Em seis anos, associação ajudou quase 600 homens vítimas de abuso sexual
Quase 600 homens vítimas de abusos sexuais procuraram a Quebrar o Silêncio desde a sua fundação há seis anos, pessoas como Manuel, Mário, Paulo ou Miguel, para quem a associação ajudou a gerir culpas e traumas e encontraram apoio "crucial".
© Reuters
País Violência sexual
Desde que foi criada, em 2017, a associação recebeu 594 pedidos de ajuda, quase cem por cada ano de existência.
Em 2022 a Quebrar o Silêncio "voltou a registar um aumento nos pedidos de ajuda", tendo 127 homens ou rapazes vítimas de abusos sexuais procurado a associação, o que representa "uma média de 10,5 novos casos por mês".
"Janeiro e setembro foram os meses com a maior procura, tendo a associação registado 18 novos pedidos em cada um destes meses", revelou a associação, no dia do seu aniversário.
De acordo com o presidente da associação, Ângelo Fernandes, a Quebrar o Silêncio registou um aumento no número de casos de 20% entre 2020 e 2021 e de cerca de 15% entre 2021 e 2022.
Mário, 56 anos, conheceu a associação através de um amigo, quando já nada o preenchia e só queria morrer. Vítima de abusos sexuais de forma continuada durante toda a vida, contou à Lusa que a "primeira recordação" que tem é de ter sido abusado por um grupo de jovens, quando tinha cinco anos.
"O apoio dado foi crucial para voltar a sorrir e abraçar a vida", admitiu, revelando que hoje se sente uma pessoa capaz de dizer 'não', "mais assertiva e sem sentimentos de culpa", depois das várias consultas na associação que o ajudaram a reerguer-se de "uma profunda depressão".
Graças à Quebrar o Silêncio, Mário aprendeu a "aceitar o passado e a viver o presente", a não silenciar a dor ou os medos e a enfrentar os problemas de frente.
"Acima de tudo, aprendi a não ter sentimentos de culpa. Já gosto de mim, já cuido de mim, já me olho ao espelho", disse.
A história de Manuel, 33 anos, tem semelhanças com a de Mário, já que também sofreu violência sexual durante a infância por parte de "meninos mais velhos" e só em adulto, quando viveu "novamente uma situação muito próxima dos acontecimentos de infância", decidiu "procurar ajuda para curar as feridas".
Graças ao apoio psicológico e às reuniões de grupo diz ter conseguido recuperar a autoestima, aprendido a dizer 'não' e a compreender que a culpa não é sua.
"Consegui valorizar a minha história e principalmente compreender que tudo o que eu passei não define quem sou", contou à Lusa, através de um depoimento por escrito.
Para Paulo, 35 anos, "não é só a experiência que é traumatizante, mas também a pós-experiência. Carregar em silêncio todas as crenças e questionamentos é também bastante pesado", escreve, em resposta a perguntas da Lusa.
Não sabe precisar a idade que tinha quando foi abusado pela primeira vez, mas recorda-se que foi por parte de um adolescente mais velho, numas férias de verão, quando brincava todos os dias na rua com os amigos. Um dia foram todos brincar para casa do adolescente e Paulo acabou sozinho com ele.
"Ele começou a tocar-me e eu não consegui reagir. Muito me culpei pela minha não-reação, mas eu era apenas uma criança e estava com bastante medo", recordou.
Encontrou a Quebrar o Silêncio através de pesquisas na Internet e só de ler os testemunhos no 'site' percebeu que não estava sozinho e com isso aceitar que "precisava de ajuda".
"A solidão é algo devastador e não partilhar nada com ninguém é muito duro. Aqui encontrei alguém que não só me ouvisse, mas que me entendesse", revelou, acrescentando que a ajuda da associação "foi super determinante".
Com 47 anos, Miguel tem noção que o apoio psicológico que começou a ter ainda antes da pandemia, para lidar com uma ansiedade crescente e feridas profundas, não estava a ser suficiente e, quase por coincidência, deparou-se com a Quebrar o Silêncio através de uma rede social.
Durante muito tempo acreditou não que tivesse sido vítima de abusos sexuais, mas antes que tinha iniciado a sua vida sexual muito jovem, por volta dos oito anos, com pessoas do seu "convívio indireto", como "maridos e professores, pais de amigos e amigas, vizinhos de coleguinhas com as quais brincava", chegando a levar adultos para casa quando tinha 12 anos.
"As coisas passaram a ocorrer dentro da minha casa, dentro da casa onde eu vivia com a minha mãe, nos horários em que ela estava a trabalhar. A minha mãe era dessas que trabalhava todo o tempo", recordou.
Só em adulto, e depois de confrontado por um colega, é que percebeu que o que lhe tinha acontecido não eram "aventuras de criança", mas sim "experiências de abuso".
Apesar de ainda não conseguir comensurar a ajuda dada pela associação, explicou que todo o apoio dado até agora teve como resultado que Miguel tivesse passado de vítima a sobrevivente, porque ser vítima era "fator de grande sofrimento".
"Como sobrevivente, eu agora olho para essa criança não como a criança ousada que procurava o abusador, mas sim como a criança que tinha imensas carências, imensas demandas em termos afetivos e que não era nem nunca foi correspondida", admitiu, revelando que quer muito conseguir escrever um livro sobre tudo o que se passou.
O presidente da Quebrar o Silêncio, também ele vítima de abusos sexuais em criança, acredita que a associação, apesar da sua curta existência, tem conseguido fazer trabalho de sensibilização sobre uma questão tabu e levar cada vez mais homens a procurar ajuda especializada, entre apoio psicológico, gestão de trauma e grupos de ajuda mútua.
Segundo Ângelo Fernandes, o perfil de quem procura ajuda tem vindo a mudar, referindo que têm aparecido homens mais jovens, ao mesmo tempo que se mantêm os pedidos de ajuda por parte de homens com 60 ou 70 anos. Em comum têm o facto de pedirem ajuda pela primeira vez.
Adiantou que a associação irá continuar o seu trabalho de sensibilização e formação, defendendo nesta matéria que deveria haver uma aposta na formação dos profissionais de saúde em trauma ou violência sexual.
A associação planeia também em 2023 publicar um guia para a comunicação social com orientações sobre escrita de notícias sobre violência sexual.
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