Na sua mensagem de Natal anual, o Presidente da República destacou o impacto da pandemia na saúde mental dos portugueses. A mensagem foi recebida mas, desde então, poucas ou nenhumas menções a questões de saúde mental foram feitas pelos vários candidatos às eleições legislativas. Segundo Pedro Morgado, professor de psiquiatria e vice-presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho, há "em termos globais, um défice naquilo que são as propostas que os diferentes partidos fazem para a saúde mental".
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Pedro Morgado avaliou os diferentes programas eleitorais e o que propõe cada partido no que diz respeito à saúde mental, especialmente dos dois partidos que, em princípio, encabeçarão o futuro Governo do país que terá nas suas mãos o Programa Nacional para a Saúde Mental (PNSM).
O psiquiatra também vincou que "não é possível pensar em saúde mental sem pensar na sociedade como um todo", ilustrando as várias áreas onde é possível atuar para proporcionar uma melhor saúde mental em toda a comunidade e destacando os problemas que precisam de uma resposta mais urgente (nomeadamente as perturbações ansiosas e depressivas). "Temos de ser tão exigentes nas questões de saúde mental como somos exigentes nas questões oncológicas ou pediátricas", reforçou o profissional de saúde.
Nós temos de pensar a saúde mental como algo que é muito mais extenso e mais vasto do que a simples disponibilização de cuidados de saúde para as pessoas que estão doentes
Muitas pessoas queixaram-se, nas redes sociais, que a saúde mental não foi abordada nos debates, assim como alguma da falta de densidade nas propostas sobre saúde mental. Sendo que o PS e o PSD serão, provavelmente, os líderes de um futuro Governo, seja ele à esquerda ou à direita, como é que avalia os programas eleitorais de cada partido relativamente às suas propostas em torno da saúde mental?
Eu penso que, em termos gerais, há um défice de debate acerca das questões de saúde mental nesta pré-campanha e na campanha que agora começa; e, em termos globais, há um défice naquilo que são as propostas que os diferentes partidos fazem para a saúde mental. Nós temos de pensar a saúde mental como algo que é muito mais extenso e mais vasto do que a simples disponibilização de cuidados de saúde para as pessoas que estão doentes. Porque pensar em saúde mental sem pensar em prevenção, sem pensar nas condições sociais que propiciam o desenvolvimento de doenças psiquiátricas, é não ter uma visão completa acerca daquilo que é preciso fazer politicamente no que diz respeito à saúde mental.
Sobre os dois principais partidos, de facto, as diferenças são muito significativas. A proposta do PS está muito alinhada com aquilo que tem vindo a ser feito e investido no domínio da saúde mental, e com aquilo que são as tendências internacionais no contexto dos cuidados de saúde mental, que visam sobretudo a desinstitucionalização das pessoas com doenças psiquiátricas graves e crónicas, a transferência de uma série de cuidados que tradicionalmente aconteciam em hospitais psiquiátricos e em hospitais gerais para os cuidados de saúde primários, e que visam também dotar o país de respostas em termos de cuidados continuados e cuidados às pessoas com demência.
No programa do PSD, é difícil percebermos o que é proposto, porque aquilo que é escrito é que se quer introduzir no Serviço Nacional de Saúde (SNS) uma "política de saúde mental". Ora, o Programa Nacional para a Saúde Mental (PNSM) é algo que já existe, é muito moderno e que é muito adequado às necessidades do país.
Portanto, eu esperaria que houvesse aqui uma palavra mais contundente e mais afirmativa em relação à implementação do Programa Nacional para a Saúde Mental.
CDU não faz nenhuma proposta específica em relação à saúde mental, e isso é de certa forma desapontante
Perante a necessidade de serem criadas coligações, outros partidos serão intervenientes cruciais na matéria. Como é que avalia, de uma forma geral, os restantes programas?
Eu dividiria as propostas da seguinte forma. Nós temos um conjunto de partidos, além do PS, que são o Bloco de Esquerda, o PAN e o Livre, que reforçam e colocam a tónica na importância da implementação do PNSM. E isto é muito positivo, porque demonstra que há aqui uma tendência para reforçar o consenso que já existe em torno do plano.
© Escola de Medicina da UMinho
Destacaria também como positivas as propostas e o enfoque que a Iniciativa Liberal dá às questões da saúde mental porque, de facto, dentro dos partidos à direita é o partido que maior destaque dá a estas questões. Mas há questões que devem ser respondidas ao longo da campanha: como é que se vai combater os estigmas associados à saúde mental e de que forma é que podemos promover essa informação e esse combate à discriminação - que é um dos grandes determinantes de doença e nos quais a IL não tem sido muito clara.
Depois, dentro dos partidos que têm uma tónica menos abrangente à volta da saúde mental, o CDS-PP faz uma proposta muito centrada nos cuidados de saúde hospitalares. E isso é um problema quando, hoje em dia, a tendência é para criar equipas que trabalham na comunidade, ou seja, no interface entre os hospitais e os cuidados de saúde primários. Portanto eu diria que é uma proposta que está um pouco atrasada em relação às visões que hoje temos em relação à saúde mental.
E depois a CDU não faz nenhuma proposta específica em relação à saúde mental, e isso é de certa forma desapontante.*
Presidente da República deu um contributo extraordinário à causa da saúde mental com essa referência que fez na sua mensagem anual
Passando dos partidos para o Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa fez uma menção sobre o impacto da pandemia na saúde mental. Qual é a importância desta menção do PR sobre os problemas de saúde mental que o país enfrenta?
Eu acho que o Presidente da República deu um contributo extraordinário à causa da saúde mental com essa referência que fez na sua mensagem anual. E penso que o facto do magistrado mais importante da nação colocar a saúde mental na agenda política é um sinal que os partidos políticos não devem ignorar.
É verdade que a pandemia universalizou a experiência de sofrimento psicológico e de doença psiquiátrica, e houve mais gente a experienciar sintomas de doença; e a esmagadora maioria das pessoas teve essa experiência de uma forma transitória e encontrou mecanismos de lidar com o sofrimento e com a adversidade. Mas também é verdade que as pessoas que já estavam numa situação de maior desfavorecimento e vulnerabilidade estão hoje em maior risco de doença psiquiátrica e algumas deles estão doentes.
Portanto, aquilo que a evidência nos demonstra é que há um aumento do risco de doença psiquiátrica, mas que esse aumento não é, felizmente, também tão esmagador como se chegou a pensar em algumas fases da pandemia. E eu penso que esta mensagem também é importante ser passada, porque a nossa capacidade de adaptação é grande.
Voltando à mensagem inicial, não é possível pensar em saúde mental sem pensar na sociedade como um todo. Nós precisamos de uma educação que seja completa para todas as pessoas do nosso país, que garanta o desenvolvimento emocional adequado, uma formação cívica e de cidadania e que todas as pessoas compreendam as diferenças que naturalmente existem entre todos os seres humanos. Precisamos que, no trabalho, as empresas tenham políticas promotoras de saúde mental e não políticas de trabalho que seja facilitadoras da instalação de doença mental. Precisamos de cidades que sejam desenhadas para favorecer comportamentos e hábitos de mobilidade mais saudáveis.
E precisamos de um sistema de saúde que identifique precocemente os sinais da doença, que diagnostique de forma correta as doenças que estão instaladas e que proporcione os tratamentos que são adequados para que cada pessoa possa recuperar ou estabilizar a sua doença.
"Temos de ser tão exigentes nas questões de saúde mental como somos nas questões oncológicas ou pediátricas"
Temos ainda algumas carências e, apesar de ter sido feito um investimento muito grande em saúde mental e de estar previsto um reforço significativo do investimento através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e de outros programas nacionais de dotação de infraestruturas e de pessoal para a saúde mental, ainda temos um caminho a fazer.
Mas eu penso que o caminho que está a ser seguido é positivo, o investimento que está a ser feito trará bons resultados, mas temos de continuar enquanto sociedade a ser tão exigentes nas questões de saúde mental como somos exigentes nas questões oncológicas ou pediátricas. Essa exigência é positiva e vai fazer a diferença nas decisões políticas que são tomadas em cada momento.
Os especialistas em saúde mental alertaram, já em 2020 e mais em 2021, sobre a existência de uma "pandemia de saúde mental", cujos efeitos se sentirão mais acentuadamente depois da crise sanitária ser ultrapassada. Havendo esta urgência, quais são os principais problemas nas questões de saúde mental que precisam de uma resposta já este ano?
Sempre que o ser humano é sujeito a adversidades extraordinárias como aquelas que estamos a viver, aquilo que acontece de forma mais frequente é o desenvolvimento de sintomas ansiosos e depressivos. As perturbações ansiosas e as perturbações depressivas são as doenças psiquiátricas mais comuns e são aquelas que mais se relacionam com as nossas condições de vida.
Precisamos que os médicos de família tenham condições para atender as pessoas que tenham estes sintomas, para poderem efetuar o diagnóstico e iniciar os tratamentos
Portanto, as respostas que devem ser montadas devem ser para estas doenças psiquiátricas mais comuns. E que respostas precisamos? Precisamos que os médicos de família tenham condições para atender as pessoas que tenham estes sintomas, para poderem efetuar o diagnóstico e iniciar os tratamentos. Precisamos que haja acessibilidade nos tratamentos que são de natureza farmacológica e de natureza psicológica. Precisamos também que a rede de referenciação hospitalar continue a funcionar como tem funcionado, e que os casos que não podem ser tratados nos cuidados de saúde primários sejam referenciados para a rede de serviços locais de psiquiatria e saúde mental, onde terão um acompanhamento mais vocacionado para as situações mais graves.
Aquilo que precisamos, na verdade, é que os cuidados de saúde primários possam ter condições para, com maior frequência, atender as pessoas e, dessa forma, poderem detetar e tratar mais cedo os quadros de depressão e ansiedade que naturalmente vão surgir.
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*A CDU não menciona a saúde mental no seu Compromisso Eleitoral de 2022, mas mantém o seu Programa Eleitoral de 2019, onde figura uma proposta para o "aumento da dotação financeira para a Saúde Mental".
Já o partido Chega, não mencionado pelo entrevistado, não apresenta qualquer proposta no seu programa eleitoral sobre saúde mental, nem faz menção sobre questões mentais.
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Serviços telefónicos de apoio emocional e prevenção ao suicídio em Portugal
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Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707
Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535
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