"Não vai ser assim tão linear que possamos atingir imunidade de grupo"
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Ricardo Mexia
Ciente de que o alívio das restrições vai originar um aumento das infeções pelo novo coronavírus, Ricardo Mexia defende, em entrevista ao Notícias ao Minuto, que evitar uma quarta vaga da pandemia no país está na mãos de todos: cidadãos, profissionais de saúde e decisores políticos.
O presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública frisou que para que o plano de desconfinamento do país possa chegar a bom porto é imperioso "garantir a testagem adequada, recursos para a vigilância epidemiológica que possam funcionar no tempo adequado, uma comunicação assertiva e uma campanha de vacinação que seja robusta".
Sobre o avanço e recuo relativamente à vacina da AstraZeneca, que "não devia ter acontecido", o especialista atribui à nova task-force do Governo da área da comunicação a missão de restaurar a confiança nesta vacina. "Tem de haver aqui uma estratégia de comunicação muito assertiva, muito clara, para que não haja depois problemas de hesitação vacinal", apontou.
Ricardo Mexia sublinhou que ter 70% da população vacinada até ao final do verão é importante, mas alertou que atingir esse patamar "não é garantia de nada" no que toca à tão desejada imunidade de grupo. "Não vai ser assim tão linear que possamos atingir a imunidade", vincou.
Nesta entrevista, o médico mostrou-se ainda preocupado com o rasto de pobreza que a pandemia deixará no país e cuja dimensão ainda é difícil de aferir.
Tem de haver aqui uma estratégia de comunicação muito assertiva para que não haja problemas de hesitação vacinal
Como é que acompanhou esta polémica relacionada com a AstraZeneca com vários países a decidirem suspender a utilização da vacina, dando a ideia de que se agiu mais para responder ao medo da população do que propriamente com base em critérios científicos?
Em todas as intervenções médicas, mas particularmente nos medicamentos e nas vacinas, a comunicação e a transparência são absolutamente fundamentais. Foram criados receios que me parecem, de alguma forma, infundados. O que é normal em qualquer medicamento, qualquer vacina, os ensaios da fase quatro - quando o fármaco já se encontra no mercado - é que a farmacovigilância funciona. Ou seja, monitoriza a ocorrência de efeitos adversos assim como a eficácia. Isto era absolutamente normal. Esta abordagem de fazer a suspensão para depois voltar a retomar, de facto, não é o que costuma acontecer. Se há razões para interromper, faz-se a interrupção, como de resto tinha acontecido com alguns ensaios durante o desenvolvimento das vacinas.
Aqui houve uma situação que não é fácil de perceber e que acabou por criar alguma dificuldade no que diz respeito à comunicação e, particularmente, à confiança na vacina. Vamos retomar esta segunda-feira, mas é evidente que tem de haver aqui uma estratégia de comunicação muito assertiva, muito clara, para que não haja depois problemas de hesitação vacinal.
Concorda com a ideia de "punir" quem se recusar ser vacinado com esta vacina em particular, indo para o fim da fila?
Não é uma questão de punição. Todos os dias, há muitos muitos anos, o programa nacional de vacinação tem uma proteção para um conjunto de doenças e nunca ninguém se questionou qual era a vacina incluída. Todos os dias há centenas de doentes em hospitais que recebem medicação e não sabem de que marca é o paracetamol que lhes está a ser dado, ou de que marca é qualquer um dos outros medicamentos administrados. Uma realidade que também não é nova é que para todas as administrações e intervenções médicas há um consentimento. As pessoas podem não consentir. Têm uma oportunidade de aceder a esta vacina, que os reguladores identificaram como sendo segura e eficaz. Se não pretendem ser vacinadas com esta, estão no seu direito, mas aguardarão que esteja disponível outra solução. Parece-me que, com alguma razoabilidade, isso vai acontecer.
Como é que agora se restaura a confiança das pessoas nesta vacina depois do alarme que foi feito?
Essa é que é a questão. Não devia ter acontecido esta suspensão. A avaliação devia ter sido feita de forma célere, sem a necessidade de uma suspensão preventiva e, perante a evidência, tomar uma decisão. Este avanço e recuo é prejudicial. O Governo criou uma task-force na área da comunicação e dos comportamentos. Tem aqui uma tarefa muito importante para desempenhar e ela deve ser feita desde já e com celeridade.
É plausível que perante a redução das restrições possa haver um aumento do número de casos
Relativamente à situação pandémica do país, que está agora numa fase mais positiva, a diretora-geral de saúde afirmou, recentemente, que não é de descartar uma escalada das infeções, mesmo com as vacinas. No mesmo sentido, António Costa alertou que as novas variantes são um factor de imprevisibilidade que podem alterar o panorama. Qual o risco real de surgir uma quarta vaga da pandemia? Podemos afirmar que o pior já passou?
É uma projeção difícil de fazer. Temos de olhar para os factos. Desde já, sabemos que quando reduzimos as restrições aumentamos a disseminação. Portanto, é plausível que perante a redução das restrições que começou na segunda-feira [passada], possa haver um aumento do número de casos. É muito provável que possa acontecer. O caminho que temos de trilhar é assegurar que esse aumento do número de casos não excede aquilo que é a capacidade dos nossos serviços de saúde de responderem às ocorrências. Esse é um aspeto central da resposta.
Evitar uma quarta vaga está claramente ao nosso alcance, ao alcance de todos - cidadãos, profissionais de saúde e decisores políticos. Depende daquilo que fizermos. Dos nossos comportamentos individuais, de termos a capacidade de o Governo mobilizar os esforços necessários para fazer face a isso mesmo. Há um conjunto de fatores que não pode ser descurado de forma a que consigamos responder a este possível aumento de forma rápida, assertiva e mantendo o controlo da situação.
As datas acabam por amarrar a resposta a datas fixas que vão ser, seguramente, muito influenciadas pela evolução epidemiológica. Não é claro para mim que vamos cumprir aquelas datas
E nesse contexto, que opinião tem do plano de desconfinamento que se iniciou na semana passada? O primeiro-ministro usou a expressão "conta gotas" e considerou tratar-se de um plano muito conservador. Concorda?
É um plano que tem um faseamento importante, nem poderia deixar de ser assim. Elenca as diversas atividades. Em relação à sequência, haverá eventualmente correções pontuais de algumas atividades, mas também não é uma ciência exata.
A grande questão que se me coloca tem que ver com a sua exequibilidade ter de garantir a testagem adequada, recursos para a vigilância epidemiológica que possam funcionar no tempo adequado, uma comunicação assertiva e uma campanha de vacinação que seja robusta. Com estes pressupostos, se isto se cumprir, acredito que possamos ter um plano que possa vir a funcionar.
Há aqui uma nuance, a existência de datas concretas para passagens entre fases. Acho que foi um pouco ambicioso demais. Atendendo que até temos a matriz de risco (em função do Rt e da incidência poder ou não avançar para uma fase seguinte), podia ter sido útil e mais conservador dizer que a avaliação é quinzenal e que, se se mantiver uma avaliação do risco dentro dos parâmetros considerados como aceitáveis, se progride para a próxima fase. Se assim não acontecer, mantermo-nos na mesma, ou até, se a situação se agravar muito, termos de voltar a uma fase anterior.
As datas acabam por amarrar a resposta a datas fixas que vão ser, seguramente, muito influenciadas pela evolução epidemiológica. Talvez essa seja a questão mais complexa e não é claro para mim que vamos cumprir aquelas datas, talvez seja a maior dificuldade que antevejo.
As datas criam expetativas desnecessárias nas pessoas?
Julgo que sim.
Há outros fatores que têm de ser tidos em conta. Acho que não se pode fazer uma leitura estrita daquela matriz de risco
E que opinião tem da matriz de risco? Tem sido criticado o facto de não terem sido contempladas outras duas variáveis - a taxa de positividade e a ocupação do SNS.
Termos uma matriz só com dois indicadores é ficarmos agarrados a ela. Há outros fatores que têm de ser tidos em conta. Acho que não se pode fazer uma leitura estrita daquela matriz de risco.
Considera que o país tem meios para avançar com a tal testagem em massa de que se vem falando?
Já em novembro tivemos uma alteração da estratégia que previa uma maior testagem em diversos contextos. Espero que sim, que sejam criados e disponibilizados os recursos necessários para efetivarmos uma maior testagem. Desde que foi anunciada uma maior testagem, tem vindo a decrescer o número de testes. Agora melhorou em função dos testes feitos por causa das escolas, o que é um indicador bom, mas era importante que isso fosse ampliado.
Verifica-se aquela tendência de quando a incidência baixa, o número de testes realizados acompanha essa descida.
É absolutamente normal que aconteça. A questão aqui é, independentemente disso, mantermos um nível de testagem minimamente robusto para fazer uma identificação precoce dos casos. É isto que é importante ter em mente.
Parece-lhe uma boa ideia a questão dos auto-testes?
Como tenho dito desde o início, a estratégia de testagem deve ser integrada. Estes auto-testes também têm o seu papel. Não vêm substituir os outros que existem, que também têm as suas características próprias para ser aplicados. Mas podem dar o seu contributo na identificação de casos que, de outra forma, se calhar, não teríamos capacidade de identificar.
Também aqui a comunicação deve ser bem feita, porque um resultado negativo num teste rápido de antigénio não é sinónimo de não infeção.
É muito importante que isso seja claro: o que é que as pessoas devem fazer perante o resultado do teste – seja ele positivo ou negativo. Uma das coisas que vai ser muito importante é assegurarmos que os testes negativos também são comunicados. Vamos ter de encontrar um mecanismo que assegure que todos os testes feitos são comunicados. Até porque um dos indicadores a monitorizar é precisamente a taxa de positividade. Se se registar apenas os positivos, artificialmente inflaciona-se a taxa de positividade. É fundamental que arranjemos um mecanismo que promova a notificação de todos os testes [A circular da DGS, Infarmed e INSA, publicada depois da realização desta entrevista, estipula que todos os testes devem ser comunicados às autoridade de saúde].
Uma das eventuais questões que pode estar em causa é os nossos emigrantes em França tomarem a iniciativa de, já que estão confinados lá, virem até Portugal
As lições do passado, nomeadamente daquilo que aconteceu no Natal, foram bem aprendidas por todos os intervenientes no combate à pandemia, incluindo os cidadãos?
Espero bem que sim. Pagámos caro os erros que cometemos e espero que não os voltemos a cometer novamente. Tenho essa expetativa.
E que agora na Páscoa não se deite fora tudo o que se alcançou até aqui.
França vai entrar em restrições importantes. E sabemos bem que temos uma comunidade portuguesa de uma dimensão apreciável naquele país. Uma das eventuais questões que pode estar em causa é os nossos emigrantes em França tomarem a iniciativa de, já que estão confinados lá, virem até Portugal. O risco disto é uma importação importante do número de casos com origem em França. Vamos ter de ser muito assertivos também nesta situação.
Havia a expetativa, que é um erro, que vacinação de 70% é igual a imunidade de grupo
Qual a apreciação que faz do processo de vacinação em Portugal, apesar de estar a ser condicionada pelos atrasos nas entregas e agora pela suspensão da vacina da AstraZeneca?
A sensação que tenho é que as vacinas que estão a chegar são as vacinas que estão a ser administradas. Tirando agora a suspensão da AstraZeneca, que foi temporária. Temos este enorme fator limitante que é o ritmo de chegada das vacinas a território nacional. Infelizmente, o ritmo de chegada é baixo e, portanto, a nossa capacidade de as administrar aparenta ser suficiente.
Não vai ser assim tão linear que possamos atingir imunidade de grupo
Está confiante na meta dos 70% da população vacinada no final do verão?
Confesso que não conheço o planeamento. Acho que não é exatamente público o ritmo de chegada das vacinas ao país. Essa meta dos 70% é uma meta que se convencionou criar mas que não tem depois nenhum significado concreto.
Como assim?
Havia a expetativa, que é um erro, que vacinação de 70% é igual a imunidade de grupo. Não é verdade. Até hoje, ainda não temos nenhum contexto no mundo em que se tenha atingido a imunidade de grupo. Não sabemos se é 70%, se é 50% se é 95%.
Há quem defenda que é atingida com 95% da população vacinada...
Pois. E há quem diga que não vai ser possível atingir a imunidade de grupo, fruto da variabilidade e de uma série de fatores. A questão dos 70% é importante: uma vez protegidos os grupos mais vulneráveis da população, podemos não atingir a imunidade de grupo, mas seguramente que isso já nos dá uma segurança diferente para retomar um conjunto de atividades. Essa aposta faz-me sentido, independentemente de atingirmos a tal imunidade de grupo que todos desejaríamos. Não vai ser assim tão linear que a possamos atingir.
Espero que possa ser possível vacinarmos 70% da população num horizonte de tempo rápido, até ao final do verão, até porque sabemos que depois no inverno tendencialmente vamos ter uma maior circulação do vírus. Mas esse patamar não é garantia de nada, é preciso que as pessoas tenham essa perceção.
Tenho a expetativa que o verão não seja pior do que o anterior
Realisticamente falando quando é que o mundo poderá respirar de alívio quanto a este novo coronavírus?
Como digo, uma vez que tenhamos conseguido proteger os mais vulneráveis podemos passar a ter uma circulação do vírus mas que não causa um impacto muito grande nos serviços de saúde e que não causa uma mortalidade excessiva. Não sabemos exatamente quando isso é que isso vai acontecer. Tenho a expetativa que o verão não seja pior do que o anterior. Mas o tempo o dirá. Não tenho a certeza disso.
As novas variantes são agora o grande fator de incerteza. Podem alterar todas as nossas previsões.
Sim. As novas variantes têm um papel importante. Porque podem, quer as que já são conhecidas quer outras que venham a surgir, baralhar as contas por quatro vias. Ou porque são mais transmissíveis, ou porque são mais severas, ou porque alteram a nossa capacidade de diagnosticar o vírus, ou ainda porque as vacinas que temos não são tão eficazes para eventuais novas variantes.
E esses quatro eixos podem acontecer em simultâneo.
Podem acontecer em simultâneo, seguramente.
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública© Global Imagens
É melhor aceitar que as coisas não vão voltar a ser iguais ao que eram, não é? Parece-lhe, por exemplo, que o uso de máscara vai ser normal no futuro?
Acho que há coisas que vieram para ficar. Algumas delas é positivo que assim seja. Por exemplo, conseguimos evitar em larga medida a gripe. O facto de o termos conseguido também tem de nos fazer refletir sobre o que é que podemos fazer no futuro. Talvez as máscaras não venham para ficar de forma universal, mas talvez possam ter um papel nos invernos entre as pessoas mais vulneráveis, entre as pessoas que têm sintomatologia, que estão mais expostas. O teletrabalho - que não é diretamente da saúde mas também tem algumas implicações na saúde – também pode ter vindo para ficar. Há diversas questões que irão ficar de forma mais permanente para o nosso futuro.
A pandemia foi um ‘abre olhos’ para a importância de termos sistemas de saúde mais robustos, capazes de responder em situações de crise?
Já há muito tempo que vínhamos dizendo que era preciso estarmos preparados para algumas ameaças, designadamente as ameaças das doenças infecciosas. A expetativa que temos é que, depois de tudo isto, essa questão se possa ter tornado mais cristalina. A ver vamos. Podemos ter essa convicção e depois ela não se materializar.
Os impactos da pandemia são muito diversificados, abrangentes e, de certa forma, ainda incalculáveis. Em particular, sabe-se que afetou e continuará a afetar a saúde mental dos cidadãos – a nível de depressão, ansiedade, etc. Será um dos grandes combates da Saúde Pública dos próximos tempos, depois de resolvida a crise sanitária?
Obviamente que a saúde mental terá de estar também nas nossas preocupações. Mas não é só a saúde mental. Todas as outras doenças também que ficaram preteridas durante este período. É muito importante que não percamos isso de vista. Recuperar o tempo perdido no diagnóstico e tratamento de uma série de doenças. Muitas consultas e cirurgias ficaram por fazer. Tudo isso tem de ser alvo da nossa preocupação e é num horizonte de tempo bastante curto.
Em termos pessoais, o que é que a pandemia mudou a sua vida? Do que é que sente mais falta?
Sinto falta de estar com a família, com os amigos, de ir a festivais, de ir a concertos, viajar, ir ao estádio [sorrisos]. Muita coisa que gostava de fazer e que fazia com alguma regularidade e que já não faço há um ano. Obviamente que é muito penalizador mas é para todos. Apesar de tudo, acabei por ser relativamente poupado aos impactos da pandemia, por exemplo, no que toca ao emprego. Felizmente, não fui afetado de uma forma tão significativa como muitos outros foram. Percebo que é uma situação devastadora para muitas famílias e espero que possamos todos coletivamente ajudar a mitigar estes impactos, sendo que ainda não temos a sua extensão toda revelada. A onda dos impactos sociais e económicos ainda não chegou, mas virá.
A pobreza que eventualmente daqui advenha vai ser um problema de dimensões ainda difíceis de aferir
E que, por sua vez, terá inevitavelmente impacto na saúde pública...
Claro que sim. Sabemos que o maior determinante da saúde é a pobreza. A pobreza que eventualmente daqui advenha, e infelizmente acreditamos que venha a ser uma realidade, vai ser um problema de dimensões ainda difíceis de aferir. Estamos naturalmente muito preocupados com toda esta situação.
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