A Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) mostrou-se surpresa com a proposta da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que está a ser analisada pelo Ministério da Saúde e que prevê a possibilidade de os médicos de família e equipas poderem vir a ser avaliados com base na realização de abortos pelas utentes ou a existência de doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres. A APMGF entende a “necessidade” de aferir boas práticas na área do planeamento familiar, mas considera que este “não é um caminho”.
Recorde-se que, tal como noticiou o Público, em causa estão novos critérios de avaliação para guiar o novo regime remuneratório nas Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B).
“Após análise dos vários pontos enunciados neste indicador, a APMGF surpreende-se, entre outras, com a inclusão de uma dimensão relacionada com a interrupção voluntária da gravidez. Esta novidade espanta mais ao estar associada a uma penalização ao profissional de saúde que acompanha a mulher que opta por esta decisão”, começa por referir um comunicado da associação, presidida por Nuno Jacinto, divulgado esta quarta-feira.
Embora “a APMGF perceba a necessidade de serem aferidas boas práticas em saúde na área do planeamento familiar a nível dos cuidados de saúde primários, considera que este não é o caminho”, indica, referindo que estes indicadores “não avaliam boas práticas em planeamento familiar” e que “nenhuma avaliação de desempenho se pode sobrepor aos direitos individuais de uma pessoa”.
“Provavelmente procura medir-se aquilo que não se pretende. A interrupção voluntária da gravidez é um direito das mulheres, previsto na lei e adquirido após referendo nacional. Foi, à época, um passo importante no respeito pela dignidade e a autonomia das mulheres, contribuindo para o cumprimento pelo Estado da sua tarefa fundamental de promover a igualdade entre mulheres e homens”, sublinha.
A APMGF recorda que a realidade do país, “apresentada nos diversos relatórios” da Direção-Geral da Saúde (DGS), que validou a proposta, é que, desde a implementação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, “o número de interrupções de gravidez tem vindo sucessivamente a decrescer”. Além disso, “os últimos dados sobre este tema mostram-nos que desde 2011 não houve qualquer registo de morte de mulher por interrupção voluntária da gravidez”.
“Surpreende, portanto, que os órgãos decisores determinem que este assunto deva ser alvo de apreciação quando se avaliam boas práticas e desempenho dos profissionais dos cuidados de saúde primários. Estarão a querer dizer que a responsabilidade por esta decisão deverá ser imputada, ainda que em parte, aos profissionais de saúde?”, questionam.
A Associação diz que também “não considera aceitável que a monitorização das infeções sexualmente transmissíveis se destine única e exclusivamente às mulheres”, contribuindo para “a perpetuação de estereótipos de género na sexualidade das mulheres, impondo-lhes o ónus das doenças venéreas”.
A APMGF defende que para aumentar a acessibilidade às consultas de planeamento familiar são necessários mais médicos de família e entende que estes novos critérios podem promover um maior afastamento das mulheres dos cuidados de saúde primários e ao acesso seguro ao aborto.
“Ainda que a motivação para estas avaliações seja o aumento da acessibilidade às consultas de planeamento familiar, na nossa opinião, não se justificam para alcançar tal objetivo”, esclarecem.
“Para aumentar acessibilidade são necessários mais médicos de família, o que se prende com a capacidade, ou incapacidade, do SNS em reter os seus profissionais de saúde. Por outro lado, a nova dimensão relacionada com a interrupção voluntária da gravidez associada a uma conhecida penalização, com um inequívoco juízo moral, agora conhecido pela população, pode promover um maior afastamento das mulheres dos cuidados de saúde primários. Em última análise, pode mesmo contribuir para que se diminuam as interrupções de gravidez em segurança, aumentando os riscos para a vida das mulheres”, lê-se.
´A Associação termina referindo que "a ideologia de género, patriarcal, inerente a estas medidas é inaceitável e, como tal, estas devem ser retiradas do indicador mencionado. Não só importa não cairmos em conceitos paternalistas da prática médica, como não permitirmos que determinações superiores possam colocar em causa direitos individuais adquiridos e incorram em atitudes discriminatórias”.
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