Dependência do carro "começa com problemas graves de urbanismo"
O professor emérito da Universidade de Lisboa José Manuel Viegas considera que a "dependência excessiva do automóvel individual", que afeta as cidades portuguesas "sem exceção", começa "com problemas graves de urbanismo", que também dificultam o transporte coletivo.
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País Urbanismo
Questionado pela Lusa acerca do panorama geral da mobilidade nas cidades portuguesas, grandes ou médias, José Manuel Viegas disse que era "muito simples" caracterizá-lo: "dependência excessiva do automóvel individual, em todos os casos, sem exceção".
"Não fomos capazes de criar condições para que outros tipos de oferta de mobilidade pudessem ser suficientemente apelativas. Isto começa com problemas graves de urbanismo", disse à Lusa, em entrevista telefónica, o também presidente da empresa de consultoria de transportes TIS.
Segundo José Manuel Viegas, que falava em antecipação ao congresso Cidades que Caminham, que decorre no Porto na quinta e sexta-feira, o problema remonta à lei das finanças locais, em que houve, "durante vários anos, pela fórmula que era praticada, incentivos ao aumento do perímetro urbano", com a consequente "diminuição de densidade".
"Ao ir acrescentando pessoas, se eu as acrescentasse com um perímetro maior, o fundo de equilíbrio financeiro dava mais dinheiro às câmaras que tivessem esse aumento", explicou o antigo professor Catedrático de Transportes no Instituto Superior Técnico (IST).
Como resultado, em Portugal há um urbanismo "que é o oposto daquilo que se pode chamar o urbanismo de proximidade, o que leva a que, em muitas situações, não seja viável a simples provisão das coisas domésticas com deslocações a pé".
"Nós passámos muito tempo a pensar que bastava ter serviço de transportes coletivos, mas não é verdade", disse à Lusa, mencionando a necessidade de "fazer transbordos" com os respetivos tempos de espera, bem como a "frequência das carreiras".
José Manuel Viegas defende que "ter um transporte coletivo com uma frequência de serviço boa implica ter urbanismo denso", e ter "um urbanismo pouco denso" vai "inviabilizar um transporte coletivo mais frequente".
"O transporte coletivo em territórios de densidade baixa e pouca diversidade não funciona, não tem condições económicas para funcionar bem", considerou.
Sobre se é possível reverter o processo de dispersão urbana em Portugal, o académico reconheceu que "é mais difícil recuperar um tecido urbano disperso e monofuncional do que começar de novo", mas "se houver essa lucidez, pode-se ir fazendo".
"Quando se conseguir fazer um urbanismo compacto e diversificado de funções (...), tudo é mais fácil, porque grande parte das coisas podem ser feitas a pé", sustentou.
Nas cidades portuguesas, José Manuel Viegas disse que a questão também se prende com a existência ou não da "vida de bairro", onde "nalguns casos foi possível ser feita, se calhar um pouco por coincidência, mas aconteceu".
Dando o exemplo de Lisboa, referiu que os bairros de Campo de Ourique ou Alvalade têm essa vivência, mas zonas como Olivais ou Santos já não, até porque alguns territórios "perderam essa funcionalidade a favor dos turistas".
"Tudo isso aconteceu porque o mercado quis assim, nós não tivemos lucidez na decisão urbanística. Portanto, como foi deixado ao mercado, houve casos em que sim e casos em que não", caracterizou.
Na ausência da 'vida de bairro', disse, aumenta o uso do automóvel, cujas alternativas, "numa sociedade democrática", só podem ser sugeridas "com a introdução de alternativas interessantes, que deem vontade de experimentar".
Entre essas alternativas, José Manuel Viegas defende a bicicleta elétrica, que "sem qualquer dificuldade vence os declives fortes que há, quer em Lisboa quer no Porto".
"Há condições, no Porto como em Lisboa, como em todo o mundo, para dizer que se quisermos dar prioridade a quem não está a usar o automóvel individual, reafetar os espaços para que as pessoas se sintam seguras a andar a pé, de bicicleta, de trotinete ou de outra coisa qualquer", advogou.
O especialista reconheceu não estar "à espera que todas as pessoas que andam de automóvel sempre deixem de andar", mas algumas "andarão de automóvel menos vezes" se forem criadas condições, o que "pode ser o suficiente para se ir resolvendo o problema".
Segundo o professor emérito da Universidade de Lisboa, "a grande questão é convencer os decisores políticos, e isto em particular em Lisboa, no Porto e em Guimarães, que querem ser cidades de neutralidade carbónica já daqui a oito anos".
"Como é que querem fazer isso se não for com a promoção de todas estas formas de mobilidade, e não apenas do transporte coletivo, que não é viável para todo o lado?", questionou.
José Manuel Viegas disse ter a expectativa que, "com a perceção de que o agravamento é mesmo sério, particularmente em relação às mudanças climáticas, surja a coragem política para dizer que isto agora é mesmo sério".
Questionado sobre se a coragem política é o ponto mais importante, o especialista respondeu afirmativamente, adicionando "a lucidez de perceber a complexidade do problema".
"Se eu não me aperceber que o problema é muito complexo, acho que não é preciso coragem", concluiu à Lusa.
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