nos primeiros dias da infeção, de tal forma, que esta estratégia já foi utilizada em alguns países europeus para fazer monitorização da população. Na Eslováquia, metade da população, foi testada em dois dias, portanto, isto atesta a rapidez e eficiência do método porque é, não apenas mais barato, como extraordinariamente mais rápido.
Não serve de nada estarmos a identificar as pessoas se depois, a jusante dessa identificação, não tivermos equipas no terreno que possam fazer o rastreio dos contactos (...) Se houve alguma coisa que falhou, foi fortalecer as equipas que estão no terreno a fazer este rastreioMas não são utilizados em ‘massa’ em Portugal. Em que casos são utilizados?
Na última norma da DGS estes testes já vêm contemplados para poderem ser utilizados, essencialmente, em três cenários: situações de urgência de indivíduos sintomáticos, caso dê negativo, tem de ser confirmado com PCR, para monitorização em situações de risco ou potencial risco de surtos, lares, escolas, e finalmente para uma monitorização regular de profissionais de saúde ou funcionários de lares. Ainda não há um aconselhamento que seja para toda a população. Isto em Portugal, porque cada país opta por soluções diferentes.
Há aqui um aspeto muito importante e que é uma peça do puzzle. Não serve de nada estarmos a identificar as pessoas se depois, a jusante dessa identificação, não tivermos equipas no terreno que possam fazer o rastreio dos contactos, as equipas de saúde pública que vão identificar as pessoas que forem infetadas e os contactos. Isso é absolutamente critico porque, se não identificarmos os contactos, a propagação continua, ou seja, se fizermos testes, mas não fizermos o trabalho que vem a seguir, que é isolar e testar os contactos, serve de muito pouco. É sem nenhum dúvida um dos principais problemas neste momento. O que os médicos de saúde pública dizem é que se houve alguma coisa que falhou, que nós não nos preparamos, foi em fortalecer as equipas que estão no terreno a fazer este rastreio de contactos, a identificar as pessoas, contactar e a colocar os novos testes no terreno.
Até com a app isso falhou...
Há vários tipos de aplicações e vários países desenvolveram várias app. Não há nenhum país em que a aplicação tenha tido um enorme êxito, por diversas razões e a principal não é que esteja mal desenhada é que, para ter efeito e para ter uma grande eficácia, tínhamos de ter uma adesão maciça da população portuguesa, o que não aconteceu, porque temos crianças, idosos, pessoas que não têm equipamentos que sejam compatíveis. Além disso, para aderir é preciso introduzir os dados e ter os dados para inserir. Essas três premissas não foram verificadas. Apesar dos muitos downloads que foram feitos, estamos longe de atingir o nível que era desejado. Receber os códigos dos médicos, pelo que consta, tem sido bastante difícil e depois de ter os códigos é preciso introduzi-los. E isso não tem tido uma grande eficiência, mas não é um problema nacional, tem sido um problema mundial e transversal a muitos países na Europa.
Estou convencido que teremos uma vacina até ao final do ano. Aliás, não apenas isso, como também segura. Isto não quer dizer que estará disponível para toda a gentePorque é que acha que a imunidade de grupo é tão mal vista?
Imunidade de grupo não quer dizer deixar o vírus à solta e não fazer nada. Não é isso, isso seria uma catástrofe, porque íamos ter um impacto económico, social, financeiro e sanitário de proporções que não são toleráveis na sociedade em que nós vivemos. A imunidade de grupo é aquilo que nós, quando conseguirmos combater esta doença com uma vacina ou através dos anticorpos, temos. O que nós queremos é vacinar toda a gente ou o maior número de pessoas para que individualmente estejamos protegidos, mas também para que a nossa proteção individual seja traduzida numa imunidade coletiva, ou de grupo, que vai reduzir de uma forma dramática a capacidade que o vírus tem de saltar da pessoa A para a pessoa B e da pessoa B para a pessoa C. Portanto, o dito factor R cai por aí abaixo a níveis muito manifestos. Isso é uma imunidade de grupo.
Se é ou não uma estratégia a adotar do ponto de vista da gestão política e sanitária, para esta pandemia em concreto, na minha opinião, não é isoladamente, porque precisa de outras estratégias. Precisamos de manter o distanciamento físico, precisamos de manter a máscara, de proteger os grupos de risco, identificar os contactos e precisamos também de desenvolver, simultaneamente, novas terapias com medicamentos. Melhoramos muito a terapêutica, mas não foi através de novos medicamentos foi, essencialmente, a ajustar os medicamentos que já existiam.
Acredita então que teremos uma vacina até ao final de 2020?
Penso que sim, face aquilo que foi publicado até agora nos ensaios clínicos de SARS-CoV-2, com respostas imunitárias tão robustas. Independentemente das estratégias vacinal, seja ela por material genético ou com vírus modificado, são tão robustas que desenvolvem ambas uma resposta dos linfócitos B, portanto, a produção de anticorpos e a imunidade celular. Estou convencido que teremos uma vacina até ao final do ano. Aliás, não apenas isso, como também segura. Isto não quer dizer que estará disponível para toda a gente, quer dizer é que ela poderá estar disponível e, quando for produzida em massa, em grande quantidade, começar a ser distribuída no primeiro e segundo trimestre de 2021. Todos estamos ansiosos para ter uma vacina.
Mas antes de 2022 a população não deve estar toda vacinada…
Vacinar toda a população mundial será muito difícil ou quase impossível. Agora, há alguns esforços, pelo menos de duas das empresas que estão a desenvolver vacinas com material genético (RNA) e que têm uma grande vantagem face às vacinas mais clássicas que tem a ver com o custo de produção mais baixo e com uma capacidade de produzir grandes quantidades, numa forma quase sintética, portanto, de mais fácil produção. As empresas podem escalar essa produção de uma forma muito mais rápida. Agora, isso não nos serve de nada se elas não forem eficazes e seguras e é isso que aguardamos. Há duas empresas que já estão na fase três de ensaios clínicos.
Assumirmos gestos de proteção individual de uma forma muito rigorosa, seguir as instruções da DGS, é absolutamente essencial, como foi no início da pandemia, como é agora e como vai ser até ao fim da pandemia Qual a vacina que, na sua opinião, pode ter mais e melhores resultados, o mais rapidamente possível?
A minha preferência é comum a qualquer cidadão comum. A melhor vacina vai ser aquela que der melhor proteção a mais baixo preço, mais eficiente e que chegue mais rapidamente ao mercado. A que permita o mais rapidamente possível vacinar o maior número de pessoas.
Porque é que a Europa, ao contrário da China onde começou a pandemia, está a lidar com uma segunda vaga?
É uma posição muito delicada estar a comparar a resposta que diferentes países deram à pandemia por múltiplas questões. São sistemas políticos diferentes, são culturas diferentes, têm sistemas de saúde diferentes e porque as próprias populações aderem às medidas de formas diferentes. No caso concreto da China nós vimos desde o início que foi imposto um confinamento geral, com uma extensão e dimensão que não é comparável com aquela que aconteceu na maior parte dos países europeus.
Além disso, a China não voltou à normalidade [como aconteceu com a Europa no verão]. Independentemente disso, a maioria dos países não tinha preparação suficiente para atacar a pandemia que não foi contida na China. Não foi contida porque é impossível conter algo que não se vê e com esta mobilidade passa para muitos dos países. Esta segunda onda, apesar de já se prever, surge perante um relaxamento do desconfinamento, que tinha de acontecer. Vivemos em sociedade, não podemos ter tudo centrado na Covid-19. O resultado disso já se viu. Temos um aumento de mortos não Covid, temos uma enorme crise económica e social que não sabemos quanto tempo vai durar. Já sabemos que não vai acontecer, não funciona, não é sustentável muito tempo. Ao sair do confinamento, muitos voltaram a adotar comportamentos de risco e os números que estamos a ter refletem isso.
A maioria das infeções e dos casos que se estão verificar ocorre não no local de trabalho, não nos transportes públicos, não quando vamos ao cinema, teatro ou locais onde todas as medidas de segurança são acauteladas, mas acontece na nossa casa, quando estamos mas relaxados, quando não temos máscara, quando temos reuniões familiares, quando temos reuniões privadas com os nossos amigos, quando há o relaxamento dessas medidas. São esses os episódios onde de facto os contágios têm acontecido e isso é válido em Portugal como noutros países europeus.
No caso da França, por exemplo, esta segunda vaga começou muito anteriormente, nos meses de agosto e setembro, justamente como resultado das férias entre amigos, entre familiares. Nós somos seres sociais, gostamos de conviver com as pessoas de quem gostamos e amámos, mas estes comportamentos de risco, em que não usamos proteção individual e relaxamos mais com os abraços, sem utilização de máscaras, são terreno propício para que um vírus deste tipo, manifestamente silencioso, se possa propagar com uma rapidez estonteante. Nestes primeiros meses da segunda vaga - agosto, setembro - havia uma grande diferença do ponto de vista daquilo que era o número de internados e de doentes graves, mas é óbvio que, apesar da população que estava a ser afetada era uma população mais nova, mais cedo ou mais tarde isto ia chegar novamente aos grupos de risco porque todos nós temos pais, avós, tios que são mais velhos e, portanto, o vírus acaba por chegar como estamos a ver agora.
O número de internados aumentou exponencialmente, temos as UCI próximas daquilo que é a rutura e temos número de mortos nunca antes vistos. Portanto, a manutenção, assumirmos gestos de proteção individual de uma forma muito rigorosa, seguir as instruções da DGS, é absolutamente essencial, como foi no início da pandemia, como é agora e como vai ser até ao fim da pandemia.