"Faço uma interpretação muito estranha da atitude da inspetora, pouco profissional, no mínimo", afirmou Carlos Cabreiro na audição efetuada na 35.ª sessão do julgamento, no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, acrescentando: "Não é comum e em 29 anos de carreira [na PJ] nunca vi um episódio desta natureza. Não consigo perceber".
Em causa está o facto de a inspetora da PJ ter afirmado em tribunal, no passado mês de janeiro, que assinou sem ler o Relato de Diligência Externa (RDE) da operação de vigilância do encontro entre o antigo CEO do fundo de investimento Doyen, Nélio Lucas, e o colaborador Pedro Henriques com o arguido Aníbal Pinto, na área de serviço da autoestrada A5, em Oeiras, em 22 de outubro de 2015, e que também não foi responsável pela sua elaboração.
Sublinhando que teve conhecimento do depoimento da inspetora pela comunicação social, o coordenador da unidade manifestou ainda a sua surpresa por essa situação, assegurando que Aida Freitas havia tido uma posição diferente quando foi informada de que iria testemunhar neste processo.
"Não se tratou de uma reunião, houve uma conversa. Foi informada de que ia ser arrolada como testemunha, porque tinha tido uma intervenção pontual. É o que faço sempre quando as notificações chegam ao secretariado e aviso os inspetores. O que é normal é que as pessoas se lembrem dos atos em que participaram, não houve uma preparação prévia", começou por explicar Carlos Cabreira, continuando: "Ela disse 'Se eu não me lembrar, remeto para o auto que assinei'. Não consigo saber qual é a motivação [da inspetora]".
Na sequência do depoimento de Aida Freitas, o tribunal decidiu, após requerimento do Ministério Público (MP), extrair em janeiro uma certidão para investigar a inspetora por alegada falsidade de documento e falsas declarações. Carlos Cabreiro adiantou de seguida que esse depoimento mereceu uma intervenção no seio da PJ.
"Foi uma das preocupações do diretor nacional [da PJ, Luís Neves]. Antecipou-se e informou-me de que iria fazer uma averiguação disciplinar", revelou, sem deixar de frisar que a inspetora mudou de unidade em 2018 "a pedido", mas depois de se ter verificado também "alguma tensão com as chefias".
Antes da audição de Carlos Cabreiro, o tribunal ouviu também os depoimentos das restantes testemunhas arroladas pelo arguido Aníbal Pinto, nomeadamente a mulher, Sofia Gandra, a filha adotiva, Cátia Pinto, e o advogado António Ferreira de Cima, que chegou a presidir ao conselho de deontologia do Porto da Ordem dos Advogados.
Neste testemunho sobressaiu a afirmação de que um advogado "tem a obrigação de identificar o cliente" perante um colega de profissão com que tem de interagir, sendo que Aníbal Pinto nunca chegou a identificar Rui Pinto como o seu constituinte perante a Doyen no encontro ocorrido em outubro de 2015 na área de serviço da autoestrada A5. No entanto, António Ferreira de Cima admitiu que "há situações que fogem a esta regra".
Por outro lado, relativizou o facto de Aníbal Pinto ter querido submeter o pagamento dos seus honorários aos representantes do fundo de investimento e não ao criador do 'Football Leaks'. "Não é muito comum. Todavia, já tem havido situações dessa natureza e, se as partes acordarem que uma parte paga os honorários da outra parte, é legítimo", resumiu.
O julgamento continua no próximo dia 21, com a audição do antigo responsável do sistema informático da Doyen, Jake Hockley, iniciando-se no dia seguinte a audição das testemunhas de defesa de Rui Pinto neste processo.
Rui Pinto, de 32 anos, responde por um total de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto.
O criador do 'Football Leaks' encontra-se em liberdade desde 07 de agosto, "devido à sua colaboração" com a Polícia Judiciária (PJ) e ao seu "sentido crítico", mas está, por questões de segurança, inserido no programa de proteção de testemunhas em local não revelado e sob proteção policial.
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