A vida em Rabo de Peixe não era fácil. Mesmo antes da desgraça. Mesmo antes de, em junho de 2001, os mais de 505 kg de cocaína 80% pura que iam a bordo de um iate Sun Kiss 47, terem dado à costa. Isto, se o barco levava mesmo só meia tonelada - há quem acredite que levaria muito mais.
O mar estava agitado e o vento forte derrubou o mastro do iate conduzido por um traficante italiano, impedindo que este escapasse pelos Açores como tinha planeado - Espanha era o destino. Assim, impossibilitado de ir para o porto (a polícia descobriria a carga), decidiu atirar alguns dos fardos de cocaína ao mar e os restantes foram levados para uma gruta no norte da ilha, perto de Rabo de Peixe.
Ali, e segundo a investigação policial que se seguiu, a droga foi presa com redes de pesca e correntes e submersas na água com uma âncora. Só que a maré começou a subir, as ondas bateram nas enseadas rochosas da ilha e a rede que segurava a cocaína desfez-se. Eventualmente, os pacotes começaram a chegar à praia. A notícia espalhou-se e dezenas acorreram a ver o que era aquilo.
Antes do incidente, para além da pesca, poucos recursos haviam ali para explorar. Depois, passou a haver droga para dar e vender.
Poucos eram os que sabiam o que eram aqueles blocos brancos que viriam a abastecer as casas dos rabo-peixenses. Reza a lenda que, perante o desconhecimento, a cocaína pura foi usada como farinha para fritar o peixe ou açúcar para adocicar o café.
Perante a facilidade de compra a preços irrisórios, seguiram-se as sobredosagens (overdose) e as vidas de uma geração inteira viram-se condenadas pelo infortúnio daquela maré.
"Polícia sustentou que eram apenas 500kg, mas isso é um absurdo"
A polícia conseguiu apreender 400kg na primeira operação do género no arquipélago. O restante ficou com os habitantes locais. “A polícia sustentou que o iate transportava apenas 500kg, mas isso é um absurdo”, diz ao El País Nuno Mendes, jornalista enviado para cobrir o caso no jornal Publico. "O barco pode levar até 3.000kg e ninguém vai cruzar o Atlântico levando apenas uma pequena percentagem do que pode levar. Cem quilos de cocaína, por mais nobre que seja, não destrói uma geração".
A verdade é que os dados oficiais desta tragédia nunca foram conhecidos. Nem os da droga, nem os das sobredosagens. No dia 7 de julho, recorda o The Guardian, a primeira página do Açoriano Oriental abriu com a manchete 'Cocaína mata em São Miguel'. O artigo relatou um aumento no número de overdoses e a morte de um jovem.
Segundo a jornalista Teresa Nóbrega, que trabalhou na RTP Açores "durante 10 dias, os avisos ocuparam grande parte dos noticiários". "Os médicos apareciam na televisão a implorar para que as pessoas acabassem com aquela loucura. Foram semanas de pânico, terror e caos. Ninguém estava preparado para algo assim. A ponto de, quase 20 anos depois, continuar a afetar-nos", afirmou ao mesmo jornal em 2017.
A polícia tentava confiscar a droga que tinha ficado pela ilha e, ao mesmo tempo, apanhar os responsáveis. Após duas semanas de buscas exaustivas no porto de Ponta Delgada, a polícia encontrou um pequeno pacote habilmente escondido num iate atracado no porto. O pacote estava embrulhado em jornal com o mesmo nome e data daquele que estava nos fardos de cocaína que chegaram à praia. E foi assim que polícia prendeu o único homem no barco, Antoni Quinzi, um siciliano de Trapani.
Dez dias depois da sua prisão, Quinzi saltou o muro, acenou para a polícia e fugiu numa Vespa. Foi novamente detido duas semanas depois e cumpriu pena em Coimbra.
© Foto divulgada à data pelo Polícia
Agora, a série portuguesa desembarcou na Netflix e já é um sucesso. É inspirada nestes factos e o elenco conta, como protagonistas, com José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, André Leitão e Kelly Bailey. Maria João Bastos, Pepê Rapazote, Albano Jerónimo e Afonso Pimentel também fazem parte do leque de atores.
Os moradores esperam a agora que a série vire de novo as atenções para a vila e que refaça a imagem e o estigma criados.
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