O debate sobre a aplicação da semana laboral de quatro dias faz eco das discussões que levaram à introdução do descanso aos sábados, estabelecido no século XX. Agora, com uma nova realidade onde “mudou tudo”, Pedro Gomes, economista e professor da Universidade de Londres, acredita que está na hora de juntar a sexta-feira à dupla do fim de semana.
Ainda que esta mudança tenha sido proporcionada pela pandemia, “a causa mais profunda tem a ver com uma mudança estrutural das nossas sociedades”, que viu não só novas tecnologias, como também a saída da mulher da esfera doméstica, pelo que “temos muito menos descanso”.
Nessa linha, o autor do livro ‘Sexta-feira é o Novo Sábado’ defendeu, em conversa com o Notícias ao Minuto, “uma melhor forma de organizar as economias avançadas”, que permite o aumento da produtividade, aliada ao bem-estar dos trabalhadores. Pedro Gomes será o coordenador do projeto-piloto que introduzirá a semana de quatro dias em Portugal, cuja apresentação deverá ser realizada aos parceiros sociais em outubro.
A pandemia fez mudar muito a nossa perspetiva sobre como encaramos o trabalho, e sobre como equilibramos o trabalho e a nossa vida pessoal, e fez muita gente repensar. Mas não foi a causa
A passagem de cinco para quatro dias de trabalho já 'conquistou' vários países um pouco por todo o mundo, tendo o Governo português assegurado que seriam estudadas "novas formas de organização dos tempos de trabalho". Assim, o que é que está por detrás deste fenómeno da semana de quatro dias?
Como referiu, está a acontecer um pouco por toda a parte nas economias avançadas. O gatilho foi, sem dúvida, a pandemia. A pandemia fez mudar muito a nossa perspetiva sobre como encaramos o trabalho, e sobre como equilibramos o trabalho e a nossa vida pessoal, e fez muita gente repensar. Mas não foi a causa. A causa mais profunda tem a ver com uma mudança estrutural das nossas sociedades.
Nos últimos 50 anos, mudou tudo. Mudou a tecnologia, a velocidade de comunicação, os tipos de trabalho, as práticas de gestão. Somos mais ricos, vivemos mais 10 anos, temos filhos cada vez mais tarde, estudamos mais, as mulheres começaram a participar muito mais no mercado de trabalho. Ou seja, houve mudanças profundíssimas que afetaram a nossa relação com o trabalho e como vemos a vida pessoal, mas uma coisa que não se alterou foi a semana de trabalho e as horas de trabalho.
Os trabalhos tornaram-se todos muito mais intensivos; são muito diferentes do que eram há 20, 30, 40 anos, sobretudo por causa do digital e da Internet e, por serem mais intensivos, precisamos de mais descanso.
Este movimento desta tensão que existe, e que é consequência destas mudanças tecnológicas, mostra que não nos soubemos adaptar. Não soubemos adaptar o nosso tempo de trabalho e a semana de trabalho a esta nova realidade
Por outro lado, temos muito menos descanso do que tínhamos antes. Antes, na organização da família, a mulher não trabalhava fora de casa, tratava da casa e da família, e agora não. Agora, as mulheres participam de forma muito elevada, mas significa que têm os dois trabalhos com muitas horas, com as mesmas ambições e, quando voltam a casa, não é tempo de descanso, nem de lazer. É tempo de tratar de tudo aquilo que ficou por tratar.
Ainda por cima, as mulheres são mães cada vez mais tarde, e os avós são avós cada vez mais tarde. Portanto, aquilo que existia muito há 20, 40 anos, do apoio dos avós aos pais a tomar conta das crianças, é cada vez mais difícil.
Isto está a acontecer um pouco por todo o lado. Esta tensão enorme e falta de tempo, que leva à questão do 'burnout', e a muitos problemas relacionados com as doenças mentais, foi acontecendo aos poucos, e a pandemia fez-nos repensar tudo.
Agora, quando estamos a voltar ao normal, já não queremos voltar à forma como trabalhávamos antes. Este movimento desta tensão que existe, e que é consequência destas mudanças tecnológicas, mostra que não nos soubemos adaptar. Não soubemos adaptar o nosso tempo de trabalho e a semana de trabalho a esta nova realidade.
Apesar das opiniões favoráveis, há, também, quem considere que tudo não passou de uma manobra política em tempo de eleições que, na prática, não será exequível, e as confederações patronais afirmam mesmo que não é algo prioritário. Considera que é essa a realidade portuguesa?
O que defendo é que a semana de trabalho de quatro dias é uma melhor forma de organizar as economias avançadas, tanto para os Estados Unidos, como para Inglaterra, como para Portugal. Claro que Portugal tem uma realidade económica diferente e, portanto, é muito importante ter isso em conta quando estamos a falar da implementação. Mas o piloto em si é um teste em algumas empresas; não estamos a falar ainda de uma política. Ninguém nos próximos três anos vai legislar sobre a semana de quatro dias.
Testar em Portugal é excelente; acho que vai obrigar as empresas que quiserem participar, sempre num regime voluntário e reversível, a pensar no que é a produtividade, porque a produtividade é muito difícil de medir. Muitas vezes, o que fazem é associar a produtividade ao número de horas. O que digo é ‘vamos pensar menos nas horas de trabalho, e pensar realmente no que é que é o produto final, o que é que é a produtividade’. Esse exercício é muito importante.
Sei que há um elemento de dimensão política do ‘Benfica-Sporting’, ‘Esquerda-Direita’, mas defendo que não temos de ver isto de uma forma partidária, [porque] o fim de semana de dois dias não é da Esquerda ou da Direita, é de todos. Portanto, o fim de semana de três dias também não seria da Esquerda, nem da Direita. Este projeto-piloto é apartidário. Vamos discutir com todos os interlocutores, Direita-Esquerda, e certamente sindicatos e entidades patronais, e espero que, quando apresentarmos o projeto aos parceiros sociais, possam todos mudar de opinião.
Se temos empresas que têm problemas de recrutamento e a alternativa que veem é ter de oferecer salários mais altos, se calhar uma melhor forma de contratação é melhorar as condições de trabalho
Quais são, então, as vantagens para a redução da semana laboral?
A semana de quatro dias é uma prática de gestão que tem sido implementada por muitas empresas, de vários setores, em vários países, porque melhora o negócio, do seu ponto de vista, e traz muitos benefícios. Empresas com problemas de recrutamento, que está a acontecer muito agora em Portugal, adotam a semana de quatro dias e [esses problemas] desaparecem.
Um banco digital inglês, o Atom Bank, testou e tornou permanente a semana de quatro dias e, passado umas semanas de o ter implementado, tinha 500% mais de candidaturas às suas vagas. Portanto, se temos empresas que têm problemas de recrutamento e a alternativa que veem é ter de oferecer salários mais altos, se calhar uma melhor forma de contratação é melhorar as condições de trabalho, nomeadamente oferecer a semana de quatro dias.
Sabemos que, em Portugal, a indústria do calçado e do vestuário tinha, há uns meses, taxas de absentismo de 20% diárias – são taxas de absentismo enormes. As empresas que implementam a semana de quatro dias veem que os trabalhadores faltam muito menos, e estão menos vezes doentes. Quando é preciso ir ao médico, tratar de papéis, ir à Segurança Social, têm sempre aquele dia, [o que] reduz a taxa de absentismo.
Reduz, também, acidentes de trabalho, erros no processo de produção, gastos com a energia, o que pode ser muito importante durante o próximo ano. O que as empresas estão a verificar é que conseguem organizar o trabalho em torno de quatro dias, têm uma série de benefícios, e muitas que testam acabam por adotar [a semana de quatro dias] de forma permanente.
Nos trabalhadores, tem um impacto enorme em termos de bem-estar, de felicidade, de redução do stress, e do 'burnout'.
Nessa linha, qual será o modelo de organização proposto para o projeto-piloto que coordenará no nosso país?
Em linhas gerais, propomos a semana de quatro dias sem cortes de salário, e com uma redução significativa de horas. Vai ser voluntário e reversível, não poderia ser de outra forma. Não estamos a falar de medidas de política pública para todas as empresas. O objetivo é medir o impacto nos trabalhadores e nas empresas no que toca a produtividade e os custos intermédios das empresas. O que é um projeto-piloto bem sucedido? Não é tanto a dimensão; é, sobretudo, a questão da avaliação.
Em termos genéricos, há três modelos que têm sido seguidos. Um é o que tem saído mais nas notícias, este último piloto no Reino Unido, que não é organizado pelo Estado. É [facilitado por] uma espécie de consultora ativista, sem fins lucrativos, que se chama 4 Day Week Global. O que fazem é liderado por Andrew Barnes, um empresário da Nova Zelândia que implementou [a semana de quatro dias] na sua empresa, e apoiam as empresas que queiram fazer esta mudança. Este é um formato em que o Estado não intervém, não há financiamento para as empresas, e são elas que pagam a esta consultora uma pequena quantia para ter acesso aos workshops e ao apoio.
Depois, há um outro tipo de projeto-piloto, na Islândia. Foi apenas no setor público, quer local, quer no Governo central, e em alguns departamentos. Há, também, um terceiro projeto, que é o de Espanha, mais virado para empresas industriais. A ideia é a inovação dentro da empresa, com novas máquinas, que permitam libertar o tempo dos trabalhadores. Aí, há um subsídio muito grande, que pode ir até 250 mil euros.
Nenhum é perfeito, mas são três bases que temos naquilo que estamos a desenhar para Portugal. Vamos tentar desenhar o nosso piloto, que seja mais enquadrado com a nossa realidade.
O que queremos ver é exatamente quanto aumenta esta produtividade por hora e, aqui, não tenho dúvidas de que vai aumentar. A questão é: vai aumentar os 25% necessários para manter a produção total com menos horas de trabalho?
E que pontos é que serão avaliados, especificamente?
São elementos dos trabalhadores - a questão do bem-estar, do 'burnout', de como é que usam o tempo nesses dias extra. O lado das empresas, será medir a produtividade, que pode ser medida de uma forma mais numérica, ou de forma concreta, com acidentes de trabalho, desperdício de matéria-prima, absentismo, custos a contratar trabalhadores temporários, que acontece muitas vezes com este absentismo, e os efeitos no recrutamento.
É possível reduzir o horário laboral sem reduzir a remuneração e a produtividade?
Vamos ver os efeitos na produtividade sem o corte de salário, com esta redução de horas. Imaginando que um trabalhador trabalha menos um dia, e que há um corte de horas na mesma produção de 40 para 32 [horas], para manter a produção total é preciso um aumento da produtividade por hora de 25%. Muitas empresas verificam isso. O que queremos ver é exatamente quanto aumenta esta produtividade por hora e, aqui, não tenho dúvidas de que vai aumentar. A questão é: vai aumentar os 25% necessários para manter a produção total com menos horas de trabalho? Ou aumenta 20%, 15%, 10%?
Imaginando que a produtividade por hora aumenta 10%, é extraordinário. Digam-me outra medida, outra política económica, que consiga aumentar a produtividade por hora, de um país, de uma empresa, em 10%? Sei que parece muito estranho pensar que, se trabalharmos menos horas, podemos produzir o mesmo, mas a verdade é que esta dúvida existiu quando passámos de seis dias de trabalho para cinco dias e, em muitas empresas, consegue-se. Não podemos pensar que se trabalharmos dois dias produzimos duas vezes mais, três produzimos três vezes mais, quatro produzimos quatro vezes mais, e cinco produzimos cinco vezes mais.
Não é assim porque, se temos menos horas, vamos dar prioridade às coisas mais importantes, e vamos organizar o trabalho de outra forma. O cansaço tem um grande impacto. Por isso, pensar que a produção é sempre proporcional às horas de trabalho, e que se aumentarmos 20% vamos produzir 20% mais, não é fidedigno. Sobretudo quando já trabalhámos muitas horas – cada hora a mais não está a acrescentar muita coisa e, às vezes, até faz pior, e gera erros.
Espero que o projeto gere uma discussão maior na sociedade portuguesa sobre o uso do tempo, e uma reflexão quer nas empresas, quer fora das empresas sobre o tema
Quanto tempo poderá demorar para que esta seja uma prática recorrente na nossa sociedade?
Vai demorar anos. Vai demorar muitos anos até a maioria das pessoas ter uma semana de quatro dias. Na melhor das hipóteses, assinava já que será perto de 10 anos, mas seria estupendo. Vai ser um processo muito lento. Este projeto-piloto, em si, está muito delimitado temporalmente. Vai estar enquadrado na legislatura e, portanto, vai dar-se nestes três anos, até 2025. Pode demorar menos do que os três anos, mas não vai demorar mais.
O que esperamos é ter resultados, ter estas experiências dos trabalhadores, que as empresas que testaram possa dizer quais são as dificuldades e as vantagens, para que, depois, se houver vontade de qualquer partido político, numas próximas eleições trazer propostas para avançar para uma outra dimensão.
Espero que o projeto gere uma discussão maior na sociedade portuguesa sobre o uso do tempo, e uma reflexão quer nas empresas, quer fora das empresas sobre o tema. Este tema é muito importante, mas não é urgente. Não é urgente no sentido em que vai estar connosco durante três anos, e há coisas do dia a dia que, provavelmente, são muito mais urgentes. É um debate para fazer com calma, e os próximos passos vão ser em outubro, quando saírem os detalhes do projeto.
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