Saint-Exupéry, sr. Levindo e o caminho sem saída dos cuidados continuados

A cadeira de Levindo Rente desliza pelo corredor até à sala da fisioterapia, um caminho sem saída. Aos 74 anos, é um caso social, poderia estar num lar, mas não. É vítima de um bloqueio em cadeia.

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Lusa
27/06/2023 07:15 ‧ 27/06/2023 por Lusa

País

Cuidados Continuados

Na Rede Nacional de Cuidados Continuados, uma em cada quatro camas está ocupada por pessoas que deveriam estar, por exemplo, em lares.

Na unidade da Cercitop visitada pela Lusa, no concelho de Sintra, são cerca de metade. Mas a Associação Nacional de Cuidados Continuados (ANCC) tem associadas em que duas em cada três camas são ocupadas com casos deste tipo.

"Os hospitais querem libertar camas, porque há pessoas que precisam efetivamente de cuidados, e têm lá pessoas que não precisam. Quem precisa, não consegue vir para os cuidados continuados e, dos cuidados continuados, (...) não se consegue ir para lares de idosos, ou centros de dia/noite ou até para o domicílio, com algum apoio", explica José Bourdain, presidente da ANCC.

"Para nós não é um drama ter casos sociais. O drama é para a sociedade", diz José Bourdain: "Está tudo bloqueado em cadeia".

Com mais respostas sociais na comunidade, as pessoas que já perderam a sua casa poderiam optar por estar "numa estrutura residencial, ou viver num pequeno apartamento", mantendo a sua autonomia, com apoio domiciliário, exemplifica.

Os casos sociais da Cercitop, em Algueirão-Mem Martins, no concelho de Sintra, dividem-se entre as camas que a unidade tem para média duração, onde se deveria estar apenas três meses, e as de longa duração, para onde se vai quando a recuperação vai para além dos três meses.

Em ambos os casos, "deveriam ser sempre respostas temporárias", lembra a diretora desta Unidade de Cuidados Continuados, Dulce Vargas.

De paredes brancas e corrimão azul, o corredor, que parece de um hospital, leva à sala de fisioterapia, onde alguns idosos fazem exercícios orientados por terapeutas. Outros juntam-se numa das várias atividades de trabalhos manuais.

Na semana em que a Lusa visitou a unidade, por exemplo, o refeitório estava todo decorado com bandeiras do Reino Unido e pequenos soldados da guarda real recortados em papel pelos idosos. "Organizamos semanas temáticas e tudo é feito por eles. Esta é a semana do Reino Unido", conta Dulce Vargas. O almoço era o típico "fish and chips" (peixe com batatas fritas).

Frente ao corredor, a frase de Antoine Saint-Exupéry lembra que "O que cura uma pessoa é dar um passo. E depois mais um". Mas os casos sociais não conseguem sequer dar o primeiro passo para sair dali. Estão bloqueadas no sistema por falta de vagas onde deveriam estar.

A Cercitop é uma das associadas da ANCC, que representa mais de 1.100 camas de cuidados continuados. Ocupadas por casos sociais estão mais de 300, cerca de 30%. Contudo, há unidades que têm 68% das camas nestas condições. Se estivessem livres, ajudariam os hospitais a libertar as que têm ocupadas por pessoas que já tiveram alta, podendo assim responder a doentes que precisam de internamento.

"Se a unidade tem metade da ocupação com casos sociais, os utentes que estão a aguardar vaga na rede [de cuidados continuados] e que precisam realmente deste tipo de cuidados de reabilitação não têm vaga", explica Dulce Vargas, insistindo: "Muitos deles acabam por ter alta hospitalar, muito pressionados para regressar ao domicílio, e, como as famílias não têm como os colocar na rede, ficam [em casa] a aguardar vaga".

As camas consideradas de média duração deveriam acolher utentes por um período de até três meses. Mas na Cercitop, por exemplo, o utente mais antigo ocupa uma delas há sete anos.

"Depois, tenho utentes de 2019, 2020 e por aí fora. No fundo, são casos sociais, ou porque a família não é presente, ou porque os familiares, mesmo sendo presentes, não têm capacidade de levar estes utentes para o domicílio ou custear um lar lucrativo [privado]. Aqui aguardam vaga, por exemplo, para um lar da segurança social, que leva anos", explica a responsável.

Dulce Vargas insiste que há muitas pessoas no lugar errado: "Temos utentes em ERPI [Estrutura Residencial para Idosos] que deveriam estar em unidades de cuidados continuados e temos utentes em unidades de cuidados continuados que, provavelmente, teriam critério para estar numa ERPI".

Se houvesse uma avaliação rigorosa, defende, "os utentes acabavam por ter os cuidados de que realmente precisam".

Defende também que os critérios que determinam se o utente deve ir para uma unidade de média ou longa duração, ou para um lar, deveriam ser redefinidos e explica: "Os critérios para entrar, por exemplo, numa unidade de longa duração são muito abrangentes".

"Como as famílias hoje em dia têm conhecimento das leis, qualquer pessoa, no fundo, consegue ter critério para estar numa unidade de longa duração", lamenta a responsável, frisando que o raciocínio certo deveria ser sempre encarar os cuidados continuados como temporários.

Como isso não acontece, por falta de vagas nos lares e noutras respostas sociais na comunidade, os utentes acabam em unidades da rede de cuidados continuados, onde ficam durante anos.

Alguns, como Levinto Rente, que tem uma família "muito presente", ainda sorriem e lembra-se da idade que têm. Outros ficam de olhar perdido, a aguardar que aquele corredor de corrimão azul os leve a uma saída, num país cada vez mais envelhecido.

Leia Também: Unidades de cuidados continuados queixam-se de burocracia

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