Na terça-feira, quando questionado sobre a recolha de 424 testemunhos de abusos sexuais contra crianças na Igreja Católica em Portugal, o Presidente da República afirmou não estar surpreendido com este número.
"Significa que estamos perante um universo de pessoas que se relacionou com a Igreja Católica de milhões ou muitas centenas de milhares", prosseguiu Marcelo Rebelo de Sousa, concluindo: "Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque noutros países e com horizontes mais pequenos houve milhares de casos".
A opinião pública clama que o que disse Marcelo é um desrespeito e desvalorização da dor das vítimas, e que tais declarações podem impactar o processo de denúncia. A polémica está instalada e o Presidente já clarificou o que disse - várias vezes - mas nunca pediu desculpa.
"O que disse não devia ter sido dito", frisa a psicóloga clínica Vera de Melo, que garante que nunca vamos conhecer as "reais intenções do Sr. Presidente da República".
"O que disse pode descredibilizar toda a investigação e em última instância silenciar outras vítimas de abuso sexual. Parece exagero pensar assim, mas não nos podemos esquecer do sofrimento das vítimas e quanto é difícil ganhar coragem para o fazer. Ter alguém que descredibiliza esse processo leva a que vitima desacredite na justiça e no próprio processo de denúncia, achando que nunca será feita justiça e dado o poder do abusador, nunca será castigado", continua.
Para a especialista, a postura de Marcelo sobre este tema tem sido, "no mínimo, caricata", relembrando que foi o próprio quem avisou D. José Ornelas da investigação.
Acrescentando que "não é isto que é esperado de um Presidente da República", a psicóloga considera que, neste tema, dever-se-ia ter remetido ao silêncio e "esperar que quem sabe falasse e fizesse o seu trabalho".
"O seu lado impulsivo, 'opinador' e a tendência para 'desvalorizar' temas complexos, levou a que tecesse comentários que podem ter interpretações dúbias e ditar o rumo deste processo", afirma.
Para a, também, psicóloga clínica Inês Oliveira Ferreira, ainda não se pode afirmar com segurança quais as consequências das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa no processo de denúncia de possíveis vítimas, mas, assevera a especialista, "as vítimas de abusos sexuais precisam de se sentir seguras, acolhidas, e respeitadas para que possam denunciar".
"Tal deve verificar-se desde a primeira pessoa com quem falam à sociedade num todo. Estamos a falar de um crime grave com consequências também elas graves a curto, médio e longo prazo para as vítimas. Neste sentido, toda a comunicação acerca do mesmo deve ser cuidada procurando nunca fazer a vítima sentir-se desrespeitada ou desvalorizada", assevera.
Denunciar faz reviver experiência traumática e pode acentuar trauma
Para denunciar um abuso, há todo um processo pelo qual a vítima tem de passar que exige reviver o sucedido. É um processo doloroso, relembram as psicólogas, e deve ser acompanhado com empatia.
"Para a vítima, quando denuncia, há um reviver de toda a experiência traumática que pode acentuar o trauma já existente. Muitas vezes pode acontecer uma revitimização, que acontece não só pela partilha descritiva do que aconteceu como pelo processo judicial que muitas vezes é moroso, pelo impacto que tem nas famílias e pelo julgamento associado ao processo", sustenta Inês Oliveira Ferreira.
O processo de denúncia, que deve ocorrer junto das autoridades competentes - deve ocorrer em articulação com os mais diversos serviços de apoio a vítimas e, se aplicável, "serviços de proteção de crianças e jovens, de forma a existir acompanhamento psicológico e social tanto à vítima como à sua família", lembra Vera de Melo.
"É fundamental o suporte psicológico para preparar vítimas e família para os processos adjacentes e para prevenir e intervir nas consequências emocionais e sociais que este tipo de crime acarreta", afiança a especialista.
Segundo Inês Oliveira Ferreira, muitas vezes o que impede a denúncia é o medo, muitas vezes instaurado pela agressor, "sentimentos de culpa e vergonha, uma vez que muitas pessoas consideram que tiveram responsabilidade naquilo que lhes aconteceu".
Em muitos casos, com ou sem denúncia, muitas das vítimas acabam por desenvolver doenças como depressão, ansiedade, consumos de álcool e drogas e até doenças relacionadas com a imagem corporal.
"Em regra e por experiência clínica, sentem a sua integridade física e moral atacadas e este episódio é sentido como um verdadeiro trauma", explica Vera de Melo, que assegura que o stress é tão "intenso e tão angustiante" que é externalizado sob a forma de vários sintomas físicos, surgem por exemplo, dificuldades em dormir, dores de cabeça, dores de barriga, entre outros.
"A memória é tão traumática que basta um som parecido ao do dia do crime, ou um local ou imagem, para desencadear reações físicas intensas de medo/ansiedade", sustenta.
Paralelamente a confiança nos outros pode perder-se, levando a que a vítima esteja constantemente “em alerta”, em “modo desconfiado”, podendo afetar a forma como se relaciona com os outros, quer a nível pessoal, quer profissionalmente.
O que fazer se conhecermos uma vítima que ainda não denunciou?
Segundo a psicóloga clínica Inês Oliveira Ferreira, os estudos mostram que a maioria das vítimas não denunciam o crime, sendo os números superiores quando as vítimas são do sexo masculino.
"Acima de tudo é importante respeitar o tempo e o espaço da vítima, não a forçando a fazer algo que ela não quer", diz. "Quando falamos destas denúncias, falamos de adultos que estão a reportar a sua história de abuso sexual e têm de ser eles próprios a fazer essa denúncia", assevera. Assim, para Inês Oliveira Ferreira, é extremamente importante escutar a vítima e reforçar que "a culpa não é dela e que o sentimento de vergonha não tem existir".
Devemos também mostrar disponibilidade - se assim o entendermos - de acompanhar a pessoa no processo, para que esta se sinta validada. A ansiedade é muito normal nestes processos, portanto poderá ser uma mais valia contactar um profissional de saúde para acompanhar a vítima.
Já para Vera de Melo, "não devemos ser cúmplices sempre que soubermos que alguém foi vítima". A forma de não o ser é denunciar às autoridades competentes, sendo que o ideal é" apoiar e suportar a vítima para que o consiga fazer".
"Não nos podemos esquecer, que as vítimas são, agora, maiores de idade pelo que, devidamente auxiliadas, o conseguem fazer. O nosso papel pode ainda passar pelo fornecimento de informação sobre o processo de denúncia e os benefícios desta para si e para toda uma sociedade", afirma.
Mesmo não conhecendo diretamente uma vítima de abusos, enquanto sociedade há muito que se pode fazer para estimular a coragem dos que ainda estão em silêncio.
Para a psicóloga Vera de Melo, "urge empoderar as vítimas, contribuindo para a diminuição da vergonha e para o aumento das denúncias" e por outro lado, é necessário existir "mais literacia sobre este tema para que com a informação recebida, se consigam mudar mentalidades e aumentar a visibilidade de quem inocentemente sofre".
Em Portugal "urge mudar a mentalidade face à forma como se olha para o abuso sexual", ajuíza ainda a especialista, que considera que as penas em Portugal não refletem a gravidade dos atos praticados.
"Há um longo caminho a percorrer sobre este tema. Se algum de nós estivesse, ainda que uma vez, com uma vítima de abuso sexual, perceberia o seu sofrimento e quanto este episódio marca a sua vida e, por vezes, dita as suas escolhas futuras. Penas reduzidas, suspensas muitas vezes, sem qualquer foco na mudança efetiva de foco da satisfação do prazer, não contribuem claramente para se acreditar que se faz justiça nestas situações", afirma.
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