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"Se passarem num supermercado no fecho, abram o lixo: é assustador"

Marta Cerqueira, fundadora da Peggada, plataforma que nasceu em 2020 e que reúne, entre vários conteúdos, os negócios sustentáveis do país, é a convidada do Vozes ao Minuto desta segunda-feira.

"Se passarem num supermercado no fecho, abram o lixo: é assustador"

Marta Cerqueira é fundadora da plataforma Peggada, uma referência sobre sustentabilidade em Portugal. Nas redes sociais, habituou também aqueles que a seguem a acompanhar o seu desejo e a sua luta para salvar o planeta, bem como o seu lado enquanto mulher e mãe do pequeno Zé.

Jornalista e empreendedora, diz não ter um "momento-chave" em que despertou para a importância da sustentabilidade, mas foi aprendendo cada vez mais a mudar a sua pegada ecológica e a "partilhar essa informação". Numa altura em que muito se fala de ação climática, admite que tem "muita fé" nos jovens de hoje.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Marta Cerqueira, que cresceu numa pequena aldeia do Alto Minho e que agora vive em Lisboa, defende que as mudanças "não têm de ser radicais" e acredita que as pequenas transformações "têm mais tendência a perdurar no tempo". 

Nesta conversa, fala-nos sobre vegetarianismo, comprar a granel, desperdício alimentar e partilha a sua experiência com 'dumpster diving', termo usado para a ação de vasculhar no lixo. A este respeito, deixa o convite: "Se um dia passarem num supermercado à hora de fecho, experimentem abrir o caixote do lixo à porta: é assustador".

Antes de falarmos um bocadinho do seu projeto, gostava de começar por lhe perguntar como é que despertou para a sustentabilidade? Sempre se preocupou ou foi algo que nasceu já em adulta?

Fazem-me muitas vezes essa pergunta e adorava dizer que tinha aquele momento-chave que fez mudar tudo, mas não aconteceu assim. Nem é algo que venha na minha família. Quer dizer, na verdade, se nós pensarmos nos nossos avós, quase todos eles tinham algumas práticas, principalmente porque eu cresci numa aldeia. Há práticas que eles faziam que agora têm outros nomes. Na altura, por outras razões, mais financeiras do que propriamente ambientais. Mas, na minha família mais direta, ou seja os meus pais e o meu irmão, não era de todo uma preocupação e eu estou agora a levar-lhe estas ideias. Foi um bocadinho a junção da minha vida pessoal com a minha vida profissional. Quando há uns anos se começou a falar mais sobre sustentabilidade, trabalhava como jornalista e foi quando tive mais oportunidade para começar a escrever sobre estes temas. Ainda que no início tivesse sido um bocadinho picar pedra e provar às minhas editorias que era um tema que despertava a atenção das pessoas. Ao mesmo tempo, foi numa altura em que se começou a saber mais, começaram também a abrir muitos negócios ligados à sustentabilidade, pequenos projetos, marcas, então começou a ser uma coisa que tanto ocupava a minha vida profissional, como a minha vida pessoal. Comecei também a adquirir novos hábitos. Quando mais ia aprendendo, mais queria implementar na minha vida, mais queria passar essa informação aos outros e foi um caminho gradual.

Sou vegetariana, neste momento, e o Alto Minho é uma zona onde isso é muito difícil de praticar, tanto em família, como fora de casa

Referia-se à sua família e ao facto de lhes começar a incutir alguns hábitos. Como disse, cresceu numa aldeia, quem a acompanha sabe que é do Alto Minho, como é que eles olham para este lado da sua vida?

Sou diferente em muita coisa, não só neste lado da sustentabilidade. Então, é só mais uma coisa em que a Marta é diferente. Por exemplo, eu sou vegetariana, neste momento, e o Alto Minho é uma zona onde isso é muito difícil de praticar, tanto em família, como fora de casa. E, ao mesmo tempo, neste lado da sustentabilidade, fora a parte da alimentação, se há coisas que eles não levam para a vida deles aceitam e apoiam aquilo que eu faço. Eles não compram roupa em segunda mão, mas eu compro, e respeitam o facto de, para o meu filho, eu preferir sempre poucos presentes e que esses presentes sejam com algum significado, ou comprados em segunda mão, ou que sejam realmente úteis, ou, preferencialmente, que sejam experiências e não coisas. Mas, depois, também tenho pequenas conquistas. A minha família começou a reciclar não há muitos anos e volta e meia ainda recebo algumas mensagens: 'Marta onde é que eu ponho isto? Onde é que eu ponho aquilo?'. É giro. Começaram a cozinhar vegetariano quando eu vou lá e quando a minha família vai lá. A minha mãe, no outro dia, comprou um shampoo sólido e eu fiquei do tipo 'uau'. Portanto, são assim pequenas coisinhas que eles também vão bebendo da minha parte.

É vegetariana, mas pela forma como fala não defende extremismos, certo?

De todo. 

O impacto da carne é mesmo muito grande e a parte da alimentação é uma das que poderá ter mais impacto nas alterações climáticas. Se tivermos de escolher um setor da nossa vida para melhorar, talvez seja aquele que tem mais impacto. Mas, essa mudança, não tem de ser radical

É assim tão importante reduzir, pelo menos, o consumo de carne?

O impacto da carne é mesmo muito grande e a parte da alimentação é uma das que poderá ter mais impacto nas alterações climáticas. Se tivermos de escolher um setor da nossa vida para melhorar, talvez seja aquele que tem mais impacto. Mas, essa mudança, não tem de ser radical. Posso contar a minha experiência. Comia de tudo, depois fui cortando aos poucos. Comecei por cortar a carne vermelha, depois cortei toda a carne, que já não como há muitos anos, mas só há cerca de dois anos é que cortei o peixe. E, mesmo assim, não gosto nada de rótulos, custa-me dizer 'sou vegetariana' porque não quer dizer que daqui a uns meses, por exemplo, no Natal, não coma o bacalhau. Neste momento, sim, sou vegetariana. Aqui em casa somos os três vegetarianos.

O impacto é grande, mas pode começar por pequenos passos, como por exemplo, cortar a carne, se for fácil. Na verdade, nenhuma mudança é fácil mesmo que seja para uma coisa boa, portanto, requer esforço. Se esse esforço for megalómano, como uma pessoa super carnívora, que não vê a alimentação sem ser com base em carne e peixe, se calhar, de um dia para o outro virar vegetariano vai ser uma mudança muito radical e que vai ser difícil mantê-la no tempo. Essa pessoa, se quiser realmente fazer alguma mudança na alimentação, pode começar por fazer as 'Segundas Sem Carne', um movimento que apela a que, pelo menos, à segunda-feira se façam refeições vegetarianas. E depois, até em vez de ser só à segunda, fazemos à segunda e à sexta. Ou, por exemplo, ir explorar e, em vez de ir a um restaurante dito tradicional, ir ao restaurante vegetariano, ir ao restaurante e experimentar a opção vegetariana, agora quase todos têm. Portanto, ir fazendo pequenas mudanças. Acredito que as pequenas mudanças têm mais tendência a perdurar no tempo e depois acaba por ser um bocadinho viciante. Nós queremos sempre fazer mais, então, vamos acrescentando mudança a mudança, até depois haver uma mudança maior.

Já falou algumas vezes no seu filho. Foi mãe recentemente e uma criança muda muita coisa. Tornou-se mais desafiante levar este seu modo de vida com uma criança? Como é que fez para evitar o lixo que é criado, como, por exemplo, fraldas.

Às vezes, para muitos casais, a chegada de um filho é motivação para mudar em muita coisa, como na alimentação.  No nosso caso, não aconteceu isso porque foi apenas um prolongamento do que já fazíamos na nossa vida. Claro que muda muita coisa, não digo que não, mas foi um bocadinho adaptar. E informação acima de tudo. Por exemplo, quando foi a questão das fraldas, nós percebemos que havia fraldas reutilizáveis, informámo-nos sobre o assunto. Adquirimos quase todas as nossas fraldas em segunda mão e, até hoje, o Zé usa fraldas reutilizáveis, bem como toalhitas. Mais uma vez, nunca extremismos. Nós viajamos bastante. Durante as viagens, usamos fraldas descartáveis, porque, senão, implicaria mais uma mala só de fraldas. Tal como as toalhitas descartáveis. Eu tenho um pacote de toalhitas descartáveis em casa, que usamos em alguma emergência, está lá há meses. Tínhamos dois lençóis grandes, cortámos em quadradinhos, em formato toalhitas, e temos perto do muda-fraldas, molhamos e usamos como toalhitas. Também temos a sorte de estar numa escola muito alinhada connosco -  aliás, não somos os únicos pais a fazer isso - e que aceita o uso de fraldas reutilizáveis e das toalhitas também. Depois, tudo o resto. As crianças precisam de mudar roupa e calçado com bastante frequência. Se, para mim, já compro tudo em segunda mão, para um bebé então, que vai usar durante tão pouco tempo, não faz sentido usar novo. E quando precisamos de alguma coisa em especial, aí sim o que eu faço é, porque eu sei que as pessoas gostam de dar presentes, apontar as necessidades do Zé. Às vezes pode ser roupa ou algum brinquedo em especial e digo: 'Ok, vocês querem oferecer um presente, o Zé está a precisar disto'.

Tentei inscrever o meu filho em escolas onde não aceitavam fraldas reutilizáveis. Não há nenhuma lei que diga isto. Se eu quiser que o meu filho use fraldas reutilizáveis, ele vai usar. Mas há escolas que se recusam e, enquanto pai, é muito difícil este confronto

Acabou de mencionar que na escola que o Zé frequenta foi um processo fácil e aceitam as vossas escolhas. Foi uma preocupação? Ou seja, ao escolher a escola do seu filho, procurou encontrar alguma coisa que se adaptasse ao seu estilo de vida?

Foi e foi um pesadelo. É difícil encontrar uma escola e encontrar uma escola que vá ao encontro de alguns dos princípios de que não queres abdicar é ainda mais difícil. A alimentação é um drama nacional, que eu não tinha noção até entrar neste mundo da maternidade. Não falando apenas na parte da sustentabilidade, mas falando na parte nutricional das ementas. É péssimo. Em muitas escolas não há sequer opção vegetariana, é tudo à base de muito poucos legumes, lanches açucarados. Nas escolas onde não havia opção vegetariana teríamos de ser nós a levar e eu acho isso um bocado injusto. Além de que o Zé seria sempre aquele que ia comer comida de fora, de casa, seria sempre diferente, e eu não gosto disso. Também cheguei a tentar inscrever o Zé em escolas onde não aceitavam fraldas reutilizáveis. Não há nenhuma lei que diga isto. Se eu quiser que o meu filho use fraldas reutilizáveis, ele vai usar. Mas há escolas que se recusam e, enquanto pai, é muito difícil este confronto com o sítio onde tu queres deixar o teu filho em paz e segurança. 

Uma das críticas que deve ouvir muito, ou uma das perguntas que mais lhe devem fazer, é se o Zé, por ser vegetariano e ser uma criança em crescimento, será uma criança saudável. Como é que responde a isto?

Respondo com o facto de ele ser o mais alto da turma dele [risos]. Estou a brincar, até porque não tenho a certeza do que estou a dizer. Mas ele é um bebé super saudável e eu não fiz isto de ânimo leve. Portanto, senti que precisava de algum acompanhamento. O Zé é seguido por uma pediatra que vai muito ao encontro daquilo em que nós acreditamos – acho que tens de te rodear de pessoas que te vão dar alguma segurança. Depois, quando houve introdução alimentar, nós fizemos o método BLW (Baby-led Weaning), que foge ao tradicional e que dá autonomia ao bebé para ele escolher o que comer e as quantidades. Fomos a uma nutricionista, por acaso não vegetariana, mas completamente preparada para nos ajudar nessa parte e que nos ajudou até enquanto família a perceber alguns erros que íamos cometendo ou algumas coisas que poderíamos melhorar nos nossos pratos. Foi bom para todos. Era  também essa a minha intenção porque, às vezes, enquanto adultos, facilitamos um bocado, mas depois quando é um bebé, introdução alimentar, e ainda por cima num sistema pouco tradicional, em que não é à base de sopas e papas, queremos ter a certeza que aquele pratinho que pomos ali tem tudo. Informei-me bastante sobre o tema e não quer dizer que o Zé vá ser vegetariano para sempre, até porque agora começa uma fase em que ele mostra as suas vontades e está rodeado de pessoas que não têm a mesma alimentação. Vamos ver como corre. Não consigo prever como é que vai ser o futuro.

Cada português, em média, desperdiça 184 quilos de comida por ano. Grande parte desse desperdício acontece em casa

Uma vez que estamos a falar tanto de alimentação, não podemos deixar de falar em desperdício alimentar. Portugal é o quarto país da União Europeia que mais comida desperdiça por pessoa. O que podemos fazer para evitar o desperdício alimentar?

Ainda na semana passada comemorámos o Dia Internacional da Consciencialização sobre Perdas e Desperdício Alimentar e a verdade é que cada português, em média, desperdiça 184 quilos de comida por ano. Grande parte desse desperdício acontece em casa, não querendo desresponsabilizar supermercados e restaurantes, porque o desperdício é brutal. Em casa acontece muito e nós não nos apercebemos. Quando digo nós, digo a generalidade, porque em minha casa não se desperdiça mesmo comida. Não me lembro da última vez que deitei comida fora. E as pessoas, no geral, dizem 'Ah, não, na minha casa também não se desperdiça', mas, depois, é o pão que fica duro porque nos esquecemos de cortar e torrar ou congelar, é o bocadinho de comida que ficou esquecido no frigorífico, durante dias, e vai para o lixo, é a fruta que ficou mal acondiciona e os legumes e, de repente, estão estragados em dois dias. São essas pequenas coisas que, somadas, dão estes números assustadores.

Há muita coisa que se pode fazer e posso dar algumas dicas. Para algumas famílias, planear as refeições, que é uma coisa que estou a tentar implementar em casa, ajuda a estabelecer quais são as refeições que vamos fazer para a semana e quais os ingredientes que precisamos e, aí, podemos comprar o que realmente vamos utilizar. Se quisermos dar um passo mais à frente, é comprar a granel. Se tivemos noção das quantidades que vamos usar, o comprar a granel evita o desperdício. Em muitos casos, acaba por se poupar dinheiro porque só precisamos de um bocadinho do ingrediente. Se formos a um supermercado temos de comprar uma embalagem, que depois fica aberta na despensa, estraga-se, não chegamos a usar. E é também uma oportunidade de experimentar coisas novas. Saber como guardar as frutas e os legumes também é importante. Há frutas e legumes que não devem estar juntos. Por exemplo, tudo o que estiver junto das bananas vai amadurecer muito rapidamente. Os legumes, tudo o que seja folhas verdes, alface, couves, espinafres, se forem postos no frigorífico, embrulhados num pano de cozinha húmido, fica no frigorífico uma semana com um sabor super fresco. Às vezes, também nos esquecemos das cenouras no frigorífico e já começam a ficar murchas, moles, basta pô-las em água muito fria, durante um bocadinho, que elas voltam à vida. Basta saber assim estes pequenos truques para fazer com que a comida dure mais uns dias.

Os detergentes - talvez tenha sido assim a última coisa que comecei a comprar a granel e encontro já praticamente todos aqueles de que necessito para casa

Voltando ao granel, quais são os produtos que já podemos comprar? Há assim algum que nem todas as pessoas tenham dado conta de que já é possível encontrar?

Assim, que me lembre, mais recentemente, e que agora compro sempre, são os detergentes. As leguminosas, especiarias, é mais fácil de encontrar em todo o lado, na verdade. Às vezes as pessoas pensam 'não posso comprar a granel porque no sítio onde moro não tenho uma loja a granel', mas, às vezes, para comprar a granel basta ir às mercearias do bairro. Ou se formos a mercados, os mercados, às vezes, têm as leguminosas em sacos grandes, também podemos comprar a granel. Mas os detergentes, de facto, talvez tenha sido assim a última que comecei a comprar a granel e encontro já praticamente todos aqueles de que necessito para casa e que, pelo menos no sítio em que compro, gosto da qualidade e não fica mais caro, pelo contrário, em alguns sítios fica mais barato do que os detergentes convencionais. E basta levar a embalagem. Basicamente, tenho uma embalagem do detergente da louça igual a toda a gente, mas vou sempre enchendo com novo detergente a granel. A mesma coisa para a roupa, para o chão…

E de que forma é que apostar no comércio local, por exemplo, vai reduzir a pegada ecológica?

Por exemplo, em termos de transporte, se comprares perto de casa e não teres de pegar no carro, logo aí estás a impactar menos negativamente. Depois, estás a apoiar um comércio pequeno. A forma como gastas dinheiro também é uma forma de fazeres política, como eu gosto de dizer. É muito diferente a sensação de ires fazer as compras à loja do bairro, onde és tratado de forma personalizada, do que se fores a um hipermercado em que és só mais um. E a probabilidade de teres produtos locais nesse comércio local também acaba por ser maior. E, até mesmo essa possibilidade do granel, há muitas mercearias mais pequeninas que também têm essa opção. Outras vezes, os preços, dependendo das coisas, em que também acaba por ser mais vantajoso.

Se um dia passarem num supermercado à hora de fecho, experimentem abrir o caixote do lixo que está à porta: é assustador

Algo bastante curioso é que já fez é 'dumpster diving', que basicamente é vasculhar o lixo de restaurantes e grandes superfícies. Como é que foi essa experiência?

Foi muito… Mudou muito a minha perspetiva, porque eu não fazia ideia, e acredito que muitas pessoas não têm ideia, do desperdício. É uma forma de ver o desperdício. Não tanto nos restaurantes, até porque não cheguei a fazer dessa forma, mas nos supermercados, sim. Não digo a toda a gente para fazer 'dumpster diving', porque não é para toda a gente fazer, obviamente, mas se um dia passarem num supermercado à hora de fecho, experimentem abrir o caixote do lixo que está à porta: é assustador.

Basicamente, os supermercados, à hora de fecho, põem no lixo aquilo que, supostamente, já não pode ser vendido. E quando falo em coisas que já não podem ser vendidas, são coisas que muitas vezes estão em condições de consumo. Por exemplo, cheguei a ver à porta de supermercados, várias vezes, sacos de tudo o que seja aquela parte de padaria/pastelaria ainda quentes. Porque eles têm de ter fornadas diárias, têm de ter as prateleiras com coisas. São coisas do dia, mas ao final do dia têm de ir para o lixo porque não vão ser vendidas no dia seguinte. Sei que há muitos que já direcionam esses produtos para projetos de solidariedade, por exemplo, mas mesmo assim não acontece sempre. Outra questão é quando, por vezes, vamos ao supermercado e pegamos num saco de plástico e pomos três tomates e, depois, estávamos a pagar e pensamos 'hum, afinal já não vou levar' e pousamos lá. Aquele saco já não vai voltar à venda. Portanto, encontrei imensos sacos de coisas boas, do dia, mas que já não voltavam às prateleiras. Legumes e fruta era mesmo uma coisa assustadora. E, depois, produtos que estavam, alguns ainda dentro do prazo, outros muito perto do prazo de validade, mas ainda em condições, que também eram deitados fora. Foi assim… mesmo uma experiência… nem sei como dizer. Acho que foi das experiências ligadas à sustentabilidade que mais me fez ter noção da realidade, principalmente no que toca ao desperdício alimentar.

O 'dumpster diving' não é mais do que andares a mexer no lixo e é uma coisa que, em Portugal, não é assim tão normalizada

É uma prática que adotou ou foi uma experiência isolada? 

A primeira vez que fiz foi sozinha, depois acabei por fazer uma reportagem sobre o tema e durante a pandemia fiz também, esse foi o período em que fiz mais tempo. Atualmente não o faço, também não tenho tanta disponibilidade, porque é uma prática que requer que vás a determinadas horas, à noite, depois de os supermercados fecharem. E, depois, o 'dumpster diving' não é mais do que andares a mexer no lixo e é uma coisa que, em Portugal, não é assim tão normalizada e eu vivo no centro de Lisboa. Então, socialmente, não me sinto muito bem. Por muito que eu seja 'bora enfrentar o mundo', também tenho os meus limites. Durante a pandemia as ruas estavam desertas, então, muitas vezes, nós saíamos, fazíamos e havia menos olhares críticos ou de curiosidade, que também são normais, eu também teria se visse alguém a mexer no lixo. Eu não fazia aquilo por necessidade, fazia aquilo porque achava mesmo ridículo a quantidade de comida que ia para o lixo. Às vezes, até chegava a distribuir por pessoas amigas ou a sem-abrigo aqui perto de minha casa.

Já nos ensinou alguns truques, dicas, mas, resumindo, que hábitos diários tem e acha que podem ser adotados mais facilmente por quem nos lê?

Há muitos. Normalmente, digo para, idealmente, as pessoas dividirem a sua vida por setores, a cozinha, a casa de banho ou a forma como se movimentam, falando de mobilidade, começar a estudar um trajeto. Para levar o meu filho à escola não é muito acessível de transportes, então, arranjámos uma bicicleta, andámos a estudar o trajeto e agora levamos o Zé de bicicleta para a escola. Portanto, tentar ver se há alternativas ao uso do carro ou dos transportes públicos. Depois, a cozinha, lá está, diminuir o consumo de carne, ir experimentando mais pratos vegetarianos e aumentando esse número de pratos ao longo da semana até que, se calhar, sejam mais do que aqueles que são com carne e peixe. O comprar a granel. E quando digo comprar granel não precisa de ser já levar os meus frasquinhos e encher. Não, pode ser, simplesmente, levares os teus sacos de casa, ir ao mercado e comprares a quantidade que queres. Já é comprar a granel. Claro que, depois, podes dar vários passos à frente desse e levares as tuas embalagens e encheres com especiarias, chás, com os detergentes… Falando de detergentes, também os produtos de higiene, optar por produtos que sejam mais ecológicos e que não tenham uma composição tóxica, porque tudo aquilo vai para o ralo, para a água, vai contaminar.

Há mesmo muitas mudanças que podem ser feitas, mas - e nós na Peggada estamos sempre a falar disso - podemos ir escolhendo uma, ir implementando, depois pegar noutra e ir implementando. Senão, é mesmo muita informação e as pessoas podem querer fazer tudo ao mesmo tempo e acabam por não fazer nada que seja prolongado no tempo. É escolher as lutas.

Era o radar de amigos, família, pessoas mais próximas. 'Olha, quero começar a comprar a granel, que loja tenho mais perto de minha casa?', 'Quero ir comer a um restaurante vegetariano, qual é que me aconselhas?'. Comecei a pensar que, se calhar, conseguia alargar o meu raio de influência se criasse uma plataforma sobre este tema

Uma boa opção para quem quer ser mais sustentável é, e acabou de falar nisso, seguir a Peggada, o premiado projeto que criou e do qual faz parte. Como é que surgiu esta ideia?

A Peggada surgiu quando eu trabalhava como jornalista. Lá está, naquela fase em que comecei a escrever mais sobre o tema e era assim o radar de amigos, família, pessoas mais próximas. 'Olha, quero começar a comprar a granel, que loja tenho mais perto de minha casa?', 'Quero ir comer a um restaurante vegetariano, que seja assim mais responsável em termos de sustentabilidade, qual é que me aconselhas?', 'Quero comprar roupa em segunda mão, onde é que eu vou?'. E comecei a pensar que, se calhar, conseguia alargar o meu raio de influência se criasse uma plataforma sobre este tema. Na altura, não havia mesmo nada e concorri a um programa de aceleração de projetos, que era o 'Women4Climate', que procurava mulheres empreendedoras na área da sustentabilidade, e lancei-me com esta ideia, que era criar um site que agregasse toda a informação sobre sustentabilidade. Nesse programa conheci a Lígia Gomes, a pessoa com quem estou neste momento na Peggada, somos as duas as fundadoras, e pronto.

Entretanto, a Peggada foi crescendo e, neste momento, tem três valências maiores: a produção de conteúdos – notícias, reportagens, entrevistas e também as redes sociais – depois, temos a agenda de eventos, com tudo o que acontece sobre sustentabilidade em Portugal, e temos também a parte que para nós é muito querida e que é a lista de todos os negócios sustentáveis do país, ou que tentamos que seja o mais completa possível, e que tem categorias desde puericultura, até higiene e cosmética, restaurantes, hotéis, lojas de roupa em segunda mão, as mercearias a granel...

Nota um impacto e uma diferença? Há também mais negócios preocupados com a sustentabilidade?

Muito. Sim, sim. E na pandemia nasceram muitos. Nós temos uma lista enorme de novos negócios para pôr no site e muitos mais para contactar. Todo o nosso site é, obviamente, criado por nós, mas contamos muito com a comunidade para o fazer, então vamos constantemente pedindo ajuda a quem nos segue para nos ir atualizando sobre novos negócios que conheçam, novos projetos que façam sentido estar na Peggada e são cada vez mais, mesmo.

Se tivesse poder o que mudava? Multas para quem não recicla

Sabemos que temos de mudar com urgência comportamentos para salvar o planeta, fala-se cada vez mais de ação climática. Se fosse uma líder mundial, ou se tivesse poder por um dia, ainda que mais local, o que mudaria no imediato?

Há poucos dias escrevi um 'post' para a Peggada - e tivemos propostas incríveis - que era 'Se mandasses, que medidas sustentáveis implementavas já?'. Entre as várias que fizemos algumas eram: pelo menos um prato vegetariano em todos os restaurantes, multas para quem não recicla, o 'gap' salarial entre homens e mulheres acabava, sim, porque isto da sustentabilidade não é só ambiental, é social também, e nos centros das grandes cidades só poderias circular de transportes públicos ou bicicletas, pelo menos em algumas partes.

Esta nova geração já nasceu com um 'chip' diferente e as coisas que tenho visto fazerem, umas mais radicais do que outras, dão-me assim uma fé de que as coisas podem mesmo mudar

Nos últimos dias, ativistas climáticos levaram a cabo várias ações de protesto. Como é que acha que deve ser feita esta luta? Concorda que temos de chegar ao ponto de atirar ovos com tinta a um ministro ou considera que se deve fazer de forma diferente, como vimos um grupo de jovens a levar 32 países ao Tribunal Europeu?

É assim, se formos fazer uma análise às notícias desses dias, se calhar os ovos atirados ao ministro tiveram mais impacto na Comunicação Social do que os seis jovens portugueses que estiveram no Tribunal Europeu, não é? Portanto, talvez em termos de mudança a longo prazo, coisas como o que esse grupo de jovens fez tem muito mais impacto, mas, de facto, estas pequenas ações, têm também o seu impacto. Eu tenho muita fé nesta geração. A minha geração apanhou o comboio já em andamento e vai apanhando e vai tentando fazer umas coisas e está a conseguir, obviamente, mas esta nova geração já nasceu com um 'chip' diferente e as coisas que tenho visto fazerem, umas mais radicais do que outras, dão-me assim uma fé de que as coisas podem mesmo mudar.

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